A greve dos idiotas

Wilson Correia

Quem é o idiota? Na perspectiva etimológica, Bueno registra que o termo vem de ‘idiótes’ (idiota em latim), que designa a pessoa ‘privada’, em oposição a pessoa ‘pública’, de ‘Estado’. O elemento de composição grego ‘idi(o)-’, proveniente de ‘ídios’, quer dizer exatamente ‘próprio’, ‘pessoal’, ‘privado’ (BUENO, 2006, p. 131).

Na trilha filosófica, Deleuze e Guattari, em meio a análises do ‘cogito’ cartesiano, registram que o idiota é “aquele que diz Eu” e reafirma “Eu = Eu” (DELEUZE & GUATTARI, 1992, p. 76 e 83), sempre a observar e a reverberar os valores da ética indivíduonarcísica burguesa capitalista moderna, o qual se agarra inapelavelmente à propriedade privada e faz do próprio umbigo o seu soberano absoluto e capital.

O que é greve? Greve consiste na interrupção do trabalho por uma categoria visando a fazer seus direitos plenamente compreendidos, respeitados e atendidos. No caso de greve no meio educacional, ela é motivada quando a condição de direito social que caracteriza a educação é flagrantemente afrontada. Assim, greve de profissionais do magistério não deveria perder de vista a referencialidade social da educação.

Isso, no entanto, nem sempre acontece. A mensagem em ‘fac-símile’ a seguir evidencia como a mentalidade narcísico-burguesa vê as questões da educação, em que uma greve parece se justificar, única e exclusivamente, por existir questões salariais a serem revolvidas mediante tratativas afins com o governo responsável pelo assunto.

“Car@s colegas,

Ontem, recebi por e-mail, o mais recente Edital do Ministério de Ciência e Tecnologia. Observem com atenção a situação em que vivemos. No MCT um profissional com apenas graduação receberá, em início de carreira, R$ 5.508,15; um especialista R$ 6.445,15; um mestre R$ 7.333,15; e um doutor R$ 9.157,15.

No meu caso, professor assistente I, recebi no mês de maio de 2012, incluindo auxílio alimentação (R$ 304,00) e o auxílio a saúde suplementar (R$ 162,00), o salário bruto é de R$ 5.303,66.

Ora, apenas nesse exemplo, são exatos R$ 2.029,49 de diferença por mês. Em um ano, quando consideramos doze meses de salários mais décimo terceiro e um terço de férias totalizam R$ 27.059,86.

Em síntese, a conta é muito simples por ano estou perdendo um carro popular.

Bem, sem querer fazer piada, as inscrições do concurso se encerram no dia 16/07/2012.

Verifiquem mais informações no seguinte link:

http://www.pciconcursos.com.br/concurso/ministerio-da-ciencia-tecnologia-e-inovacao-510-vagas

Atenciosamente,

Prof. [Colega do Comando de Greve no CFP da UFRB]

(...)

P.S.: será que os colegas da APUB já fizeram essa conta?”

Nessa mensagem, por que o foco é dado à questão salarial? A questão salarial é legítima, ninguém questiona isso. Porém, ela deveria ser uma ao lado do conjunto de outras que reivindicasse, por exemplos, política de Estado para a educação e dez por cento do Produto Interno Bruto brasileiro para esse setor. Mas não! Os assuntos pessoais, particulares e privados sobressaem largamente à frente daqueles de sentido social relacionados à prática educativa.

Por que isso tem sido assim? Por que o debate nos fóruns docentes grevistas gira em torno de questões puramente individualistas? Ou de grupelhos? Ou de agremiações-ilha? Ou de movimentos que olham apenas para causas idiossincráticas? Por que diabos Narciso se encarnou em nós qual encosto e teima em falar pela nossa boca, ver com os nossos olhos e “pensar” mediante a instrumentalização de nossa faculdade cognitiva?

Talvez a raiz disso (da idiotia hodierna) esteja na concepção antropológica moderna. Desde os humanistas renascentistas o homem passou a ser visto como um indivíduo (não seccionável em corpo e alma, matéria e espírito) racional (não comandado por mitos e deuses), autônomo (legislador de si mesmo), autodeterminado (independente de qualquer força ou poder exterior ao próprio ser) e empreendedor (o ‘self made man’ que se faz por si mesmo e com as próprias forças).

Paralelamente a esse conceito antropológico, a educação foi massificada. Porém, nela passeia e atua o idiota moderno. E, aí, engrossam nossas dificuldades. De um lado encontra-se o idiota, a ‘la brasileira’, querendo ‘levar vantagem em tudo’; de outro, a massa, despossuída dos recursos necessários para fazer a análise da vida vivida e, perante ela (e nela), posicionar-se de modo a preconizar direitos sociais. Essa massa governante é feito a esponja que se deixa embeber de água, mas que não tem forças para expelir o líquido de que se deixou encharcar (ORTEGA Y GASSET, 2007; BAUDRILLARD, 1993).

Essa massa tem sido historicamente excluída do acesso a bens materiais, culturais e sociais, por conta de uma elite nacional que sempre viveu de privilégios e se vê acima da lei e da ética da ‘res pública’, do bem comum. Por isso, a massa é sempre excluída dos processos possibilitadores da apropriação de instrumentos crítico-valorativos, o que a torna presa fácil de políticas partidárias bolsificadoras da sociedade e que, mediante práticas patrimonialistas e clientelistas, submetem-na e cabresteiam-na sob o jugo de favores financeiro-estatais que pingam para não faltar.

O corolário disso é a perda da consciência sobre a dimensão pública da manutenção da vida. E isso é agravado quando figuras políticas, amparadas nos resultados de pesquisas sobre a opinião dessa massa, colocam-se acima dos partidos políticos (essenciais na democracia) para ditarem o emparelhamento ao sistema que alimenta o idiota, de um lado, e embrutece a massa, do outro.

Aquele homem idiota racional fortalecido no humanismo renascentista e que se consolidou após as revoluções burguesas é o mesmo que desreferencia-se ao se massificar ou ao se tornar o sujeito idiota esperto obtuso, que não tenta ver para além do próprio umbigo. Quando esse indivíduo adentra o campo da educação e chega a fazer greve, é ele o cara que imagina que uma greve por educação de qualidade social pode ser resumida àquilo que seu contracheque lhe evidencia –o que, de resto, é uma pena: quando aprenderemos o sentido consequente de uma educação republicana? Enquanto os idiotas se atreverem às greves, isso continuará difícil, sempre e cada vez mais.

Referências

BAUDRILLARD, J. À sombra das maiorias silenciosas: o fim do social e o surgimento das massas. 3. ed. Trad. S. Bastos. São Paulo: Brasiliense. 1993.

BUENO, M. A origem curiosa das palavras. Rio de Janeiro: José Olympio, 2006.

DELEUZE, G. & GUATTARI, F. O que é a filosofia? Trad. B. Prado Jr. e Alberto Alonso Muñoz. Rio de Janeiro: 34, 1992.

ORTEGA Y GASSET, J. A revolução das massas. Trad. A. Guerra. Lisboa: Relógio D'Água, 2007.