Público e privado: o incesto

Wilson Correia

Todos os dias surgem casos flagrantes de incesto entre público e privado. Parece ser essa cópula ilícita uma marca da mentalidade hodierna. Tanto que ninguém fica abespinhado se instituições públicas promovem eventos e ações no espaço privado, e vice-versa. Naturalizou-se um conluio que também tem outros nomes: malversação, desvio de verbas, superfaturamento e corrupção. As burras públicas que agüentem!

Sobre essa excrescência, em setembro de 2011 o jornal ‘Le Monde Diplomatique’ trouxe o resultado de pesquisas feitas por Adriana Facina, antropóloga e professora do Departamento de História da Universidade Federal Fluminense (UFF). Nas palavras dela, isso é visível no modo como o Rio de Janeiro desapropria áreas destinadas a eventos previstos para aquela capital. Lá as pessoas estão sendo arrancadas de seus locais habituais para que empresas privadas-e-estatais construam a infraestrutura de que o capital necessita para bem conduzir a realização dos acontecimentos como Jogos Mundiais Militares (2011), Ano da Juventude Católica Mundial (2013), Copa do Mundo (2014) e Jogos Olímpicos (2016).

Por conta disso, segundo Adriana Facina, “As pessoas ficam cada vez mais confinadas em seus cantos, perdem mobilidade, e isso impede associações de grupos, de coletivos, que são os que podem canalizar protestos e transformações sociais”. Por lá também ocorre a “militarização das áreas pobres”, como complementa a socióloga Vera Malaguti, secretária-geral do Instituto Carioca de Criminologia e estudiosa do tema. Segundo Vera, que fala ao mesmo Le Monde Diplomatique de setembro, isso tem sido feito mediante “despejos forçados” rotineiros, em meio aos quais “As pessoas são revistadas na entrada e na saída da favela”, buscas que se estendem às suas casas, sendo esse o projeto olímpico estatal carioca. À frente, os interesses privados coligados aos públicos.

Nessa perspectiva, Vera denuncia: “estamos voltando para o recolhimento da população de rua, um mundo de ações que remetem a um embate histórico no Rio de Janeiro, do lacerdismo, Pereira Passos, de trabalhar a pobreza como um detrito, como algo que atrapalha a imagem. E por outro lado você não tem um projeto educacional, tanto que o Rio de Janeiro é o penúltimo estado do país em termos de resultados na educação”. De fato, projeto educacional é peça da retórica universalmente empregada Brasil afora, tanto quanto o são as questões envolvendo a segurança e a saúde pública, há tempo em processo de privatização.

Vera e Facina contextualizam essas medidas dentro do processo de privatização por que passa o espaço público no Rio de Janeiro, o que, em verdade, não é diferente do que acontece em outras regiões do Brasil. É nessa leva de fatos que o povo de rua é expulso por tendas promocionais de empresas transnacionais, como a Renault: “Na verdade, estamos além do processo de privatização. É tão grande a mistura dos interesses privados com o público, que o público perdeu o sentido. Quer dizer, o bilionário Eike Batista é chamado para limpar a Lagoa Rodrigo de Freitas. Agora também tem a influência da FIFA.”

É nessa onda que instituições públicas estendem suas ações ao interior de empresas privadas, fato do qual o Rio de Janeiro é apenas uma amostra. É nessa onda que partidos políticos e servidores dos três poderes desfrutam as benesses privadas, e vice-versa. É nesse embalo que se dá o desvio de verbas, a malversação da coisa pública e a corrupção. Já não é hora de o povo organizado lutar para que público e privado sejam colocados em seus devidos lugares?