Sobre os nossos erros

Wilson Correia

Um estimado colega professor me envia texto de Cristovam Buarque, o qual, mesmo intitulado “Escolhas certas”, salpica em seus parágrafos os cruciais erros históricos que cometemos e continuamos a cometer. Meu colega diz: “li o brilhante texto abaixo e me lembrei dos que você escreve. Daí pensei que você também possa gostar dele e, quem sabe, ele o inspire a escrever algum”*. Gostei, sim, meu caro. E aproveito a “deixa” para registrar aqui alguns outros erros que têm me incomodado ultimamente.

Antes, porém, lembro que, no plano mais geral, na obra ’A Gaia Ciência’, Nietzsche, em sua ferina crítica antropo-epistêmica à Modernidade, afirma que a educação ocidental moderna foi levada a cabo sob a marca de quatro erros: 1 a noção de imperfeição humana; 2 a insistência de o humano lançar mão da fantasia para atribuir-se qualidades fabulares; 3 a ânsia do homem e da mulher modernos de assumirem-se hierarquicamente superiores em relação aos outros animais e à natureza; 4 a determinação humana de criar tábuas de valores cunhados como eternos. “Se se abstrair o efeito desses quatro erros”, sustenta Nietzsche, “abstrair-se-á também a humanidade, a natureza humana e a ‘dignidade humana’” (NIETZSCHE, 1998, p. 132).

O conceito abstrato de homem foi “enriquecido” por três outros erros, esses no âmbito do saber científico racional inteiramente desencarnado: 1 a crença de que o caminho do conhecimento científico nos levaria à compreensão e ao alcance da bondade e sabedoria de Deus; 2 o cientificismo, que atribui ao saber científico a tarefa de revestir-se de uma utilidade absoluta; 3 o fato de termos qualificado a ciência como tarefa altruísta, inofensiva e autossuficiente” (NIETZSCHE, 1998, p. 51).

Se a ilusão de um saber puramente racional e tecnocrático nos lançou na negação de um saber encarnado, corporalmente produzido, mediado por afetos, percepções, Terra, valores, vontade e vida, urge, então, que, em um plano mais específico, invistamos no conhecimento produzido desde nossas entranhas para com ele darmos conta do que integralmente somos e podemos ser.

É aí, então, provocado por esse chacoalhão nietzschiano, que penso nos erros que nossa política para o ensino superior tem assumido e sustentado com a força do poder do Estado, por governos que intentam projetos de hegemonia política em detrimento de uma política educacional de Estado, em rechaço do desafio de construirmos uma nação realmente republicana e um também republicano projeto de Brasil.

O primeiro erro que percebo nesse contexto é o estilhaçamento da autonomia universitária, em cujo vácuo surge o a universidade organizacional e operacional a serviço de políticas partidárias, sindicais, de corporações e do mercado. Hoje, se a universidade é instrumentalizada para atender a interesses de grupos que tratam o bem comum como se próprio fosse e que se curva ante os imperativos mercadológicos, tudo está bem e pode continuar ao bel prazer de todos os poderes de plantão.

O segundo erro, decorrente do primeiro, foi termos introduzido em nossas práticas universitárias o princípio da competitividade como ideia reguladora de nossa produção nos níveis do ensino, da pesquisa e da extensão. Nesse campo, o projeto de formação humana foi substituído pelo projeto dos resultados. O professor que se mata para ter seu projeto aprovado, para “atrair recursos”; o aluno que se entrega apenas à busca de nota e presença em nossas disciplinas; o servidor técnico-administrativo que digladia com colegas por cargos, todos estamos servindo a esse processo no qual, vendida a coisa pública, também nos vendemos de roldão, em um processo ininterrupto de alienação onde a vigilância contra o servilismo de toda espécie deveria ser nossa tarefa principal.

O terceiro erro, conexo aos dois anteriores, é aquele que sobrepõe a quantidade onde deveria imperar a busca da qualidade. Hoje, pouco importa se estudante sai do ensino médio ostentando a condição de analfabeto funcional; não incomoda a correria das urgências professorais, desde que o projeto e a obtenção de recursos sejam garantidos, mesmo se isso aniquila as possibilidades da construção de um pensamento consequente em nossas aulas e atividades de pesquisa e extensão; não causa espécie, ainda, se gestores das instituições educativas se filiem entre si por conta de programáticas políticas locais, regionais, nacionais e internacionais, valendo, aí, até as afiliações que rifam a competência em nome de quaisquer pertencimentos, os quais norteiam os diversos “quefazeres” de que nossa vida acadêmica necessita. “Qualidade humana, social, institucional e administrativa em nossa universidade? Que nada! Está do meu lado, que venha do jeito que vier...”.

É preocupante viver em um período histórico em que a imperfeição humana recebe a tentativa de superação pelo viés tecnocientífico e que lhe tolhe a incompletude ôntica de raiz. É lamentável ver a espécie humana na condição de pequenos deuses terráqueos, avessamente agarrada a valores que lhe subtraem o éter, a vida do espírito e da cultura que poderia projetá-lo para além da “cesta básica”, da “bolsa isso e aquilo”, do lucro descomedido, da entrega ao fictício capital de todos os matizes e às corrupções que nos enojam o dia todo e todos os dias.

Mais preocupante do que tudo isso, torna-se lamentável assistirmos a universidade legitimando práticas que passam ao largo do homem e da mulher concretos que habitam nosso cotidiano, dada a um tecnocientificismo que não ultrapassa o fim em si mesmo, alheio a valores que, esquecidos, poderiam alimentar práticas humanas e sociais enraizadas em nossos valores concretos e que, na universidade, nos pedem cooperação, solidariedade, compartilhamento da existência e produção comum de um destino rumo ao vir-a-ser que nos projete para além de meros consumidores, cidadãos de uma falsa democracia e alimentadores de um modo material de produção da vida que só produz dignidade para alguns, sempre à custa da morte de centenas de milhares de humanos para alimentarmos a lógica da propriedade privada, da acumulação e da riqueza pela riqueza e nada mais.

Em uma democracia em que as instituições sociais se divorciaram do povo, da rua e do quintal de nossas comunidades, parece fácil perpetrar o engodo, a defraudação e o aniquilamento dos direitos sociais. Em lugar desses valores, também parece sopa no mel essa tara pela heterônoma obediência aos interesses externos à universidade, submetendo a todos ao imperativo de um competitivismo que não nos garantem um destino e que nos quer fazer aceitar que, na impossibilidade de investirmos em qualidade, que nos contentemos com a quantidade. E que fiquemos calados perante esse embuste: fazer-nos ouvir pode nos custar até o pouco que temos e nos impingir o isolamento, a alcunha de loucos, a exclusão e a pecha de ultrapassados e inimigos figadais de quem trata a universidade como se ela fosse cozinha de sua casa ou o cantinho de seu privado quintal.

Referência bibliográfica

NIETZSCHE, Friedrich. A Gaia Ciência. Trad. M. H. R. Carvalho & outros. Lisboa: Relógio D’Água, 1998.

* Escolhas certas : Cristovam Buarque 10-mar-2012

O destino de cada pessoa depende, em grande parte, das escolhas que ela faz ao longo de sua vida; além de fatores sobre os quais não tem controle. No caso das nações, salvo acidentes naturais, o destino depende inteiramente das decisões tomadas de maneira coletiva pela sociedade.

A realidade brasileira é o resultado de nossas decisões no passado. E, pelo que vemos da nossa realidade, muitas escolhas foram erradas.

Erramos quando, em nome do novo Brasil que surgia, Portugal escolheu o caminho do latifúndio, do açúcar e da escravidão, em vez de uma economia voltada para o mercado interno, produção em pequenas propriedades, como no Norte dos Estados Unidos da América.

Fizemos também a escolha errada ao abandonarmos a educação, proibirmos gráficas e jornais, quase que impondo o analfabetismo pleno ou funcional a todo o novo país. Foram escolhas erradas.

Quando ficamos independentes, fizemos escolhas erradas ao manter a escravidão por longos 70 anos, com a mesma economia agrária exportadora, latifundiária, com o mesmo abandono da educação. Escolhemos erradamente não distribuir terra aos escravos libertos, não lhes garantir direito algum, nem educar os seus filhos.

Modernamente, fizemos a escolha errada ao abandonar os sistemas de transporte ferroviário e fluvial pela opção da indústria automobilística como o motor do progresso. Esta escolha marcou o Brasil, induzindo ao endividamento, à concentração da renda para viabilizar a demanda dos novos bens industriais de alto valor.

Fizemos a escolha errada de basear nossa indústria em tecnologias importadas intensivas, por meio de capital que não tínhamos, e dispensando a mão de obra que tínhamos sobrando.

Erramos na escolha de consumir, em vez de poupar; de desmatar, em vez de proteger as florestas; de forçar uma urbanização apressada, em vez de investir nas cidades menores. Sobretudo, erramos ao escolher a opção de financiar os custos de infraestrutura utilizando mecanismos inflacionários que corroeram o tecido social ao longo de décadas. Escolhemos erradamente a ditadura como forma de impor a continuação das escolhas erradas, em vez de apostar na democracia como a forma de corrigir os rumos com novas escolhas.

Nos últimos 20 anos, com a correta opção democrática, fizemos a escolha errada de induzir o ensino superior, enquanto abandonamos a educação de base que serve de alicerce a todo o edifício social.

Agora estamos errando na escolha de como combater a violência. Em vez de escolher a construção de uma sociedade pacífica, estamos escolhendo o caminho de garantir segurança para proteger a população rica, convivendo com a violência. Em vez de encarar o problema da violência, procurando pacificar a sociedade brasileira, optamos pelo gasto de bilhões de reais para a proteção da violência urbana ao redor.

A elite usa carros blindados; seus filhos são rodeados de seguranças nas casas e mesmo nas ruas; compra bonecos inflados, para dar a impressão de que há passageiros dentro do carro. As pessoas passam de carro diversas vezes diante das próprias casas, sem parar, para ver se há algum estranho por perto; armam-se e fazem cursos de defesa pessoal; inundam as ruas de filmadoras contra os ladrões, mas que acabam com a privacidade de todos; vivem cercados por muros e grades dos condomínios e dos shoppings; encastelam- se e aprisionam-se para obterem segurança em vez de paz.

Estas são escolhas erradas. É preciso segurança contra a violência atual, mas ela será um luta suicida se não fizermos a escolha correta de iniciarmos a construção de uma sociedade unificada e pacífica. A opção de paz, em vez de opção de segregação, consiste em menos muros e em mais pontes. Uma ponte seria a adoção de uma geração de brasileiros, com toda ela em escola de qualidade, criando uma sociedade com a produtividade do conhecimento e a consciência da paz e do respeito. Isto é preciso e é possível. Mas a nossa história mostra uma trágica preferência por escolhas erradas e parciais, prisioneiras do imediatismo, que desprezaram as escolhas definitivas e de longo prazo.

Talvez porque depois de uma, duas, três ou mais escolhas erradas a mudança do destino fica mais difícil, mesmo diante das escolhas certas.