A Porn Food e o Futuro da Televisão

Acompanho já há alguns anos, até pela onipresença, vários programas de culinária na tevê. Lá se vão muitos anos desde que a cachorrada da Ana Maria Braga era o prato mais comentado do dia.

Na tevê aberta nem sei mais, impregnado que estou pela cable television, descobrindo estarrecido que muitas, muitas vezes, o melhor da programação está justamente nos programas de gastronomia.

Dos seminais, profícuos e plurais Jamie Oliver ("o cara da comida nas escolas britânicas", também conhecido como "o cara das ervinhas no quintal") e Gordon Ramsay (o dono da "Cozinha do Inferno", consertador de pesadelos e falador de palavrão) passamos a degustar (ou não! o que por si já é uma conversão) os aloprados Andrew Zimmern e Anthony Bourdain, estrelas maiores da atual miríade de shows de culinária e escatologia que serve à tela pequena.

O primeiro se fez conhecido no mundo todo pelo seu imperdível "Bizarre Foods" (no Brasil, "Comidas Exóticas", DTL), coleção para lá de interessante sobre hábitos, culturas... e alimentos. Americano, judeu e chef de cozinha, Mr. Zimmern não desdenha, sempre quer comprar, fazendo valer seus bordões: "se tiver boa aparência, coma" e "nunca desista no primeiro pedaço" - inclusos insetos de toda sorte, crânios (de porco, carneiro e bode), tarântulas, répteis, roedores, morcegos e ratos. É o fim do mundo, e é legal, especialmente pelo respeito que o apresentador devota a tudo que é comestível - Mr. Zimmern comunga com Mr. Bourdain a crença de que se algo é bom o suficiente para outro ser humano comer, pode se experimentar.

"Tony Bourdain No Reservations" é o nome do show de seu amigo e ex-vizinho em Nova Iorque, cuja genialidade no comando das panelas põe Andrew no chinelo. Feliz ou infelizmente, Tony é dono de trajetória mais errática e inconstante, variando do jet set à sarjeta e às drogas, o que lhe garante mais profundidade na fala, que inclui política, antropologia e cultura em doses verborreicas - garantindo, de quebra, um escopo de visão provilegiado ao programa.

Nas temporadas que passam no Brasil, sempre com grande atraso, Tony viaja o mundo a bordo de muito senso crítico e capacidade de observação. Não viaja simplesmente em busca de comida, como o compatriota, mas de forte e raras emoções. Só falta chorar de alegria e tesão em frente a uma bela sopa vietnamita; lambuza-se de sangue fresco de foca na cozinha de uma família inuíte no Canadá; titubeia frente a um complexo períneo de porco, com conteúdo e tudo, assado na brasa em uma savana africana. Experimenta a comida das ruas como quem vai à igreja, ciente do milagre da multiplicação das rotinas e insumos por este mundo que pode ser qualquer coisa, menos desinteressante.

E de quebra presta o mesmo serviço que tantos de seus comparsas: o resgate de tradições possivelmente morredouras, repórter ocular de histórias que já podem ter acabado quando o programa vai ao ar. Uma delas, recheada de força poética que ultrapassa as barreiras da arte de se fazer televisão, é a do fazedor de noodles em algum lugar da China, montado em seu imenso rolo de madeira, o último de sua profissão.

Recentemente o DTL reprisou a versão de Bourdain para o "Paraíso/Heaven", em episódio especial que passeia por alguns dos melhores momentos de sua trajetória, que atinge seu ponto alto enaltecendo a intimidade de nossas bocas com a comida feita à mão, pela mão de outras pessoas, simbiose que toma dimensão verdadeiramente metafísica em seu discurso apaixonado (por comida) em uma esquina qualquer de NY.

Antes, porém, ao declinar exageros e absurdos veiculados em programas exatamente como o dele, Tony cria curioso neologismo ao se referir aos excessos alimentares de nossa obesa televisão, que chama de "porn food", em clara alusão a nosso modos onanistas e voyeuristas diante da imagem (virtual, claro) de um prato de comida.

É, Tony, você tem razão. Somos todos uns selvagens, como pode atestar outra figurinha em ascensão no meio, o impagável Adam Richman (Man Vs. Food, FoxLife), cujo estômago acomoda facilmente os muitos quilogramas dos desafios quantitativos tão comuns nos EUA, numa maratona que dá fome e náuseas a um só tempo.

De minha parte, aguardo ansiosamente pelas delícias da gastronomia virtual, a ser desenvolvida nas próximas décadas pela união de talentos de tecnólogos da computação e caras como esses citados aqui, que partem da simples comidinha nossa de cada dia para alusões complexas que ajudam a entender o que fomos, como chegamos até aqui, o que continuaremos comendo nas décadas vindouras e o que nunca mais comeremos: lembranças de delícias caseiras soterradas pela generalização da "junkie food" e pela escassez de água e alimentos que, fatalmente, virá.

E que tantas horas em frente à tevê me poupem uns anos de terapia. Saúde!