O atraso da vanguarda

Wilson Correia

O termo “vanguarda” é empregado para designar as ações de grupos de artistas, intelectuais ou políticos que, fazendo a leitura da realidade vivida, colocam-se à frente de seu tempo, da mundividência prevalente e das experiências vividas pela sociedade. Agora, no confronto entre “indignados” e instituições sociais e políticas, vê-se como a “vanguarda” brasileira (em conluio incestuoso com as elites tradicionais, que sempre levaram a melhor diante do povo e dos trabalhadores) acaba adotando posturas atrasadas e antidemocráticas.

Em que consiste o atraso da dita “vanguarda” brasileira, sobretudo no campo da política partidária? Pelo que observo, a “avant-garde” política nacional dá passos para trás em três núcleos bastante sensíveis: no econômico, no controle social e no exercício do poder. Claro que essa distinção em três passos só vale para o momento didático do debate. No fundo, no fundo, eles se amalgamam de modo inextricável e terminam produzindo uma visão de mundo consubstanciadora de uma cultura e de uma ideologia também em nada vanguardistas.

Quanto ao exercício do poder, sabe-se: a polarização do mundo entre socialismo e capitalismo durante a guerra fria, o neoliberalismo e a ditadura militar brasileira, entre outros, criaram um ambiente favorável a que o ideário crítico-transformador fosse usado, à exaustão, pelos setores ditos de esquerda e que hoje integram a “vanguarda” política nacional. Ao longo das décadas de 1980 e 1990, esses setores venderam a preços populares as teses de que o capitalismo poderia ser superado e que outra sociedade possível dependia de nós. Os brasileiros acreditamos nesse discurso porque, em verdade, ele calhava com os anseios de brasileiros e brasileiras historicamente sujeitados. No poder, essa esquerda assumiu todos os princípios do capitalismo e passou a defendê-los com a mesma tenacidade do mais vetusto dos liberais. Foi aí que o povo ficou a ver navios.

Em nome desse emparelhamento, pelo qual o discurso esquerdista brasileiro e as práticas políticas partidárias assimilaram os imperativos do capital, assistimos ao longo da década de 2000 até os dias atuais a uma prática de controle social de extrema pujança, vigorosa ideologicamente e repressivamente asfixiante. Nessa linha, o custo do sistema tem sido manejado por meio do clientelismo, a título de políticas sociais, o que, em certa medida, pereniza a dependência, alimenta a pobreza e cria cordões umbilicais entre setores “proletário-precarizados” e as intenções programáticas partidárias no poder. Aí permanecem incólumes o capitalismo e sua ideologia justificadora, chamada neoliberalismo, a qual também justifica o gigantismo do mercado e a expropriação exponencial do setor financeiro em nível planetário. Sequestrados os anseios do povo por justiça social e liberdade antropológica e política, vemos a apatia nascer como efeito da aniquilação da dimensão política pelo econômico, diante da qual o fatalismo adotado pela cidadania parece ser o único caminho que resta às classes populares.

Subjaz a todo esse mecanismo de disciplinamento corporal, mental e subjetivo a relação vincular estreita entre partido no poder e interesses do sistema econômico. Hoje, o mundo se levanta contra o 1% dos donos de tudo que subjuga os 99% dos excluídos pelo sistema. Esse fato evidente e dito aos gritos ruas e praças mundo afora a tal vanguarda brasileira não enxerga, expurga quem a vê e se mantém na trilha da conquista de uma hegemonia que se quer totalizante e totalizadora, imperativa e tirânica, antidemocrática e sustentadora de novas formas de alienação. Tudo isso incrementa ainda mais o poder econômico, o qual destina aos trabalhadores e às classes populares não mais que restos econômicos sistêmicos e migalhas materiais que pingam para não faltar.

No modo como exerce o poder, na maneira como controla o povo e no jeito como se submete ao poder econômico capitalista, parece-me, nasceu e está crescendo o atraso daquele setor político partidário e de certas instituições sociais que querem compor a vanguarda brasileira. Porém, os 99% agora em campo desvelam essa realidade, reivindicam o poder político soberano necessário para se fazer ouvir e ser atendido em suas necessidades e não parecem dispostos a jogar o jogo daqueles que, há muito tempo, age entre nós como cordeiros quando, em realidade, não passam de verdadeiros lobos. Que as redes da democracia real possam prendê-los antes que seja tarde demais.