LILIANA, A DAMA DO DESFILE FARROUPILHA DE 2021

Joaquim Moncks (*)

Conheci Liliana Cardoso, prendada musa do gauchismo – ainda não teria dez anos – no bem apresentado bolichão chamado Pulperia, noturno palco artístico situado na Travessa do Carmo, ao lado da EPATUR, centro de Porto Alegre, a capital gaúcha. Estávamos no inverno de 1985, primavera da redemocratização.

Lili era uma criaturinha linda, como todas as crianças. Chamava a atenção os seus olhinhos vivazes, a sua pouco aparente inquietude, o seu embevecimento quanto à arte da palavra, prestando atenção em tudo à sua volta, quando sentávamos à mesa pra ver o que de melhor havia em arte gauchesca naquele final dos chamados anos de chumbo, eis que convivíamos neles desde 1964, portanto, vivenciávamos os estertores do período de anormalidade democrática. Os meios de comunicação social anunciavam a abertura e a reconstrução da vida institucional do país. Fervilhavam anseios político-sociais e havia, nos diversos grupos de jovens, uma manifesta ânsia de construir um novo tempo de liberdade de palavra e ação.

A Pulperia reunia todas as possíveis tendências e pensares da gauchesca genuína, variegados legados de praticidade e até alguns gauchinhos de apartamento, que se achegavam aos recintos com suas bombachas apertadinhas e faixas atadas à cintura deixando um penduricalho que nascia na cintura e ia até o joelho. Mais lembrava a guapa vestimenta de algumas tribos indígenas do altiplano da América do Sul. José Cláudio Machado, com sua bombacha de dois panos, não perdia a oportunidade de tacar o pau em cima dos moços, quase todos estudantes universitários filhos de famílias do campo que, amiúde, à noite, peregrinavam pelos espaços culturais que lembravam as suas origens, aqui na cidade grande.

Era ponto de honra usar a pilcha gaúcha quando se ia até a Pulperia, ao João de Barro e outros bares e botecos da Cidade Baixa, que, devido ao momento, entronizaram em suas cozinhas inúmeros pratos da culinária gaúcha tais como o arroz à moda dos carreteiros, o espinhaço de ovelha, a vaca atolada, o arroz de china pobre. Muita cerveja, na primavera e no verão, algum vinho no outono e inverno, eram as preferências para bebericar. A gauchada reunia-se em intermináveis charlas, muitos namoricos, pares que rodopiavam nos pequenos palcos ao som de muita música crioula dançante.

No mais, cantarolavam dores de cotovelo na versão do gaúcho a pé, embretado monarca com cancha curta para as costumeiras estripulias juvenis. Na memória recente, o cavalo, o campo, com seus coxilhotes, lançantes e canhadas, lá nos seus sítios de médias ou pequenas propriedades rurais, nos eventuais sobressaltos frente ao incerto futuro, gozando os acalantos emocionais de suas famílias. Os pais nem tanto, mas os filhos sabiam que na capital, na grande cidade que feria suas adolescentes memórias, conseguiriam melhores oportunidades para se saírem vencedores no andejar de futuros caminhos.

Sempre havia espaço para a declamação de alguns versos regionalistas e uma lá que outra payada de frontera, com forte uso de vocábulos de raiz platina. A Pulperia e os pulpedos sazonais em alguns bairros fora do centro da capital, vale dizer, entreveros de vertentes e raízes nativistas tinham esse dom: reuniam quem gostava de pensar e prosear sobre o futuro de la "patria gaucha", recitar, sacolejar os quartos, dizer versos crioulos, fazer música cantando as agruras do campesinato, a migração rural desordenada; vivia-se a discutir poemas de cantochão, letras de música com forte apelo e conteúdos libertários, que denunciavam a falta de trabalho e de oportunidade para os que de seu nada tinham, os guetos de miséria nas periferias, etc., assuntos que serviriam de temática e de aporte para as composições musicais que pululavam no velho Rio Grande, especialmente depois da realização da 1ª Califórnia da Canção Nativa, em 1971, na idealização de Colmar Duarte e Henrique Freitas Lima e as sucessivas edições do certame, consecutivamente realizadas em Uruguaiana, na fronteira oeste do Rio Grande, sob as bênçãos do Absoluto.

Verdade é que os festivais de música regional gaúcha encantavam o público e se tornou muito comum que as iniciativas musicais locais, aquelas nascidas nos municípios, nos vários quadrantes da nação rio-grandense convergissem para a capital, sendo tema predominante em cada mesa dos arrinconados, desde o lusco-fusco do cotidiano poente, nos espaços culturais da capital. Vez em quando, violão, gaita, um bombo leguero, pandeiro e muita entrega ao churrasco com cheiro de campo e mato. Era ponto de honra, após a cerimônia de lançamento de tais eventos culturais em espaços cola-fina, dar-se uma chegada nos bolichos de hábitos e freguesia proletária, com um bom assado, muita ceva e algazarra nas calçadas, para articular parcerias, discutir temáticas, confraternizar e montar grupos para a devida participação nos festivais interioranos de música e campechana poesia.

Na Pulperia e no Bolicho do Domingão e da Helen, no Parque da Harmonia, sede informal do republicano separatista "Pátria Livre", com seus lenços pretos, inequivocamente de luto frente ao centro-federalismo emanado de Brasília, movimento este composto por desassombrados, alguns de a cavalo e uma tropilha de pés-no-chão, fundado em 1981, ambos centros de conveniência e convivência dos nativistas, regionalistas, tradicionalistas e outros entusiastas, homens e mulheres, não só embebidos do dístico ufanista da “mui leal e valerosa” Portinho dos selos e resquícios imperiais, mas também pelo espiritual de haver sido o baluarte da Campanha da Legalidade de 1961, em seu sempre pulsante perímetro central, seguidamente ocorria, lá pelas tantas, a presença de alguma prenda caseira dos noturnos frequentadores querendo saber notícias de seus consortes. Para alguns (e muitos) o ambiente representava a felicidade, o estar “com sorte”, zeloso de prazer e de futuros. E dá-le gaita, violão, canto, verso e arrasta-pé...

Foi neste clima que convivi com Liliana Cardoso, graciosa e faceira em seu impecável vestido de prenda gaúcha, que várias vezes vi chegar acompanhada de seu pai, o José Luiz Cardoso e Dona Dione, pais corujas e parceiros. Deu bonita essa guria, dizia o paciencioso Zé, meu parceiraço de ideais libertários e de credos de amor e humanidade, o pai que jamais teve dúvidas em apresentar a noite para a adolescente Lili, ao pé dos palcos da digna arte da palavra gauchesca, enquanto se formatavam sua personalidade, gostos e prioridades. Enfim, sua cabecinha de moçoila tracejava o futuro nos salões do pensamento a todo momento.

E se me corre nas veias do remissivo pensamento aquilo que falava Dona Dione: boa filha, inteligente e dedicada. Vai honrar a família!

Pois bem, é àquela mocinha que dedico a minha sincera e humilde verve, como depoente saudoso das vívidas décadas de 80/90 do séc. 20, agradecendo o amor que Liliana Cardoso tem oferecido a todos que tiveram ou têm, hoje, a oportunidade de observar a obra, a magnitude de criação, o seu poder de palavra, o seu oportuno “empoderamento” como expressão sempre jovem da mulher voltada aos meandros da arte, ciosa de sua digníssima etnia, para a qual “vidas negras importam”, enfim e ao cabo, um exímio exemplar da feminina negritude gaúcha neste início do séc. 21.

Por fim, sou um penhorado agraciado, por carinho e convite, um dos seus padrinhos do consórcio matrimonial com Solon Duarte, rica figura de amigo. Liliana Cardoso, a sempre Lili, prenda prendada e fortaleza, é a dedicada mãe de Andrés Montemuro, já moço, e de Pérola, a caçulinha.

Dia desses, talvez, Pérola vá querer usar o seu vestido de prenda, traje preferencial e de honra em todo o território do Rio Grande de São Pedro, homenagem àqueles tutores cujos atos de ancestralidade nos permitem falar de respeito e amor “a la patria gaucha”, o espírito ancestral indormido que nos permitiu chegar até aqui.

Como o Rio Grande é um rico berço de culturas, haverá, decerto, algum padrinho para documentar as raízes de Pérola Cardoso Duarte, quando chegar sua hora e vez. Porque berço ela tem e, por certo, terá futuro de comprometimento.

Passo de Torres, Santa Catarina, 31 de agosto de 2021.

(*) Joaquim Moncks é tenente coronel da BM, na reserva, professor de criminologia, advogado, poeta e ensaísta. Autor da Lei da Pilcha Gaúcha, quando deputado estadual constituinte (1989) e conselheiro honorário do Movimento Tradicionalista Gaúcho (2017).

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