DO ORIENTE AO OCIDENTE: A OCIDENTALIZAÇÃO DO ESPAÇO CULTURAL BRASILEIRO EM GILBERTO FREIRE

Em 1936, ainda sob a égide da Revolução de 30, tão importante que foi para a cultura nacional, publicava-se, no restrito cenário editorial local, Sobrados e Mucambos, de Gilberto Freyre. Como uma espécie de continuação de Casa-Grande & Senzala, publicado três anos antes, a obra que agora saía inseria o Brasil de uma vez por todas no cenário liberal-burguês que então se descortinava. Em suma, é Sobrados e Mucambos o livro por excelência da Modernidade, do “fim” da sociedade patriarcal brasileira e do surgimento de uma outra, não menos exploradora e repressora: a sociedade liberal-burguesa, dirigida pela classe média em ascensão (eminentemente urbana).

Sendo os objetivos centrais desse trabalho concernentes ao conflito Ocidente X Oriente, e as implicações deste na cultura e sociedade brasileiras, debruça-se, com especial atenção, no capítulo 9 do já referido livro, intitulado O Ocidente e o Oriente. Tal leitura, contudo, é elaborada à luz não somente de um Freyre, mas também de um Said, ou Foucault, por exemplo, e visa, dentre outras coisas, captar elementos importantes desse conflito, discorrendo algumas linhas sobre a imposição cultural que o Ocidente aplica, através do discurso, ao Oriente.

Um Orientalismo/Oriente que chegou a dar considerável substância, e não apenas alguns dos seus brilhos mais vistosos de cor, à cultura que aqui se firmou e à paisagem que aqui se compôs dentro de condições predominantemente patriarcais de convivência humana, em geral, e da exploração da terra pelo homem e dos homens de uma raça pelos de outra em particular, “ativando” formas senhoris e servis dessa convivência entre o povo brasileiro: o modo de viver, de se vestir, os meios de transporte, a alimentação, etc. Modos que, de maneira alguma, poderiam deixar de afetar o modo de ser e, consequentemente, de pensar da sociedade como um todo[1].

Dessa forma, percebe-se que Gilberto Freyre nos lança aos olhos um Oriente híbrido, gulosamente colorido e rico em detalhes, criado sob a sombra de uma jaqueira ou de uma mangueira. Um Oriente que, segundo o próprio autor, advém de um substrato assimilado através do português, do mouro, do judeu e do negro: elementos que desde cedo contribuíram para a formação espacial, racial e social do Brasil. Raças que conviveram e se miscigenaram, sendo essa miscigenação, mais que a mobilidade, “o processo pelo qual os portugueses compensaram-se da deficiência em massa ou volume humano para a colonização em larga escala e sobre áreas extensíssimas” (FREYRE, 2002: 86).

Assim, herdando dos portugueses e negros[2] valores de arte, em particular, e de cultura, em geral, que já representavam adaptações entre Ocidente e Oriente, o Brasil “beneficiou-se” da experiência portuguesa no Oriente tropical. Da mesma forma que alguns países africanos — como Angola, por exemplo, fortemente influenciado pela cultura luso-portuguesa recriada e readaptada no Brasil — beneficiaram-se da experiência exploradora e colonizadora do português nesse vasto pedaço de terra ao sul das Américas.

Sob esse prisma, é verossímil afirmar que coube ao Brasil, de certa forma, o papel “civilizatório” em Angola, na medida em que o primeiro influenciou culturalmente o segundo. É claro que se devem tomar os devidos cuidados com o termo “civilizatório” para se evitar cair no terreno pantanoso do “lugar comum”, trazendo à tona preconceitos e abordagens ainda não superados entre Ocidente e Oriente.

Isso porque o Ocidente, a partir da sua mecanização industrial nos inícios do século XIX, fossilizou a imagem do Oriente, tornando-a um rótulo para uma sociedade pré-determinada, segundo Edward W. Said, a acatar estereótipos e visões preconceituosas e limitadoras: “Como a primitividade, como o perene contratipo da Europa, como a noite fecunda da qual se desenvolveu o racionalismo europeu, a verdade do Oriente recuou inexoravelmente para um tipo de fossilização paradigmática” (1991).

Essa criação/produção do Oriente pelo homem ocidental, que Said denomina de “geografia imitativa”, tem criado uma imagem pejorativa e inalterável, porém não simplesmente fictícia, do Oriente. A dicotomia Ocidente-Oriente é fruto de um discurso “controlado, selecionado, organizado e redistribuído por certo número de procedimentos que têm função de conjurar seus poderes e perigos, dominar seu acontecimento aleatório, esquivar sua pesada e temível materialidade” (FOUCAULT, 2003: 9). Em suma, todos procedimentos de exclusão.

É o que vemos hoje na mídia e na imprensa em geral: uma estereotipização do Oriente que vem a subjugar sua imagem, dilatando conceitos pejorativos, de tal forma que o que ficou fora desse orientalismo forjado foi precisamente a história que resistiu à usurpação ideológica. Essa história reprimida ou resistente voltou por meio de várias críticas e ataques ao orientalismo, cujas formas de representação uniformizadora têm sido denunciadas como políticas do imperialismo.

Hoje essa política imperialista vem sendo encabeçada e liderada pelos Estados Unidos e tem sido uma das responsáveis pelos ataques militares na região do Oriente Médio, mais especificamente no Afeganistão e no Iraque. Com o falso argumento de promover a paz mundial, exércitos imperialistas devastam regiões, no intuito de se apossar de suas riquezas e de expandir suas políticas de dominação e controle.

Exclui-se da pior maneira possível: incluindo. Ou seja, ocidentalizando toda uma região, como foi feito na criação do Estado de Israel, pós-segunda guerra mundial. Forcejou-se uma ramificação, uma espécie de base camuflada do imperialismo na região. Em última instância, forcejou-se a dominação do Oriente pelo Ocidente. Daí a importância de um Estado institucionalizado no Oriente Médio. Como afirma o próprio Said:

"Uma crítica das ortodoxias, dogmas e procedimentos disciplinares do orientalismo contribui para uma ampliação de nossos conhecimentos dos mecanismos culturais do anti-semitismo. Tal conexão não foi jamais feita pelos críticos, que viram na crítica ao orientalismo uma oportunidade para que defendessem o sionismo, apoiassem Israel e lançassem ataques ao nacionalismo palestino. As razões para isto confirmam a história do orientalismo, pois, tal como o comentarista israelense Rubenstein observou, a ocupação israelense da Margem Oeste e de Gaza, a destruição da sociedade palestina e o constante assalto sionista sobre o nacionalismo palestino foram muito literalmente dirigidos e equipados por orientalistas" (SAID, 1986: 91).

À margem de todos esses acontecimentos, formou-se uma tradição crítica orientalista, onde se tem repudiado tudo que lembre a árabe ou islamismo, ao mesmo tempo em que enceta um contra-ataque intelectualmente vazio, porém de cunho ideológico. Algo similar, embora com objetivo diverso, fizeram os “ocidentalistas” — para adotar a expressão freyreana — aqui no Brasil. Assim, Freyre, quando fala em desassombramento[3], processo pelo qual se elaborou uma série de discursos para ocidentalizar o país, está se referindo a um processo do qual esse “fenômeno” é apenas um reflexo do ocidentalismo:

Os “olhos dos Estrangeiros”, ou, antes, os dos ingleses, é que passaram a governar o Brasil através menos de cônsules e caixeiros-viajantes, que daqueles portugueses e brasileiros anglófilos do tipo do Conde de Linhares e do economista Silva Lisboa, para quem a salvação de Portugal ou do Brasil estava em perderem, com a possível rapidez, quanto fosse forma ou cor oriental de cultura para adquirirem as formas, as cores e os gestos dominantes do Ocidente perfeitamente civilizado. E para eles o Ocidente perfeitamente civilizado eram Inglaterra e França (FREYRE, 1998: 427).

Esse desassombramento, conforme ressaltado, se dá por uma necessidade de expansão imperialista, promovida então pela Inglaterra, que intenta vender seus produtos industrializados para as sub-colônias da América Latina. É bem nesse período, que se inicia no início do século XIX e se expande até os dias de hoje, que o país se vê “assolado” de produtos europeus, antiecológicos para a natureza da maior parte do Brasil.

Com a transferência da Corte portuguesa para o país, em 1806, a Europa ganhava um novo status como modelo de “civilização perfeita”, ao qual deveriam todos os brasileiros aspirar. O que corresponderia, em suma, à desvalorização dos tipos de homem e de valores de cultura extra-europeus.

A vida patriarcal do Brasil colônia, com alguns de seus liames sociais, estava com os seus dias contados, pois o declínio do padrão de vida oriental no país significava o fim, ao menos em tese, do patriarcado na vida social e econômica do Brasil. Daí a forte apologia à implantação de “homens livres” — inclusive vindos do Oriente — para o país. O intuito era satisfazer os ingleses (liberais) quanto à urgência/exigência da abolição do tráfico de escravos, para se iniciar uma nova era: a do liberalismo, a do capitalismo, a do trabalho dito “livre”. Ou seja, a era do Ocidente, com seus ideais liberais calçados não mais na família, mas no indivíduo.

Edward W. Said diz que o tema mais familiar do orientalismo, visto sob a perspectiva do Ocidente, é que “eles (os orientais) não são capazes de representar a si mesmos, devem, portanto, ser representados por outros que sabem mais a respeito do islamismo do que o islamismo sobre si” (SAID, 1986: 261). Observa que não se coloca aqui a questão de uma troca, não há diálogo, discussão, um reconhecimento mútuo. E continua: “(...) Não é ciência, conhecimento ou entendimento: é afirmação de poder e reivindicação de autoridade relativamente absoluta” (idem).

Essas “discussões” unilaterais forjaram, intencionalmente, uma identidade para o Oriente calcada sob os pilares democráticos de uma certa “procura da verdade”, identidade que serviu não apenas para rotular e limitar o olhar sobre o Oriente, mas para também dominá-lo. Ora, essa “vontade de verdade”, como os outros sistemas de exclusão, apóia-se sob um suporte institucional. Citando Foucault: “Existe em nossa sociedade outro princípio de exclusão: não mais a interdição, mas uma separação e uma rejeição” (FOUCAULT, 2004: 10), feitas pela ordem do discurso.

É justamente nesse ponto que se deve ligar Freyre a Said, e ambos a Foucault. Embora Gilberto Freyre nos deixe descortinar um Oriente dinâmico e diversificado, tal qual os outros dois autores condena essa política de rejeição, ostentada pelo discurso, à cultura e às cores do Oriente. Para esse autor POLI, tudo que cheire a MONO é fétido.

Talvez por isso tenha produzido uma bibliografia tão vasta e variada. Talvez por isso mesmo tenha se interessado, quase que freneticamente, em resgatar os antigos valores culturais nacionais, cada vez mais euro-centristas e ocidentais, numa tentativa quase que de redescoberta de si, de seu povo, de sua origem.

Todavia, não se pode esquecer que Gilberto Freyre, tal como Sérgio Buarque de Holanda e Caio Prado Jr., por exemplo, é fruto da geração de 30, tão preocupada que foi em discutir, à luz dos problemas atuais, questões nacionais. Isso porque, com o amadurecimento do modernismo e superada a sua primeira fase, o foco muda, passando a não ser mais estético e sim ideológico[4].

É uma fase produtiva para a literatura brasileira. Aliás, não somente para a literatura, mas também para as outras disciplinas, haja vista ser desse período a consolidação da Sociologia como disciplina, tendo em Freyre um de seus “fundadores” aqui no Brasil.

Como um intelectual de seu tempo, Gilberto Freyre recria um Brasil que não queria ser descoberto: o Brasil das iaiás, das casas-grandes e senzalas, dos sobrados e mocambos, do império do açúcar, do ferro, dos becos estreitos dos antigos burgos do país, etc. Um Brasil envergonhado, que teimava em esconder e apagar a sua história, como foi feito em Canudos, ou no Contestado, por exemplo.

No país apaga-se ou mitifica-se a história, ou ambas as coisas, já que a mitificação, a (re)elaboração estética e social de um tipo, a sua caricatura, nada mais é que o escamoteamento desse mesmo tipo. Perceba-se, contudo, que não se fala, nesse processo, do indígena do Romantismo, cuja função social não era outra senão a de vangloriar a aristocracia brasileira, como forma de uma auto-afirmação para uma nação que acabara de nascer: não somos filhos de gloriosos indígenas, nem dos corajosos portugueses, somos filhos do cruzamento das duas raças; somos filhos da melhor cepa[5]. O intuito aqui é bem outro e diz respeito à construção do caipira, ou melhor, ao caboclo que, sob influência do Romantismo, teve sua figura assaz mitificada.

Ciente dessa mitificação do caboclo forte, sadio, audaz, Monteiro Lobato, em 1914, publica, no jornal O Estado de São Paulo, dois artigos intitulados Velha Praga e Urupês, cujos motes principais são desmistificar essa imagem criada e perpetuada na literatura. É claro que não foi somente este o motivo que levou o tal fazendeirinho a publicar esses textos. Foram outros também, mas que não cabe aqui serem analisados.

O que interessa, em particular, nesses dois textos lobatianos que representam o primeiro dos três olhares que Lobato “lança” ao caipira de São Paulo[6], é a sisuda observação do autor — mesmo que eivada de preconceitos —, capaz de perceber elementos culturais e sociais do caipira. Detalhes importantes que seriam, posteriormente, melhor trabalhados e analisados por Antonio Candido em Os Parceiros do Rio Bonito.

Aspirando “retificar” a imagem do caboclo paulista, Monteiro Lobato ocidentaliza, diga-se assim, a figura do seu caipira. E ocidentaliza porque o vê com os olhos do estrangeiro, do homem burguês e urbano e do fazendeiro preocupado com o seu bolso. É a ocidentalização da imagem do caipira impressa através da marca da preguiça e da falta de senso estético. Em suma, é uma visão satírica de um tipo, conforme dito acima. Para o Lobato desses textos, o caipira é um moleirão adepto à “lei de menor esforço”, incapaz de se adaptar à sociedade e aos meios de produção capitalista, e por isso mesmo predestinado à inanição. Já para Candido, décadas mais tarde:

"Tendo conseguido elaborar formas de equilíbrio ecológico e social, o caipira se apegou a elas como expressão de sua própria razão de ser, enquanto tipo de cultura e sociabilidade. Daí o atraso que feriu a atenção de Saint-Hilaire e criou tantos estereótipos, fixados sinteticamente de maneira injusta, brilhante e caricatural, já no século XX, no Jeca Tatu de Monteiro Lobato" (CANDIDO, 2001: 107).

Vale lembrar que nas sociedades semi-nômades, como é o caso da sociedade caipira do início do século XX observada por Lobato, esse modo de produção não deve ser considerado apenas como reprodução da existência física dos indivíduos, já que faz parte das atividades destes. É uma maneira intrínseca ao modus vivendis dessas sociedades, é uma maneira de manifestar a vida, de viver.

“Creio que, entre nós, a camisa por fora das calças do matuto é uma sobrevivência indiana. Uso oriental adotado pelo português antigo, introduzido por ele no Brasil e que deve ser recuperado, pois o estudo científico do assunto muito condena o cinto ou cinturão” (FREYRE, 2000: 183) — é o que afirma Freyre a respeito da problemática do traje ecológico para os trópicos.

Com a crescente ocidentalização do país pós-vinda da Corte portuguesa, os hábitos dos brasileiros foram ocidentalizando-se pouco a pouco. Tudo o que no Brasil lembrava a Oriental foi desaparecendo, ou por força dos hábitos — sempre “incentivados” pelos liberais ocidentalistas —, ou por determinações políticas verticais, como é o caso das gelosias nos sobrados do Rio de Janeiro. Isso porque a Inglaterra, e alguns outros países europeus, por via também dos ocidentalistas[7], passaram a intervir mais diretamente na vida político-econômico-cultural das sub-colônias portuguesas.

O país se resignou, ainda mais passivo que outrora, aos ditames do Imperialismo capitalista europeu, passando a consumir, sem prévia discussão, o que de lá vinha. Abduziram-se velhos hábitos, não sem nenhuma resistência, é claro, em substituição a outros, menos ecológicos (e mais descentrados) para a vida nos trópicos.

O termo Ocidente passa a ser sinônimo de civilizado e Oriente o seu inverso. Mesmo conceitos aparentemente imutáveis estão sujeitos a rotulações decorrentes não somente da interação entre o momento histórico e os julgamentos expedidos à luz de teorias arbitrárias, como as dos orientalistas, mas também em decorrência da receptividade de uma determinada sociedade em “acatar”, ou não, estes estereótipos.

É justamente este o ponto. No momento em que Lobato cria o seu Jeca, em 1914, não é aclamado porque, naquele momento, o estereótipo do caipira é bem outro. A partir do momento em que o Brasil, embora já bem ocidentalizado, se “moderniza” à luz de uma pequena-burguesia urbana em ascensão, o estereótipo do velho Jeca ocidentalizado passa a ser “aceito” e “adotado”. O caipira passa de “Ai Jesus!” Nacional (“É de ver o orgulhoso entono com que respeitáveis figurões batem no peito exclamando com altivez: Sou raça de caboclo.” [LOBATO, 1961: 279]), para Anti-herói Nacional.

Segundo Said, “cada designação representa interesses, alegações, projetos, ambições e retóricas, que não só se contradizem violentamente, como se encontram em guerra aberta” (SAID, 1986: 255). Tão saturados de significados e tão marcados pela história são os rótulos.

Outro fator importante a se ressaltar concerne ao modo de vida ecológico, para os trópicos, que a ocidentalização do país veio a “agredir”, a transmutar. Eis outro ponto divergente entre Monteiro Lobato e Gilberto Freyre. Na verdade, não diria divergente, na medida em que a intenção do primeiro era desmistificar — por meio também do relato — a figura do caboclo paulista, enquanto a do segundo era a de fazer uma espécie de relato histórico dos modos de vida do brasileiro e da necessidade do interesse, por brasileiros e portugueses, pelas condições de vida ecológica nos trópicos. Vejamos a citação extraída em Urupês, artigo datado de 23 de dezembro de 1914:

"Em três dias uma choça, que por eufemismo chamam de casa, brota da terra como um urupê. Tiram tudo do lugar, os esteios, os caibros, as ripas, os barrotes, o cipó que os liga, o barro das paredes e a palha do teto. Tão íntima é a comunhão dessas palhoças com a terra local, que dariam idéia de coisa nascida do chão por obra espontânea da natureza — se a natureza fosse capaz de criar coisas tão feias" (LOBATO, 1961: 272-273).

Na verdade, o que interessa de fato aqui não são as heranças culturais propriamente ditas do caipira, mas sim a sua adaptação ao meio — oriunda obviamente dessas heranças — conforme exposto no fragmento acima citado. Perceba-se que, seguindo o exposto por Freyre no texto Arte e civilização nos trópicos..., o caipira está completamente adaptado ao meio ao qual se insere. Sua casa e suas vestes condizem de fato com a cultura que lhe foi assimilada; já o caipira formulado por Lobato não.

Por isso a inadequação de Monteiro Lobato para com o modo de ser do tipo caipira. Daí, também, sua indignação. É claro que não se pode esquecer que esses estereótipos tinham, concomitantemente, uma finalidade estética. O Jeca Tatu não surge unicamente pela pena furiosa de um fazendeiro aristocrata que se vê prejudicado pelas queimadas em suas terras, mas também pela pena de um escritor preocupado em escoimar a imagem largamente difundida, no meio literário local da época, do caboclo forte, sadio e audaz. Em decorrência do ponto em que partia o seu olhar, seu caipira ficou estilizado, caricaturado. Daí sua ocidentalização.

A vida social do caipira assimilou e conservou os elementos condicionados pelas suas origens nômades. A combinação dos traços culturais indígenas e portugueses obedeceu ao ritmo nômade do bandeirante e do povoador, conservando as características de uma economia largamente permeada pelas práticas de presa e coleta, cuja estrutura instável dependia da mobilidade dos indivíduos e dos grupos. Na habitação, na dieta, no caráter do caipira, gravou-se para sempre o provisório da aventura.

O elemento português, com toda a sua experiência e vivência orientais, um elemento com um pé na África e na Ásia e outro na Europa, associado ao elemento indígena, nativo da terra, com vida baseada na agricultura de subsistência e com hábitos semi-nômades, é dessa mistura que nasce o tipo físico e social do caipira paulista. Foi essa percepção que “faltou” ao Lobato de 1914. O escritor acerta na forma, porém erra no conteúdo. Descreve o caipira com uma certa exatidão típica, embora estilizado, porém, não atentando para esses fatos, recria-o à luz do Ocidente liberal e burguês. É a ocidentalização, por meio de uma rotulação, do caboclo paulista.

No entanto, não cabe afirmar que essa ocidentalização tenha se dado casualmente. Ao estereotipar o caipira, Lobato o faz pelo meio da sátira. Lobato cria o seu Jeca Tatu, confrontando-o com “idéias novas” oriundas do ocidente. Daí a caracterização fiel da sua habitação, do seu tipo e do seu habitat. O caipira é um títere na pena do escritor, que o molda segundo suas pretensões literárias e extra-literárias.

Assim, o que o autor acaba passando é um certo incômodo com o modo de ser do caboclo. Para esse Lobato, o caipira não passa de uma quantidade negativa, incapaz de evolução. Perceba-se que, embora descrevendo o seu Jeca como ele o é, nem por isso quer dizer que o entenda de fato. Pelo contrário, é justamente satirizando-o, e não lhe dando voz, que o autor o submete, de maneira atroz, ao julgo da sociedade a qual pertence: ocidental-capitalista.

Longe de uma percepção de classe, o autor de Velha Praga e Urupês cria seu Jeca quase que deslocado do meio onde vive. O mundo seria outro sem o caipira, ou melhor, sem o piolho da terra, como o autor mesmo afirma. Tudo nele é negativo: jeito, vestes, hábitos, morada. O caipira subtrai.

De maneira adversa o vê Candido quando o estuda sob a perspectiva da transformação dos seus meios de vida. Por hora não cabe aqui uma leitura mais detalhada da obra de Antonio Candido, mas sim o uso de alguns elementos por ele estudados, para a continuação do raciocínio. Dentre esses elementos — aliás, o único ao qual se atém este artigo — está o da vestimenta do caipira:

Todos faziam fio de algodão, que tecedeiras transformavam em pano, com o qual se confeccionava a roupa; camisolão até o joelho para meninos e meninas; camisa e saia para as mulheres; ceroula e camisa, usada sobre aquela, para os homens. Trançavam-se em casa excelentes chapéus de junco (Lepidosperma officinalis), “que duravam dois anos”. Andava-se geralmente descalço, e o único calçado era a precata (alpargata), feita igualmente em casa. Os homens iam à própria igreja neste traje, que em 1757 já era registrado em Moji das Cruzes pelo Conde de Azambuja: “He a villa pequena [...] e a maior parte dos moradores assiste nos seus sítios, onde passão o tempo a cachimbar e balançar-se na rede, em camisas e ciroulas, vestido que ordinariamente uzão” (LOBATO, 1961: 49-50).

Preocupado com o traje ecológico para o trópico, Freyre acredita que o vestuário do caipira, com a camisa por fora das calças, é uma herança indiana trazida aqui pelos portugueses e adaptada pelos moradores que foram se estabelecendo no interior de São Paulo, parte de Mato Grosso do Sul e de Minas Gerais. As análises de Candido e Freyre a esse respeito são similares e provam uma coisa: a influência oriental na cultura brasileira. Influência que não pode ser descartada ainda hoje, ainda mais se atentarmos para o fato de que certos valores ainda resistem, como é o caso de algumas figuras do folclore brasileiro, ou de crenças e culturas afro-brasileiras.

A respeito do vestuário do caboclo paulista pouco apresenta, ou quase nada, Monteiro Lobato. São apenas trechos ridicularizando o traje simples do caipira. É lamentável que o autor não tenha percebido que, apesar da “pobreza”, o vestuário do caipira paulista é um dos mais propícios para se viver nos trópicos: camisa clara de algodão por fora das calças folgadas. Já Freyre, se não se atém exclusivamente no “matuto”[8], fornece um subsidio teórico para se pensar sob a ótica do conflito Ocidente X Oriente. O que ficou claro com essas leituras é que, tal qual a criação do Oriente pelo Ocidente, o caipira também foi estagnado como rótulo de um determinado tipo, a ponto tal de ser explorado até os dias de hoje nas festas populares de junho, ou pela própria mídia, que firmou e dilatou sua imagem.

Relações mais que evidentes do conflito entre Ocidente e Oriente, que ainda hoje não está encerrado. Relações entre o modo de agir e pensar de um povo e as políticas implantadas para esse povo. Relações entre colônia e Império, ou entre desenvolvimento e subdesenvolvimento. Questões cada vez mais atuais e que não devem ser deixadas de lado pelos intelectuais brasileiros e da América Latina em geral.

Referências Bibliográficas

CANDIDO, Antonio. (2001). Os Parceiros do Rio Bonito: estudo sobre o caipira paulista e a transformação dos seus meios de vida. 9.ed. São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34.

CANDIDO. (1989). Literatura e subdesenvolvimento. In: A educação pela noite e outros ensaios. São Paulo: Ática.

FREYRE, Gilberto. (2002). Casa-Grande & Senzala. 46.ed. Rio de Janeiro: Record.

FREYRE. (1998). Sobrados e Mucambos: introdução à história patriarcal no Brasil. 10.ed. Rio de Janeiro: Record.

FREYRE. (2000). Arte e civilização moderna nos trópicos: a contribuição portuguesa e a responsabilidade brasileira. In: China Tropical. São Paulo: Record.

FOUCAULT, Michel. (2004). A ordem do discurso (Tradução de Laura Fraga de Almeida Sampaio). 11.ed. São Paulo: Edições Loyola.

LAFETÁ, João Luiz. (2000). 1930: A crítica e o Modernismo. São Paulo: Livraria Duas Cidades, Editora 34.

LOBATO, Monteiro. (1961). Velha Praga. In: Urupês (Obras completas, vol. 1). se. São Paulo: Brasiliense.

LOBATO. (1961). Urupês. In: Urupês (Obras completas, vol. 1). se. São Paulo: Brasiliense.

SAID, Edward W. (1991). O Orientalismo revisto (1986). In: Pós-modernismo e política. HOLLANDA, Heloísa Buarque de (org.). Rio de Janeiro, Rocco.

SCHWARZ. Roberto. (1988). As idéias fora do lugar. In: As idéias fora do lugar. 3.ed. São Paulo: Livraria Duas Cidades.

WEBER, João Hernesto. (1976). Do Modernismo à nova narrativa. Porto Alegre: Metrópole, Instituto Estadual do Livro.

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[1] Alguns críticos contestam Freyre exatamente nesse ponto. Para aqueles, o que Gilberto Freyre fez em Sobrados e Mucambos foi descrever ruas, doces, meios de transporte e vestimenta, sem, contudo, ressaltar o modo de viver e pensar da sociedade patriarcal brasileira como um todo.

[2] Não se pode deixar de citar o indígena que, se não deixou muitos valores artísticos, — argumento que de mais adiante rediscutirei —, deixou na culinária e no vocabulário do brasileiro em vastas proporções, a tal ponto de aproximadamente 45% das expressões que se conhecem hoje no português brasileiro serem originárias da língua geral, falada pela maioria absoluta da população até meados do século XIX.

[3] Para uma explicitação, ver o trecho extraído de Sobrados e Mucambos (op.cit), p. 430: Para os ocidentalistas, o que o Brasil necessitava era do que um deles, regogizado com a violenta destruição das gelosias nos sobrados do Rio de Janeiro, em 1809, chamava expressivamente de “desassombramento”. Desassombramento através do vidro inglês nas casa e nas carruagens ainda orientalmente revestidas de gelosias e cortinas: as casas de “grade de xadrês” que a Walsh recordaram a dos turcos. Desassombramentos nas cidades, através de ruas largas como as do Ocidente, que substituíssem os becos orientalmente estreitos do Rio de Janeiro, de Salvador, de Recife, de São Luiz do Maranhão, de São Paulo, de Olinda, de todos os burgos antigos do País. Desassombramento nas igrejas, através da substituição, pelas senhoras, de capas, mantos, mantilhas ou xales orientalmente espessos, por transparentes véus franceses que não escondessem os encantos de rosto e de peito das iaiás. (...)

[4] Não que os dois se dissociem inteiramente, na medida em que uma mudança estética é, também, ideológica.

[5] Ver WEBER, João Hernesto. Do Modernismo à nova narrativa. Porto Alegre: Metrópole, Instituto Estadual do Livro, 1976.

[6] Os outros dois são, respectivamente, Jeca Tatu: a ressurreição (1918) e Zé Brasil (1947) e não interessam para a leitura pretendida neste trabalho.

[7] Freyre usa ocidentalistas e Said orientalistas.

[8] Expressão adotada pelo próprio Freyre.