Voto nulo: o ‘impeachment’ direto

Wilson Correia

“Nada é impossível mudar/ Desconfiai do mais trivial, / na aparência singelo. / E examinai, sobretudo, o que parece habitual. / Suplicamos expressamente: / não aceiteis o que é de hábito como coisa natural, / pois em tempo de desordem sangrenta, / de confusão organizada, / de arbitrariedade consciente, / de humanidade desumanizada, / nada deve parecer natural / nada deve parecer impossível de mudar” (Bertolt Brecht).

Quem controla os políticos brasileiros e seus partidos? Os partidos e seus donos? Sim, seus proprietários: o PT do Lula, o PSDB do Serra, o PP do Maluf, o PSD do Kassab... Quem fiscaliza um e outro? Os mecanismos legais que nossa infante democracia permite nesse sentido não impedem que, aqui, cada dono de partido haja como se fosse rei absoluto de um feudo particular, privatizando a política partidária. E nada mais antidemocrático do que a privatização da política, isso que campeia Brasil afora.

Entre nós, o campo partidário é tão prolífico, que, para resolver problemas particulares, o sujeito vai à justiça eleitoral e cria um partido. Isso fere de morte a ideia de que a democracia realmente consequente se faz com partidos fortes. E poucos! Aqui, não! O partido é visto e gerido como empresa ou bem personalizado, particular: pode ser alugado, sublocado, vendido e comprado como qualquer outra coisa de mercado.

Essa ideia de que “o partido sou eu” (mais medieval impossível) leva políticos e suas agremiações ao “deita e rola” político-partidário, jogo no qual a cidadania é mero detalhe. Isso, além de afrontar o conceito moderno de que o soberano real é a vontade geral do povo, aniquila os princípios constitucionais e republicanos da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência no trato da coisa pública.

É nesse contexto que se justifica a proposição do voto nulo, não como abstinência política, nem como protesto sem a menor consequência. A nação, a cidadania e os operadores do direito eleitoral precisamos compreender o voto nulo como interdição, impedimento (‘impeachment’) e reprovação de certas candidaturas. ‘Impeachment’ direto na democracia indireta. Uma vez impugnada diretamente pelo cidadão, essa candidatura estaria abortada em definitivo, o que abriria a trilha para que outro candidato, afinado com a prática política republicana, se apresentasse ao pleito, ao escrutínio pelo conjunto dos eleitores ou colégio eleitoral.

Atualmente, essa ideia soa utópica, uma vez que, como cidadãos, vemos os interpretadores da lei eleitoral dizerem que, se os votos nulos para prefeito de uma de nossas cidades, por exemplo, forem na ordem de 60%, o candidato que obtivesse 20% mais um voto dos restantes 40% dos sufrágios já estaria eleito. Pode tal absurdo? Que legitimidade garantiria essa eleição? Que legitimidade política teria esse eleito?

Ora, o voto nulo como ‘impeachment’ direto, na urna, impediria essa excrescência, uma vez que provocaria uma nova eleição da qual o político impedido não participaria. Assim, ele possibilitaria à cidadania chamar a si as rédeas do jogo político, evitando que ele continue tarefa de caudilhos ou chefetes que impõem suas crias para apenas serem confirmadas pelo voto de autômatos que sequer foram informados das consequências do ato de votar, alheios às jogatinas políticas dos partidos que nos impõem os maus políticos.

O voto cidadão precisa contar com esse mecanismo do voto nulo. Sei que os donos dos partidos e parte conservadora dos operadores do direito eleitoral brasileiro, mancomunados para benefícios próprios, inimigos da cidadania, são terminantemente contrários a essa ideia. Cabe aos setores realmente esclarecidos da sociedade comprar essa briga, até porque, como nos adverte Brecht, “nada deve parecer impossível de mudar”.