A contribuição de Chico Anysio para a desvalorização do professor

REPUBLICAÇÃO

A (des)valorização docente*

Wilson Correia**

"O material escolar mais barato que existe na

praça é o professor" (Chico Anysio).***

Por um longo tempo o programa humorístico Escolinha do Professor Raimundo, comandado por Chico Anysio, martelou na cabeça dos brasileiros a expressão "E o salário, ó!", demonstrando que era pequeno, insignificante.

Paralelo a isso, uma "turma" de alunos portadores de características desqualificadoras e depreciativas da figura dos estudantes complementava o cenário: se o professor era pobre, os alunos eram néscios.

Se algo de positivo havia naquele programa era apenas a aparente denúncia relativa à desvalorizaçao do professor e da professora por não ganharem o suficiente para terem uma vida decente, cidadã. Tirando isso, sobram aspectos muito questionáveis.

Grosso modo, aquele programa feria de morte a auto-estima docente, contribuía sobremaneira para a desvalorização do magistério, achincalava a imagem e a voz pública do professor e da professora. Foi grande, pois, o contributo da "Escolinha" (o diminutivo já não é uma intencionalidade?) para o fortalecimento do mal-estar docente e do recrudescimento da ambiguidade vivida pelos profissionais que fazem e sofrem a educação escolar em nosso país.

Hoje, o trabalho para recolocar nos eixos a auto-estima e o valor social do magistério apresenta-se-nos como um trabalho hercúleo. Ainda vivemos uma escola e uma educação de faz-de-conta, sendo os professores muitas vezes culpabilizados por coisas que são de responsabilidade do sistema econômico, do regime político e da indústria cultural que consubstanciam a ideologia que vê na burrice e no analfabetismo coisas positivas porque, permanecendo, o "statu quo"**** continua a beneficiar quem historicamente sempre foi beneficiado no Brasil.

Quanto aos estudantes, a imagem de aloprados burros serviu para reforçar o desprezo pelos estudos, coisa que, hoje, vemos em sala de aula, sobretudo quando os alunos entendem que em uma sociedade que priorizou a economia como o valor dos valores o saber não tem nada a fazer por quem que seja.

Lamentável que uma emissora que por muito tempo apregoou que "Educação é tudo" tenha feito essa campanha sistemática por décadas. Uma pena! Estudantes e professores nunca poderíamos ter aceitado pacivamente uma coisa assim.

E o homem continua. Na frase acima, ele consegue reduzir o professor à condição de "material". Pode? Até quando???

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* Do blog FiloEducação.

**Wilson Correia é filósofo, psicopedagogo e doutor em Educação pela Unicamp e Adjunto em Filosofia da Educação na Universidade Federal do Tocantins. É autor de ‘TCC não é um bicho-de-sete-cabeças’. Rio de Janeiro: Ciência Moderna: 2009.

*** Fonte da frase: www.dm.com.br, dia 25/09/2009, p. 32.

**** "Statu quo é uma expressão latina (in statu quo ante) que designa o estado atual das coisas, seja em que momento for. Emprega-se esta expressão, geralmente, para definir o estado de coisas ou situações. Na generalidade das vezes em que é utilizada, a expressão aparece como 'manter o statu quo', 'defender o statu quo' ou, ao contrário, 'mudar o statu quo'. O conceito de 'statu quo' origina-se do termo diplomático 'statu quo ante bellum', que significa 'estado actual antes da guerra'. A forma 'statu quo' é muitas vezes erroneamente usada como 'status quo', possivelmente por influência do inglês 'status' (= estado)" (http://www.babylon.com/definition/status_quo/Portuguese).

Complemento (uma transcrição)

A ideologia da Escolinha do Professor Raimundo

Roberto José Ramos

“A partir de 1990, a TV Globo começou a apresentar [Escolinha do Professor Raimundo] EPR, que ficou no ar até 1995. Neste período, o programa ganhou notoriedade pela sua singularidade. Divertia, transmitindo conhecimentos da Educação Formal. Chegou a ter seis audições semanais, tal qual o Jornal Nacional e as Telenovelas, principais programas da emissora, constituintes do seu horário nobre.

Tal qual as séries de teleducação norte-americanas, a EPR, porém em um canal comercial, funde o divertir (estar de acordo) com a transmissão de saberes, próprios da Educação Formal. Iguala os desiguais, produzindo, assim, um ‘Fait divers’ de Coincidência de Antítese, que pode ser uma estrutura invariante, supratemporal e supra-espacial de sua linguagem. (...)

A EPR era o quadro de maior sucesso de Chico Anysio Show. O humorista sugeriu a sua transformação em um novo programa, independente, tendo a aceitação da direção da Globo. A estréia aconteceu em 4 de agosto de 1990. Na época, ANYSIO (1990:4) comentou: ‘Com ela, não se está fazendo uma tentativa. É um sorvete gelado no calor’.

A certeza de Anysio do sucesso da EPR foi fixada por uma metalinguagem. Houve a aproximação de ‘sorvete gelado’ com ‘calor’. O ‘sorvete gelado’ é uma redundância, para aumentar o contraste com ‘calor’. São duas unidades antagônicas de sentido, sintetizadas em uma única perspectiva: o conceito da EPR. Configuram uma Antítese. Anysio, ao usar a Antítese, para conceitualizar a EPR, realizou um ‘Fait divers’ de Coincidência de Antítese. Acenou, minimamente, que essa seja a estrutura constituinte, constante, supra-espacial e supratemporal da linguagem específica do programa. Reiterou, pela metáfora, a fusão do divertir (estar de acordo) com os saberes, próprios do AIE Escolar, tal qual as séries de teleducação norte-americana, evidenciando, também, um ‘Fait divers’ de Coincidência de Antítese. (...)

ANYSIO (1981:31-40) caracteriza o perfil dos seus personagens:

‘Os meus personagens são pobres dentro da realidade brasileira (...) Nós somos um país com fome, sem roupa, um país onde não se sabe que dois mais dois são quatro, que, na verdade, já são 19, não é? A maioria é analfabeta. Eu não posso trabalhar para o cara que não paga ingresso...’

Com seriedade, o humorista consegue avaliar o subdesenvolvimento nacional, através da ausência de condições mínimas para a dignidade da sobrevivência. Mesmo fazendo a declaração na década 80, as suas constatações sobre a fome, o analfabetismo e a falta de oportunidades permanecem atuais na década 90, na aproximação do final do século XX.

O Brasil, em geral, tem norteado o seu desenvolvimento, como já foi referido anteriormente, pela Atualização Histórica. É um modelo de modernidade mais rápido, porém impõe uma dependência em relação a uma metrópole (um país industrializado). É uma perspectiva exógena de progresso, que traz aperfeiçoamento tecnológico, mas nem sempre com repercussões com as especificidades nativas dos problemas sociais.

A Atualização Histórica é uma das responsáveis pela designação de que o Brasil é uma Belíndia (mistura de Bélgica com Índia), para sublinhar o seu mapa do progresso e o seu mapa do atraso. No primeiro, é o 10º PIB (Produto Interno Bruto) do mundo, 8ª economia mundial, 8º em manufaturas, 5º em território e em produção de alimentos e o 1º em safra de soja e café, conforme CARON (1995:9).

No mapa do atraso, a realidade é outra. Aí, vem à tona todo um território, submerso de questões não-resolvidas ou mal resolvidas, em que a modernização não chegou. Dentro de suas condições feudais e pré-capitalistas, o progresso assume a fisionomia de ficção. CARON (1995:9) decodifica, estatisticamente, esta realidade:

‘(...) Em muitos estados brasileiros 45% da população entre 7 e 14 anos está fora da escola. De 1980 a 1991, no Brasil, foram assassinados 5.644 pessoas, entre 15 e 17 anos, 90% dos casos estão com investigações arquivadas. Cerca de 8 milhões de brasileiros, entre 10 e 17 anos, estão vivendo de trabalhos feitos na rua. São 500 mil meninas que se prostituem no Brasil. Morrem diariamente 850 crianças no Brasil; 18 milhões de crianças moram com famílias com renda per capita, no máximo, ¼ do salário mínimo e 15 milhões de crianças e adolescentes em abandono absoluto e 40 milhões são empobrecidos...’

Qualquer estatística deve ser relativizada. É parcial, quando restrita ao universo da quantificação apenas. Todavia, quando acompanhada pela variável qualitativa, cresce de significação. Os dados, registrados, anteriormente, se enquadram neste sentido. Resgatam os contrastes não tabulados nos índices da matemática oficial dos governos, em que as vítimas são as crianças. O futuro já está sendo abortado no presente.

Ainda que se refira ao Teatro, Anysio vincula o divertir com Valor de Troca. Detectou que o econômico, por intermédio do mercado, é o determinante, tendo o espetáculo, em suas variações, o invólucro de mercadoria. Tal assertiva ganha profundidade, quando relacionada com o AIE de Informação, especificamente a Televisão, e a sua dimensão universalizante. Aristófanes consagrou a Comédia pela caricatura das personalidades importantes da Grécia. Através deste recurso, as reduzia ao tamanho da desimportância. Mesmo que a liberdade da crítica fosse legitimadora da democracia ateniente, o espetáculo, ainda que cooptado, possuía uma possibilidade de questionamento, como já foi referido.

Anysio utiliza, genericamente, os recursos de Aristófanes, mas em outro sentido. Está submetido ao Valor de Troca, solicitado pelos patrocinadores, pela audiência e pelos interesses televisivos. Constitui os seus personagens, caricaturizando os pobres. Estes são o seu público-alvo, as classes ‘D’ e ‘E’, para que possam se sentirem interpelados, se reconhecerem e se submeterem ao Divertimento.

Com tais assujeitamentos, o Divertimento, no AIE de Informação, no caso da Televisão, assume uma abordagem particularizada, devido ao envolvimento de alta tecnologia, a presença do grande capital e, em conseqüência, dos interesses em jogo. Torna-se o ‘estar de acordo’, segundo Adorno e Horkheimer. Possui o sentido de adesão consentida ao instituído, não para fugir da negação, mas para negar a sua possibilidade de sobrevivência.

Um dos precursores do gênero foi Vital Fernandes da Silva, Nhô Totico. Ele criou a Escolinha da Dona Olinda, uma professora de bons modos, no Rádio, na década de 30. Entre os alunos, havia o ‘Minguinho, Flor de Estufa, o filho do doutor; Mingote, o nordestino; Mingau, o italiano; Seu Jorge, o preto velho; Sebastião, o caipira; Socorro, o japonês; e Manoel, o português’, de acordo com PIOVEZAN E SOLATO (1992:74).

Vital Fernandes da Silva ficou conhecido como Nhô Totico, nome do seu principal personagem por força do seu sucesso. Os seus programas, Escolinha da Dona Olinda e Vila da Arrelia, nas rádios Cultura e América, obtiveram êxito junto ao público. Exibiam personagens, feitos de improviso, e representativos da sociedade paulistana da época, conforme PORTO (1988).

A Escolinha da Dona Olinda divertia, ao caricaturizar a Educação Formal. A representatividade dos personagens já evidenciava, o Rádio, como empresa, submetido ao Valor de Troca. Ele era a principal peça do AIE de Informação, tendo um concorrente no AIE Escolar, sistematizado pela Revolução de 30. Ambos reproduzem a Ideologia Dominante, mas antagônicos por serem empresas, que, mesmo com as suas especificidades, disputam mercados e a hegemonia na sociedade.

Tal qual Nhô Totico, Anysio contabiliza uma carreira vitoriosa. Soma 50 anos de profissão, dos quais 34 anos são de sucessos ininterruptos na Televisão. Possui uma galeria de 188 personagens, criados para os mais diferentes programas, onde tem atuado como diretor, ator e redator. A EPR mimetiza uma sala de aula, com todo o seu equipamento característico. Apresentava um quadro-negro, mas de pouca utilização. Não existiam classes, porém cadeiras, sem oferecer maiores condições para escrever. O prédio possuía, ainda algumas janelas e uma porta.

O Professor Raimundo (Chico Anysio) encarna algumas características bem notórias. Ele não ensina nada. Apenas dá as respostas corretas, quando os alunos não sabem responder às questões, que propõe. As perguntas, em geral, são abrangentes, pluralizando as mais diferentes áreas do conhecimento.

Não há nenhuma especificação a respeito de grau, série ou nível. Na generalidade, os alunos são todos adultos. Alguns, inclusive, com idade avançada, representativos da sociedade brasileira, em termos étnicos e culturais, predominando os pobres, as classes ‘D’ e ‘E’, o público-alvo do programa.

RIBEIRO (1992:25) faz uma analogia do programa com a situação do 1º Grau, sobretudo nas quatro séries iniciais, unidocentes:

‘O primeiro ponto que nos chama a atenção é a constatação de que o professor não ensina nada a seus alunos, apenas cobra conhecimentos. Em seguida, observamos que os alunos nada sabem e sua avaliação redunda, em sua esmagadora maioria, num conceito nulo. A exceção fica por conta de um único aluno que o professor gostaria que fosse seu filho e que, na vida, é realmente filho do humorista; sabe tudo e só pode ter aprendido em casa. Outro fato que causa espécie é o tipo de avaliação a que são submetidos os alunos: pura memorização, em grande parte, inúteis no mundo de hoje...’

Ribeiro indica aspectos importantes. O melhor aluno, Ptolomeu, é interpretado por Nizo Neto, filho de Anysio. As dimensões da ficção e da realidade estão mescladas. São Antíteses, unificadas em uma mesma perspectiva. Tal estrutura é um ‘Fait divers’ de Coincidência de Antítese.

O Conselho de Educação do Rio de Janeiro denunciou, em 1993, ‘os programas de TV que desmoralizam o professor e desmoralizam a instituição escolar’. Um dos seus integrantes, o reitor do Mosteiro de São Bento, Dom Lourenço de Almeida Prado (1993:9) realçou as imagens negativas:

‘...O próprio fato de o professor tratar as ações infantis nas medidas infantis, como levar a sério as pequenas faltas da criança, torna fácil mostrá-lo como ingênuo ou tolo. Em relação à atividade escolar, também, se tende a mostrar o esperto, como triunfante, e o bom aluno, como meio alienado, o que é uma lástima. Já não falo dessa Escola do Professor Raimundo. Aí, já não é mais a escola a ultrajada; é a própria dignidade da criatura humana. E uma afronta à nobreza é a apresentação do homo sapiens, como uma criatura, por natureza, ignóbil’.

Os depoimentos, em suas particularidades, sinalizam o mesmo sentido. Referem a abordagem negativa, dispensada à Educação Formal. Parece que, ao caricaturizar o universo de uma sala de aula, a EPR acaba tornando-a desimportante, tal qual procedia Aristófanes a respeito das autoridades atenienses.

Ainda que seja possível encontrar semelhanças com o 1º Grau por ações pedagógicas do Behaviorismo com alguns alunos, não é pertinente a generalização. Com outros alunos, há procedimentos do Construtivismo, como a valorização da dialogicidade. São duas propostas pedagógicas distintas, usadas pelo mesmo professor, na mesma sala de aula, com a mesma turma. As Antíteses aparecem unificadas. Existe a estruturação de outro ‘Fait divers’ de Coincidência de Antítese.

De outro lado, ASCHER (1993:4) avalia a qualificação do programa, destacando uma virtude e um defeito. Considera o seu texto ‘rataquera’, dirigido a um ‘público amplo e tradicional: um espectador informado, dificilmente, encontrará nele uma piada desconhecida’. Entretanto, ‘capricha nos atores, na atuação e no improviso de comediantes experientes’.

O problema do texto acaba esvaziando a importância da transmissão de informações da Educação Formal. O tipo de saber, que circula na EPR, está comprometido com uma generalidade, marcada pela superficialidade. Abrange o ensino no todo, porém não consegue singularizar, na especificidade, nenhum grau ou nenhum nível.

A amplitude atende ao comprometimento com o Valor de Troca. É preciso ter uma audiência massificante, para garantir patrocínios. O texto ‘rataquera’ está embalado pelos rótulos desses interesses, buscando interpelar e ser reconhecido, sobretudo, pelas classes ‘D’ e ‘E’, com um baixo nível de informação e com poucas possibilidades de instrução.

A virtude, sublinhada por Ascher, é pertinente. O programa ensejou uma contribuição contra a discriminação da velhice. Deu emprego para humoristas tradicionais, cujas idades avançadas fechavam as portas do mercado de trabalho em nome de uma pretensa estética televisiva, mais um sinônimo de frivolidade do que de criatividade. A interpretação e o improviso dos atores representaram apelos de autenticidade, compatíveis com a audiência do público-alvo” (RAMOS, Roberto José. “A ideologia da Escolinha do Professor Paimundo”. Porto Alegre: PUC, 2008, p. 149-158. Disponível em: <http://serv01.informacao.andi.org.br/b6d71ce_114f59a64cd_-7fb5.pdf>). Acesso em: 23.3.2012.