A professora, o leão e o espetáculo

Wilson Correia

Na mitologia grega, Narciso é filho de Céfiso e Liríope, os quais levaram o menino ao oráculo Tirésias e ouviram do sacerdote que a criança teria vida longa, desde que não visse a própria face. Crescido, a deusa Nêmesis o castigou por ter rejeitado algumas moças, conduzindo-o a um lago, em cujas águas ele viu refletida a própria face, apaixonou-se por si mesmo e embasbacou com o próprio ser a ponto de cair nas águas e morrer afogado.

Do período mitológico antigo aos dias atuais muitas águas passaram sob as pontes da história. A sociedade na qual nos encontramos hoje tem sido descrita de diversas formas. A nossa é a sociedade: industrial, de consumo, de massa, disciplinar, do controle, do espetáculo, do grotesco, do ‘hobby’ de julgar, dos indivíduos, escópica, do império da imagem e do império do novo, entre outras. Trata-se da sociedade do possessivismo egóico na qual o viés escópico espetacular ganha significativa relevância. Ver, ser visto e ver-se sendo visto tornam-se trampolins para a realização do desejo de ter, ainda que isso sacrifique a dimensão ôntica humana, o ser.

Como afirma Guy Debord, que em 1967 cunhou a expressão “sociedade do espetáculo”, a “fase atual, em que a vida social está totalmente tomada pelos resultados acumulados da economia [capitalista] leva a um deslizamento generalizado do ter para o parecer”. Quando “o mundo real se transforma em simples imagens, as simples imagens tornam-se seres reais e motivações eficientes de um comportamento hipnótico” (DEBORD, G. “A sociedade do espetáculo: comentários sobre a sociedade do espetáculo”. Trad. E. dos S. Abreu. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997, p. 18).

É nesse contexto de panótico generalizado que se desenvolvem as histórias de um leão, o Ariel, e de uma professora de Santo Antônio de Jesus, interior da Bahia. O leão Ariel, reverenciado como Leão de Deus, saiu de Maringá, Paraná, e foi para São Paulo, capital. Ao longo de quase um ano, seu caso foi relatado em programas de auditórios e noticiários da televisão brasileira, sempre com voz lacrimejante, catártica e apelativa. Uma superestrutura foi montada para tentar curar Ariel. Milhares de reais foram doados à causa da saúde do leão. Até uma casa o animal ganhou. Equipes de profissionais veterinários e coligados se revezaram dia e noite para cuidar do bicho. A palavra “emoção”, tão vulgarizada atualmente, jamais foi esquecida quando o assunto era a celebridade em que se tornou o animal, até que, no final de julho, Ariel encontrou a morte. Ele foi bom personagem. Ofereceu um roteiro interessante. Contou com muita gente disposta a bater palma e a desembolsar ajuda para tentar amenizar o seu drama. Isso é quase 100% daquilo de que um espetáculo precisa. E o velho olho de Narciso esteve lá, o tempo todo, para ver, ser visto, fazer ver, até que a morte o desviasse para outro objeto de contemplação.

Enquanto o espetáculo envolvendo Ariel se desenrolava, a professora baiana foi diagnosticada com sete cistos no cérebro, os quais crescem meio milímetro por mês, implicando risco de morte. Essa mestra, pagadora de um plano de saúde chamado PLANSERV (Sistema de Assistência à Saúde dos Servidores Públicos do Estado da Bahia), teve quatro pedidos de atendimento negados. A ela ninguém destinou nenhuma ajuda. Médicos não se dispuseram a acompanhá-la diuturnamente. A mídia nem tomou conhecimento da existência dela. Só depois de um texto do pai da professora denunciar disparidades nos cuidados dedicados a Ariel e à filha dele, pela internet, é que a abnegada professora começou a receber os primeiros cuidados médicos.

Por que as coisas se passam dessa forma? –perguntei-me a mim mesmo quando soube dos casos. Suspeitei que o ocorrido em São Paulo, frenesi midiático para salvar o leão, e o que está acontecendo com a professora no interior da Bahia são casos que têm a mesma fonte: o egoísmo proprietarista e o individualismo idiota da sociedade capitalista em que nos encontramos. Em São Paulo valeu o aparecer para parecer ter. Na Bahia, imperou a falta de solidariedade e humanismo, para não colocar em perigo o Estado mínimo para os direitos sociais do cidadão, ainda que este pague escorchantes impostos e taxas, além do próprio plano que deveria garantir a seguridade em saúde a seus reais mantenedores. Em São Paulo, os imperativos do ‘marketing’ a garantir que o bem à mídia seria revertido ao bem de si próprio. Na Bahia, a negação da prática do bem em nome do salve-se quem tiver, mas igualmente circunscrito às regras do espetáculo, pois foi só o caso da professora se dar a ver que o problema começou a encontrar solução.

Incrível! Depois da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789) e da Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), deparar com acontecimentos dessa natureza é estarrecedor. Bem fazem os indianos quando cultivam o respeito a toda forma de vida sensível. Nós, pelo que a realidade nos indica, ainda vemos o mundo com os olhos de Narciso. Já não seria tempo de olharmos em outra direção? Ou será que o espetáculo natural da vida em sua simples manifestação é algo de somenos em comparação com o que a nossa mídia se transforma em televisivo e espetacular?