Quando os legados dos pais moldam o caráter do filho

Sobre o jornal,

Um par de lentes saturada da vida.

Presume-se que seja por ler tantas tragédias.

"Não quero ser lembrada como a menina que levou tiros. Quero ser lembrada como a menina que não baixou a cabeça". - Malala

"A educação é o caminho para salvar vidas, construir a paz e fortalecer os jovens. Essa é a lição que Malala e outros milhões como ela estão tentando ensinar ao mundo". - Ban ki-moon

Contextualização: Da rebeldia nasce o gênio; pessoas comuns, pouco ou nada acrescentam, ou mesmo contribuem para o todo. Nascem banguelas, humildes e ingênuas, para mais tarde, após longas décadas, morrerem com dentição de porcelana perfeita, megalomaníacas, endinheiradas e maquiavélicas. Deveras, a rebeldia é uma maneira de altruísmo afetuoso e através dela, nasce o gênio.

Embora tenha recebido o prêmio Nobel da Paz em 2014, nunca havia interessado-me em ler nada sobre Malala, a adolescente que foi baleada e quase teve a vida ceifada pelo Talibã; até que de súbito, fuçando um sebo daqueles fétidos, com longos corredores mal iluminados, ladeados por um emaranhado de prateleiras, tipo ninhos de ratos, com filhotes de páginas ululando carcomidos pelo tempo, deparei-me com o livro: "Eu sou Malala", de mais de 300 páginas saltou-me às vistas. Varri com os olhos a introdução na orelha de capa, nada de excepcional; e se não fosse a frase/prefácio: "A todas as garotas que enfrentaram a injustiça e foram silenciadas. Juntas seremos ouvidas", provavelmente, não o compraria.

Sem titubear, botei-o na capanga e corri para o meu refúgio; sobretudo, recordei que lendo sobre as recomendações dos velhos sábios, o que não se sabe com certa profundidade, nada deve-se dizer sobre. Mais: enviezados, dizem eles que calar-se diante do falso alarido, é a maior conquista dos sábios modernos em um mundo "globalizado"; pois, globalizando o que querem, mentiras e verdades se fundem, cuja finalidade é confundir os acomodados falazes de conhecimento. Destarte, teria eu que ler alguma coisa sobre a adolescente que ganhou notoriedade mundial com sua postura aguerrida, corajosa, ousada, destemida de não se calar frente aos caos proporcionado à sua família e a nação paquistanesa pelo grupo terrorista Talibã.

O livro é um híbrido de romance familiar com a biografia de cada personagem, fundido à forte tendência ao terror. E foi o terror que prevaleceu, levando Malala ser, o que foi; ao ao que é. Porém, por trás dela há um personagem que, suponho, seja desconhecido para a maioria: seu pai. E logo na página 23, Malala relata essa interação amistosa, o que caracterizaria a relação entre ambos.

"Quando eu era bebê, meu pai cantava uma música escrita pelo famoso poeta Rahmat Shat Sayel, de Pestawar. A última estrofe é assim:

Oh, Malala de Maiwand,

Ergue-te mais uma vez para fazer os patchuns entenderem o significado da honra,

Tuas palavras poéticas movem mundos,

Eu imploro, ergue-te mais uma vez."

O nome Malala foi em homenagem à Malalai, uma jovem de 17 anos, adolescente bravia que esteve presente nos campos de batalha cuidando dos feridos, levando comida e água; na ocupação inglesa contra o Afeganistão, suas raízes, seu povo. Como toda guerra que dizima os inocentes e justos que pregam a liberdade e igualdade, Malalai foi morta pelos britânicos.

O avô de Malala não gostou nem um pouco do nome pôsto pelo seu filho, na neta. Disse ele que era "um nome triste; significa luto e sofrimento". E no decorrer da leitura nota-se que bucolismo, poesia, religião, conhecimento, superação, dificuldades financeiras, investimento em capital humano, dor e sofrimento caracterizam a família de camponeses.

Seu pai era professor do ensino médio na aldeia onde moravam. Falava inglês e não só lecionava, como dominava o conceito histórico do país. Era um tipo de pessoa interessada em política, poesia, relação humana e sempre estava envolvidos em questões sociais. Embora não se qualificasse como tal, o fato dele ser um "agitador / ativista" em defesa da coletividade paquistanesa e não de grupos sectaristas, fazia dele alguém a ser seguido, um herói com caráter para Malala; que por sua vez, absorvia em essência seus legados humanos e posições políticas. Aliás, toda a família, incluindo sua mãe que era prendas do lar e os irmãos mais novos, participavam ativamente das propostas do patriarca.

"E o meu medo maior é o espelho se quebrar." fragmento final da letra "Espelho" composta por João Nogueira.

Malala era uma menina desenvolvida intelectualmente e acostumada desde cedo aos discursos em público. E numa festa de recepção aos pais em sua escola, enquanto os demais alunos sentiam-se envergonhados de apresentarem para plateia ouvinte, a educanda recitou um poema celebrando as palavras do Profeta. Aproveitando o ensejo, Malala pediu mais um minuto da atenção de professores e pais para recitar uma frase de sua autoria: "Um diamante bruto deve ser lapidado várias vezes até que se transforme numa minúscula joia"; e concluiu dizendo ao público que tal pensamento revelava a necessidade e esforço voluntário para realizar os desejos do coração. Sem revelar-se à ninguém, estava decretado a influência de seu pai sobre sua formação, tanto moral, quanto política, cultural e intelectual.

O panorama começa mudar radicalmente para pior, quando um grupo de desaforados, forasteiros e terroristas invadem o território onde Malala e família moravam. Principiando ser servos do bem, o grupo age junto aos pobres, aliá-se à religião, domina as

rádios locais e criam movimentos contra o Poder.

No entanto, as investidas não resumiam somente em atacar o Poder político, mas também o poder do conhecimento; e a escola de línguas, a qual oferecia ensino gratuito aos mais carentes e necessitados criada por seu pai com extremo sacrifício e suor, passou ser alvo dos terroristas. Contudo o professor e pacifista não desiste de sua proposta social, ao contrário, acreditando piamente que a cultura refinada e educação de qualidade pudessem revolucionar seu povo, investia cada vez mais; a ponto de a escola contar com inúmeros professores aliados.

Gil Gomes era tido como um grotesco, um brega falaz radialista de AM em meio à mídia tida intelectualizada dos anos 80, porém dava aula para o atual Datena e outros que dizem o trivial, ao iniciar e encerrar o seu programa policial, sabiamente, dizendo que "se você agir com dignidade, poderá não consertar o mundo, mas certamente será um canalha a menos". E foi exatamente isso que o pai de Malala fez em toda sua vida.

Enquanto o pai de Malala conseguia hegemonia e reconhecimento internacional como ferrenho defensor dos Direitos Humanos, principalmente por valorizar o papel da mulher na sociedade e obviamente, por defender com unhas e dentes o direitos das crianças de sexo feminino na escolas, sua família corria sério perigo de ataques dos contrários ao seu pensamento transformador.

Malala via tudo aquilo acontecendo e para aumentar o espando e temor, a família recebeu uma carta nada pacífica endereçada ao seu pai: "Você é filho de um erudito religoso, mas não é um bom muçulmano. Os mujaheddin vão encontrá-lo aonde você for". Mesmo com o perigo, ameaças e mortes de pessoas ligadas aos movimentos de libertação estivessem acontecendo na porta de sua escola, seu pai mantinha-se resoluto e não acreditava que nada aconteceria à sua família e caso as ameaças viessem ser concretizadas, seria contra ele. A verdade é que, todos estavam em meio ao fogo cruzado e em uma de suas conferências sobre o bombardeio que sua escola sofrera 3 anos antes, o patriarca chegou dizer que "Fazlullah - mentor e líder do Talibã na época - é o chefe de todos os demônios. - e perguntou aos presentes: "por que não foi capturado!?"

Certo dito popular pontua "que muito ajuda quem não atrapalha". Verdade inconteste, pois para ajudar no empreendimento, unir forças em prol de uma causa em comum, é um ou outro; mas para desagregar e separar tem uma porção. E o restante, com sua insignificância e indiferença, não fede e nem cheira. Dito que não tem nem um milímetro a ver com Malala, que abraçou a causa de seu pai; e seguindo o preceito de Malalai, foi para o campo de batalha e saiu como heroína.

Malala fazia de tudo para não demonstrar, mas as constantes ameaças a deixava aturdida, desestabilizada emocionalmente. O que é compreensível, pois era uma adolescente pueril ainda em formação, tanto física quanto psicológica. Uma adolescente em formação e mesmo aparentando maturidade de mulheres vividas, nutria em seu íntimo o medo que algo pior acontecesse à sua família. À noite, esperava seus pais dormir e corria às portas e janelas para ver se estavam realmente fechadas. Não dormia enquando não verificava todos os portões para saber se também estavam trancado com ferrolho. Imaginando que alguém pudesse entrar em sua casa, com a mesma finalidade, rondava todos os ambientes. O medo era um leão rugindo, constantemente, sem dar tréguas para sua mente.

Por sorte e salva pelos deuses da sabedoria, dois simples canalhas quase assassina uma geniosa visionária que vislumbrava novos horizontes para seu povo.

O que seu pai menos imaginava, aconteceu; e no dia 9 de outubro de 2012, voltando da escola no ônibus/caminhão que transportava os alunos, duas pessoas encapuzadas fizeram o condutor parar e como gato, escalou a parte de trás e indagou: "quem de vocês é Malala". E sem esperar que ela dissesse o porquê estava engajada no movimento: "escola e educação, indiferente ao sexo, é um direito de todos e poderia ser útil, auxiliá-los, tanto quanto suas irmãs, seus irmãos e se as tivessem, suas filhas", a adolescente de 16 anos foi alvejada com dois disparos à queima roupa na cabeça.

Existem mulheres, assim como existem ativistas, como existiu Amélia, a extinta mulher brasileira. Entretanto, com os ensinos de seu pai, Malala preferiu ser Amélia, uma aguerrida Amélia defensora de uma causa maior.

Prêmio Nobel da Paz foi dado à Malala, mas presumo que ela tenha repassado-o ao pai; pois tê-lo como mestre e professor, foi o seu mais consagrado prêmio.

Malala recebeu várias distinções internacionais, entre elas o francês Prêmio Simone de Beauvoir, pela liberdade das mulheres. Seu pai foi nomeado conselheiro especial da ONU para a Educação.

A falta de cultura refinada, ensino pensante, redemocratização da democracia, conhecimento apurado, família com estilo de família e não ajuntamento de pessoas e a falta de pai e mãe orientando e repreendendo insistentemente, pois criança criada ouvindo somente sim e delicada feito cristal intocável, não sabe o que é, e nem é dado à ela a condição de liberdade e ensino do que é conquistar por esforços próprios, é o reflexo do estupro coletivo; afinal o terror, o tráfico, o ladrão, o corrupto e o oportunista bonzinho falaz que nada faz, estão para todos que convivem em sociedade. Sociedade que nada mais é, grupos de famílias associadas que se unem para usufruir de um bem comum. Usufruir de um bem ou mal, comum, lógico; se não, não é sociedade!

Se Malala, pai e família não foram a revolução que quiseram e continuam querendo para seus irmãos mud'afora, pelo menos foi a revolução que um dia sonharam; pois apenas sonhar não basta, tem que transpirar a execução dos planos traçados no papel. Parabéns Malala e família, um dia quem a maioria caminhará sob suas pegadas!

Passou da hora de tomarem Malala e família como exemplo e reeditar, reconstruir os moldes de uma família próspera, ordeira, disciplinada e progressista. Fatalmente o resultado refletirá em sociedades mais civilizadas, mais justas, mais humanas, mais empáticas; e menos luz, câmeras, ação. Diminuindo o volume de escória lançado nos monturos, o planeta Terra agradecerá!

Mutável Gambiarreiro
Enviado por Mutável Gambiarreiro em 06/02/2019
Reeditado em 11/02/2019
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