"NÃO VOU CHORAR"

“NÃO VOU CHORAR.”

Especificamente nos meses de julho e agosto, entretanto não se excluam períodos eventuais, no Rio Grande do Sul, por impulsos e caprichos da natureza, somos penalizados, e o é inevitável, com fortes e intensas chuvas que impõem devastadores agravos, em especial a regiões ribeirinhas, de encostas, sujeitas a deslizamentos e/ou desprovidas de deflúvio. Raros os municípios que não são agredidos pela ferocidade das águas ou pela voracidade dos ventos.

Deplora-se não o fenômeno, uma vez que pouco ou quase nada podemos fazer para elidi-lo, mas sim como enfrentá-lo ou minimizar o ímpeto de sua fúria, o alcance de sua chibata. Aguaceiros e ventanias retornam mais cedo do que pensamos. A turbulência escala paredes, fenda débeis rebocos, compromete e desmantela coberturas, enlameia e inutiliza os móveis, enloda víveres e vestes, sulca veredas de chão batido, devasta lavouras, e emurchece as almas. Veículos são arrastados, árvores desenraizadas, redes elétricas danificadas, pontes imergem – adentrando ao solo –, e sobre os telhados, entanguidos, cachorros e aves esperam socorro. E podemos afirmar, sem incorrer em erro, que antes da tomada de providências indispensáveis, as mesmas plagas serão impiedosamente alagadas e dizimadas. As chagas não chegam a cicatrizar.

Aluviões não escolhem dia nem hora para demonstrar o vigor de suas garras. Num átimo, as alturas se toldam, as nuvens se entristecem e a borrasca, impiedosamente, precipita-se. O lirismo de saudosas gotas, escorrendo pelas vidraças, aos trancos, se esvai pelos ralos semi-obstruídos. As bocas-de-lobo, atulhadas com garrafas pet, calçados, brinquedos e embalagens plásticas opõem-se ao escoamento. As águas sobem as calçadas, invadem as casas. Do aguaçal chega-se ao atoleiro e deste ao banhado. As cargas-d’água, quase sempre, escolhem as horas mortas. Apanham-nos no torpor do sono, de camisola ou pijama, com o cabelo desgrenhado, acentuando o indefensável.

Quando pressionados a abandonar áreas de risco, muitos moradores se negam. Temem, pela ação de vândalos, perder o pouco de que dispõe ou lhes resta. Por vezes, as prestações ainda em andamento, asfixiando acanhados recursos, limitam as refeições a um minguado café bebido com pão de três dias, enquanto sofás, camas e colchões, esfrangalhados, acumulam-se nas calçadas barrentas. Se o tempo permite, se a força se agrega, ao bancos e mesas pertences se elevam: quem sabe escapem ilesos. O atlético soldado, desafiando correntes, cabresteia o batel, conduzindo idosos sem comando de pernas. Cobras, peixes e répteis, placidamente, esgueiram-se por ondas lutulentas.

É deplorável, embora pressionados pelas perdas, que móveis e objetos danificados sejam depositados em via pública, atribuindo-se à municipalidade o dever do recolhimento. Agrava-se o fluxo, já então comprometido. E o que fazer com os despojos dessa insana luta? Quem os recolhe? Onde colocá-los? Passou-se a erguer depósitos de esbulhos em cada palmo de chão baldio.

Por que se expor a reeditadas vergastas? Que procedimentos são oportunizados para apoucar o flagelo?

Através da Defesa Civil, Corpo de Bombeiros e entidades assistenciais, e particularmente segmentos religiosos, propicia-se a guarida, provisoriamente, em escolas, ginásios, clubes e igrejas. A comunidade, clubes de serviço, órgãos governamentais e segmentos empresariais mobilizam-se. Alimentos básicos, medicamentos – em especial vacinas –, roupas e calçados minimizam dores e pesadas consciências. E lastimar que muitas doações jamais chegarão a seu destino; algumas serão comercializadas, e tantas outras ficarão relegadas à incúria. Frágeis construções cobrem-se com lona preta: lacrimosas viúvas a prantear seus entes. As telhas, quem sabem, se houver vantagem política, virão mais adiante.

Uma ou duas semanas e as águas retornam ao leito. Deixam fissuras que se acastelam a chagas que se tornaram perenes. O desejo de voltar ao paupérrimo casebre ou à aquinhoada moradia faz com que, em parte, o mau fado seja minorado. Lavar, limpar, selecionar, remendar, descartar, chorar, sonhar, recomeçar.

Almejar um lugar que não seja suscetível a tragédias parece-nos fazer parte dos direitos irremovíveis de cidadania. Utopia? Quimeras? Quem sabe?! Os que estiverem dispostos a transferirem-se terão condições de fazê-lo? A municipalidade garante-lhes as condições mínimas? Por certo não. Muitos já se acomodaram: perderam a esperança e se acostumaram à fatalidade. Convém-lhes ficar. Os entraves incorporam-se ao ‘modus vivendi’. Por que mudar?

Sabe-se que os obstáculos, criados pela falta de drenagem, pela ausência de bueiros, por tubulações inadequadas que impedem a vazão, bem como pela privação de saneamento básico, não podem ser eliminados a não ser pela vontade pessoal e política, aliada à colaboração comunitária. E não se o faz em uma gestão. Contudo, havendo disposição, sempre é possível ajustar as velas ao sopro do vento. A não ser que as promessas de campanha necessitem permanecer indenes, de tal sorte que o verbo seja exercitado, demagogicamente, de quatro em quatro anos, como instrumentos de engodo. Para cada promessa: centenas de crédulos.

Inquirido por uma apresentadora de conceituado programa televisivo, que por certo já fez as mesmas perguntas inúmeras vezes e ainda as fará, Marcos, modesto auxiliar de pedreiro, com ocupações temporárias, mulher, três filhos (um há pouco parido), casebre com três peças, comentando a reincidência das perdas, demonstrando aparente conformismo, após um longo suspiro filosófico, limitou-se a afirmar, numa ironia tupiniquim, que o único recurso seria ter forças para recomeçar. A chuva levara quase tudo, salvo a esperança. Mas não iria chorar, pois as lágrimas poderiam elevar o nível das águas, acentuando a adversidade.

Jorge Moraes - jorgemoraes_pel@hotmail.com - agosto de 2015