ALELUIA

ALELUIA

Sábado. Angélicas carinhas, roupa de dormir, olhares sequiosos, trôpegos passos, seguirão, domingo pela manhã, em talco ou farinha, avidamente, as pegadas do coelhinho. Exibirão exultantes cestas de vime, plástico ou de papelão; entre a palha e algodão, coelhos e barras em chocolate, doces de leite, guloseimas. Os menos aquinhoados festejarão com ovos de açúcar, pirolitos, pipoca-doce, caramelos e balas de goma. Reminiscências...

Ao sabor de um “amargo”, verdejante e topetuto, parceiro silente que de há muito dá guarida a nossas confidências, despacito, enquanto um chuvisco nostálgico entoa cantigas dolentes, a goles curtos, permitimo-nos sorver recordações.

O pensamento retroage na esperança de que o caminho não tenha ‘pedras’. Filhos, o espelho, fotos e os brancos cabelos nos mostram que o tempo não ficou inerte. A face evidencia nas marcas distâncias e saudade. Se os anos não passam por nós, nós passamos por eles. A mente se aguça. O esquecimento é uma cortina pesada, e nem sempre a debilidade das mãos consegue removê-la. A fantasia e a realidade vestem-se por igual, abraçam-se, confundem-se, embaralham-nos. A frustração é uma taça cujo líquido é intragável. A garoa persiste.

Nos tempos de antigamente, na Sexta-feira Santa, evitava-se o uso de martelo, facas ou tesoura. Nas igrejas católicas e casas de famílias abonadas cobriam-se as imagens de anjos e santos com mantos e toalhas sedosos, em preto ou roxo. Os espelhos de parede também eram encobertos. Poucos iam às ruas, e o faziam com sobriedade nas vestes. Recomendava-se que não houvesse ordenha e os terneiros fossem soltos a campo. A ingestão de leite limitava-se a crianças, doentes, grávidas e aos idosos. Com exceção do enfatizado nas escolas, Páscoa nada mais era do que a chegada do coelhinho, e, por decorrência fartura de gulodices. O doce sabor tornou o chimarrão menos amargo.

Ainda, rádios, em programação especial, divulgavam mensagens evangélicas e músicas sacras. Emissoras das capitais do Estado faziam-se ouvir com sobriedade e comedimento. Preservava-se falar em voz baixa, evitando-se risos desabridos. Mulheres, com longos cabelos, deixavam de penteá-los: limitavam-se a prendê-los. A meninada dava folga à bola de meia, de borracha, ao bodoque, bola de gude e carrinhos de lomba. O esquecimento, diante de tantas regras, levou-nos, por força de espontaneidade, a assobiar conhecida composição popular. A desatenção, interpretada como deboche, valeu-nos, no dia seguinte, memoráveis, doloridas e inesquecíveis chineladas. As lágrimas de ontem regaram a saudade do hoje.

Embora houvesse, nas quartas-feiras, durante a Quaresma, abstinência de carne de animais de sangue quente, fazíamos restrições apenas na Sexta-feira Santa: bolinhos de peixe, peixe ensopado, moqueca, postas cozidas ou fritas, tortas com sardinha, batatas cozidas. Papai, a seu modo, brindava a fartura da refeição com generosos copos de vinho tinto. Por certo jamais entrou numa igreja: a religiosidade chegara-lhe por intuição. A quem não lembra, a Quaresma é um período de quarenta dias que antecedem a Páscoa. Comemorada no domingo e praticada desde o século IV. A Quaresma começa na quarta-feira de cinzas e termina no domingo de Ramos, anterior ao domingo de Páscoa.

Sábado, outrora, rompia-se, perto das dez horas da manhã, a Aleluia. Paradoxalmente, ao crepitar dos fogos, sublimando louvores ao Senhor, uma varinha de marmelo, delicadamente, ajuizava as ‘malcriações’ e deslizes, lembrados religiosamente. Hoje poucos realizam a malhação ou queima de Judas. Era uma tradição das comunidades católicas e ortodoxas. Foi introduzida na América Latina pelos espanhóis e portugueses. Simboliza a morte de Judas Iscariotes. Consistia em surrar um boneco do tamanho de um homem, forrado de serragem, palha, trapos ou jornal. Habitualmente enfeitava-se o boneco com máscaras ou placas com o nome de políticos ou personalidades repelidas pelo povo e ao meio-dia ateava-se fogo. A chuva persevera, mas a água para o mate chegou ao fim.

Jorge Moraes – maio de 2017 – jorgemoraes_pel@hotmail.com