Porque Manifesto OU A Abolição da Ditadura do Indivíduo OU Novas Diretrizes para o Webmundo

"Quando eu levanto a minha voz, perco. Quando eu levanto a minha voz, ainda que cheio de razão, perco. Quando eu levanto a minha voz, perco - exceção feita a aquele momento em que do meio da multidão, ela se eleva. Mas mesmo então, perco, se não consigo dizer nada, não, se ninguém ouve nada, ou se eu falo sem razão."

A ausência de individualidade esteve fortemente ligada à essência do que nos habituamos a chamar de "vida privada" desde que a maioria de nós humanos desvestiu o uniforme de caçador-coletor e se fixou em tribos territoriais, pequenos sítios e povoações. À liberdade suprema - e perigosa - dos prados e florestas preferimos a proteção da plebe, depois dos suseranos, por fim das urbes e nações. (Sem contar, em outros planos, da tendência aparentemente universal a nos grudarmos em ideologias, credos, crenças, religiões e associações - civis, militares, as mais diversas).

Pois foram as nações, contudo; elas próprias - e pode-se perceber aí um ponta de ironia, tendo em vista que elas deveriam representar o pensamento de uma maioria esclarecida de indivíduos - é que depois, por seus excessos e de forma inviesada, se tornaram catalisadoras das grandes revoluções do século XX - que, com suas guerras, guerrilhas e utopias levaram a História a encarar seu verdadeiro protagonista, o indivíduo.

Eric Hosbawn, 92, em entrevista recente à Folha, reitera esta questão ao notar que o foco do processo historiográfico migrou das grandes perguntas ("por quê?") embasadas no estudo das ciências sociais, para o plano da narrativa ("o que eu vivi"); de uma melhor compreensão da história cultural (antes relegada a um segundo plano) à intervenção de estudos biológicos - como o mapeamento do DNA de populações - mudanças que permitiram o aparecimento de "uma base genuína para a história mundial".

As experiências do livro popular, nos séculos que nos precederam, e do jornal, em especial nos séculos XIX e XX, além do cinema e da televisão, criaram novos arquétipos, modificaram costumes (e foram modificados por eles), erigiram novos superegos e inconscientes coletivos (para usar dois termos fora de moda) para as pessoas humanas que as vivenciaram.

Hoje queremos, tudo, e se não podemos, somos propelidos a este instinto primordial de busca contrária às evidências, de luta contra as possibilidades, de autossuperação. Hoje podemos, e se não o fazemos, parecemos a nós mesmos desajustados, imprevidentes, pouco resolutivos. (É o medo do loser). E nos desapegamos lenta e inexoravelmente de grossas camadas de timidez, de decoro, de desapego e conformação, de falsos e verdadeiros pudores, de instintos sufocados e, ou, amestrados, de tudo aquilo que nos amarra ao passado limitado que criou este mundo que está aí. Que está na cara, não deu certo!, mas é assim mesmo amado e fortemente desejado por aqueles que querem dele o seu quinhão. E todos querem, e todos podem, mas nem todos terão - explique isto ao menino de Johanesburg ou do Rio , a bordo de um "shox" roubado.

A internet traz, por sua vez - e quanto mais se ela lograr obter a convergência de mídias desejada - a preços módicos, a possibilidade ideal de suprir esta necessidade humana tão recente, pré-fabricada, hedonista e destacada da História, de se enxergar como um indivíduo - em oposição ao anonimato das massas, em consonância com as premissas sociais locais, inserido de maneira consistente numa espécie de enciclopédia holistica universal, que a todos dê nome como a anjos e o reconhecimento de plantão. Ela traz a proliferação dos sonhos de fama imediata, de reconhecimento tardio, de abolição das dúvidas contextuais, de interpelação pessoal ilimitada. Ela deu voz a todos os que se aproximaram dos microfones, dispostos a se manifestar, a opinar, a criticar, defender, acusar, rebater, extrapolar, inverter.

Um rosto para os artistas, um corpo para os tarados, uma história para os solitários, comunidades para os que nunca haviam saído nas colunas sociais, uma primeira empreitada para jovens escritores e jornalistas, a influência política que muitos não sabiam que tinham (e outros apenas ampliaram), a notícia em tempo real, a um toque dos dedos: ao alcance das mãos.

Mas com que margem de erro e com que noção de responsabilidade?

Não podemos deixar de anotar, é claro, às margens desses pensamentos, as marcas de um processo ainda inconcluso, o da inclusão, paradoxo-mor desta verdadeira revolução; mas ainda assim, creio firmemente tratar-se apenas de uma questão de tempo.

O incongruente é que, apesar de tudo e talvez...

"(por isso tudo tenho andado calado, a me perguntar onde está a minha voz, o destempero e a empolgação; penso, repenso e calo, fundo, silente, inerte, em vão)"

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Há alguns anos escrevi aqui - e no jornal O Estado do Paraná - um artigo sobre a sindrome de alienação parental. Não como médico ou pesquisador, visto que não esgotei a literatura sobre o assunto; não como jornalista, visto que não o sou nem na abordagem do texto; mas como curioso, como pai e como portador de um conhecimento básixco que julgava relevante exprimir.

Recentemente este artigo foi citado em um trabalho de conclusão de curso na UFMG.

É a tal responsabilidade que tantas vezes nem entrevemos ao teclar obsessivamente nossas ideias.

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Há algum tempo havia desistido de investir em celulares de última geração, até por que não o são (que o digam os coreanos, por exemplo, que desenvolvem usos inimagináveis para as maquininhas em velocidade de rachão há tanto tempo que não lhes vemos nem a poeira). Não resisti à baixa de preços e obtive um belo "tamagochizinho" multifunção, tecladinho QWERTY e que tais. A web ao alcance da mão, estão lá o Gmail, o Orkut e o Facebook, o The Sims 2 e a Ferrari, câmeras de foto e vídeo com upload simplificado para a rede, identificador de trá-ĺá-lás e o escambau (só não achei ainda a torradeira digital).

É o futuro chegando com a implementação de uma indústria que viabiliza, para cada vez mais indivíduos no planeta, o acesso a esta maquinária digna de ficção científica em limites cada vez mais fluidos, que vão da localização ininterrupta via GPS aos exageros do culto à (própria) personalidade.

Se deixarmos de lado o presente inacabado, nós que vivenciamos a gestação de todo este processo ao sermos cobaias dos primeiros computadores pessoais, que sofremos com códigos e novilínguas fadados ao ocaso da História como MS-DOS e que tais, que inventamos as BBS para trocarmos o "nada" com nossos vizinhos, nós já vivemos no futuro que imaginamos possível.

Nós blogueiros, tantas vezes criticados por nosso narcisismo descompromissado, temos a obrigação agora de analisá-los, este presente que (já) é futuro e este futuro-futuro que podemos planejar construir.

A meritocracia baseada no novo critério de saber inaugurado pelo século XX, obtida através do acesso a instituições de ensino e diplomas que corroboram a formação tecnicista exigida por uma sociedade "tecnológica", "fez foi desviar a consciência de classe da oposição aos patrões para a oposição a representantes de alguma elite: intelectuais, elites liberais, pessoas que se erguem como superiores a nós.", mais uma vez no dizer de Hobsbawn. Cada vez mais falamos para nichos, para tribos e gangues, para nossos próprios umbigos. Nesta savana da comunicação ilimitada não contamos com guias, duvidamos do que sabemos (se temos vergonha na cara) e restringimo-nos ao óbvio. Enxergamos o levantar-se das classe menos favorecidas com assombro e certa dose de medo, pois vemos ruir as bases que legitimam mesmo nossa inserção social (com a relatividade absoluta de títulos nobiliárquicos, atestados de origem e antecedentes de miserabilidade), nosso pretenso bom gosto (estão aí os reality shows e as rádios que sobraram a nos ferir de maneira escatológica o cotidiano) e mesmo nossa convicções políticas - o que não deixa de ser outra estória à parte.

Construir pontes anárquicas entre os zilhões de personalidades espalhadas, entre indivíduos e avatares - e personagens, puros e simples personagens oriundos de todas as origens e classes econômicas e sociais - que habitam o webmundo deveria ser o paradigma essencial nesta fase, ainda que para isto tenhamos que desistir de almejar justamente o que fomos ensinados a querer e a buscar. Ainda recorrendo ao mesmo autor e à mesma entrevista, "Os dois grupos são essenciais para um movimento como esse, mas hoje talvez seja mais difícil uni-los do que era antes. É possível, em certo sentido, os pobres se identificarem com os multimilionários, como acontece nos EUA, dizendo "eu só precisaria de sorte para virar popstar". Mas não é possível dizer "bastaria um pouco de sorte para eu virar ganhador do Prêmio Nobel". Isso cria um problema real quando se trata de coordenar as posições políticas de pessoas que, objetivamente falando, poderiam estar do mesmo lado." (Hobsbawn, op. cit.), vemos que para criticarmos o individualismo exacerbado, o hedonismo fetichista e a pseudoglamurização de nossa inserção na mídia global, talvez seja necessária certa dose de humildade. Sem falar na ausência de objetivo, para sermos puros, e na presença paradoxal de um objetivo sempiterno e onipresente, o de não sermos estridentes.

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Luther Blisset e o coletivo Wu Ming, com sua história que antecede a da internet, em sua luta gozadora pela abolição da individualidade como parte da ignição criativa, são exemplos bem sucedidos de "natação contra a maré". O professor Alfredo Mourão, solitária andorinha transgressora do marasmo cultural de minha cidade natal, com seu projeto de discussões itinerantes de literatura e poesia, também. E se unem em coro, transcritos juntos na mesma página e matéria, em que os dizeres da "Declaração dos Direitos e Deveres dos Narradores", criado pelos primeiros, aplicados na descida do salto-alto de autores locais, perpretada pelo segundo, são retratados em realidade.

“O narrador tem o dever de não se considerar superior aos seus semelhantes. É ilegítima qualquer concessão à imagem do narrador como criatura pressupostamente mais sensível, em contato com dimensões mais elevadas. Contar histórias é um trabalho tão integrado na vida da comunidade quanto o de apagar incêndios, cultivar os campos, assistir os incapacitados.”

(citado por Fernando Lopes na matéria "Os Artistas Somos Nós", jornal O Portal, edição nº 46, em 25 de abril de 2010).

"Qualquer um de nós é escritor", diz Mourão, "do poeta ao escrivão policial". Tom Zé, no famoso documentário em que é "desconstruído" - bem formalmente, afinal - diz que não tem aquele amor pelo que sai dele que alguns outros ele nota ter, amor que faz parecer que tudo que produzimos parece ter saído pela buceta (palavrão dele), como se fossem filhos que só pudessem ser amados. Diz ainda duvidar dos próprios filhos, ser duro e rigoroso com eles, não ser qualquer coisa que o satisfaça.

Rigor que não me parece exagero frente à problemática final, colocada neste domingo próximo passado pela ombudsman da Folha, Suzana Singer, ao abordar a política do jornal em relação a pedidos de exclusão de notícias antigas que sejam comprometedoras, ou inexatas, ou inconclusas, de modo a proteger ex-menores, ex-processados, ex-delinquentes ou vítimas(estas, sempre vítimas). Política que é a de complementar sempre que possível, reescrever jamais, sob pena de darmos mais uma vez a mão à palmatória do oráculo Orwell.

E o mais irônico neste balanço das horas e marés, ora batendo às mansões dos poderes estabelecidos e anonimatizantes, ora lambendo as praias outrora desertas da individualidade, é que há pelo menos dois de cada um de nós: aquele que somos, e aquele que a internet mostra de nós.

Muito cuidado com o que escrevemos, isto sim é objetivo digno de nota.

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Outrora estaria encantado com as possibilidades de meu novo Motorola. Hoje, além do medo da conta da operadora, entrevejo diálogos bêbados, fotos comprometedoras, alarmes sonoros despejando tweets a todo momento, a marca da besta do apocalipse dizendo a tudo e a todos aonde estou e a fazer o quê. Gostei do The Sims mobile porque não é online, é fuga pra dentro, não para fora, e com um pé na realidade brutal.

Blogar por lá? Nem pensar: para os minicontos, um caderno; para quick notes, SMS; para o blog, o netbook já apertado demais. Para os momentos de tristeza e dor, carinho de esposa, a voz de meus filhos ou de meus pais.

E blogar por aqui só o infinitamente necessário, em voz baixa, sambando assim bem miudinho como a Ana e o Melodia no disco recente, que a boa malandragem diz pra ir só no sapatinho, de leve, devagar, devagarinho e sempre.

E que este texto não desmoralize a imagem googleana de Renato van Wilpe Bach.

Renato van Wilpe Bach
Enviado por Renato van Wilpe Bach em 19/05/2010
Código do texto: T2267292
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