A hipocrisia

Wilson Correia

Se levarmos em conta que ‘hi-po-cri-sia’ vem do grego = ‘hupokrisía’ = desempenho de um papel, então o ‘hi-pó-cri-ta’ é um ator. Ele sabe fingir. Representar. Simular e dissimular.

Como há poucos meninos por aí dizendo que “o rei está nu”, esse ator chega ao cúmulo de representar a si mesmo, sempre encontrando platéia ‘à la’ rebanho para aplaudi-lo.

Onde encontrar esse super-ator? Na atitude, nos gestos, no não-verbal e no verbal. Sobretudo nesse segundo, em que as palavras que formulam discursos voam, nuas, até nossos ouvidos.

O tragicômico aí é quando esse ator é pego no contrapé, no ato falho, como quis Freud. Aí ele cai no disse-me-disse e se enleia na própria verborragia, muito mais que mosca em teia de aranha.

Desdizendo-se ele diz-se a si mesmo. Revela-se. Ainda que o que ele tenha dito não seja exatamente o que ele disse, justo porque o que ele acabou dizendo não disse o que ele queria dizer.

‘Homo tautologicus’, pois tautologia é pleonasmo, repetição ourobórica que não sai do círculo do mesmo para não tornar transparente a máscara que usa em sua nobre condição de ator.

Quando isso acontece é sinal de que os dispositivos da hipocrisia não funcionaram. Como o pior hipócrita é o ator fracassado, então tudo se complica e a verdade fica a ver navios.

Mas, se podemos compreender que “A hipocrisia é uma homenagem que o vício presta à virtude” (François de La Rochefoucauld), então está claro para nós o ‘script’ desse grande ator.

Na alcova, o pão-pão queijo-queijo das crenças e vícios reais; no palco social, a graciosidade e a “virtude” que o verniz do etiquetismo e do politicamente correto prescreve para todos.

Ai daquele que rompe esse invólucro e tenta ser simplesmente o que simplesmente é, entendendo, como escreveu Shakespeare: “O que ‘eu sou’ é o que me faz viver” (Henrique III).

Outro dia, Oswaldo Montenegro dava uma entrevista na televisão. Dizia ele que, em certo momento, resolveu ser outro, outra pessoa, com outro nome, outra profissão e outro tipo físico.

Quando, num belo momento, a garota que ele estava paquerando colocou uma canção dele próprio para ele ouvir, então ele, outro de si mesmo, entrou em crise e decidiu voltar à realidade.

O hipócrita, ao que parece, não faz esse périplo de ida e volta. Ele fica lá, na pele do outro, do ator, do ‘alter ego’ de si mesmo ensimesmado, escorregadio feito bola de gude em placa de gelo.

De toda forma, o hipócrita parece sempre querer ser o ser humano mais bem posicionado, que dá certo, é exitoso e se sai bem de qualquer circunstância e de qualquer situação.

Humano que sou, inconcluso, incompleto, sempre em vias de vir a ser, insatisfeito, falível, repleto de falhas e de defeitos, também não estou a salvo dos ‘scripts’ sociais.

E, concordando com Jacinto Benavente, “Às vezes procura-se parecer melhor do que se é. Outras vezes, procura-se parecer pior. Hipocrisia por hipocrisia, prefiro a segunda”.