A Lilica e a Professora

Wilson Correia

Na aula de hoje, falávamos da “consciência crítica” em Paulo Freire. “Conscientia”, do latim, significando autoconhecimento, na linha do conceito estendido de Sérgio Biagi Gregório: “A percepção imediata mais ou menos clara, pelo sujeito, daquilo que se passa nele mesmo ou fora dele (sinônimo de consciência psicológica)”, ou, do ponto de vista moral, a consciência como juízo prático pelo qual “nós, como sujeitos, podemos distinguir o bem e o mal” (Dicionário Enciclopédico).

Falávamos, claro, de “crítica”, essa “capacidade de escolha” que os humanos temos, implicada nos atos de pensar, valorar, julgar, decidir e agir em decorrência de uma decisão. “Crítica” vem da palavra grega “krinon”, que quer dizer “peneira”, razão pela qual a palavra “crítica” significa peneirar conceitos, ideias, imagens mentais, sem o que nosso processo de escolha fica comprometido.

Lá pelas tantas, uma aluna conta a história de Lilica, a cachorra de São Carlos, interior do Estado de São Paulo, que, há três anos, diária e religiosamente, perto de nove horas da noite, caminha até dois quilômetros por perigosa rodovia para chegar à casa de uma professora de quem recebe alimento para si mesma e uma “marmita” para os “amigos” gatos, galinhas e outros caninos ao lado de quem Lilica toca seus dias. Com a comida acondicionada e amarrada em sacola plástica, segura o pacote com a boca e o conduz até a “família” de que faz parte em um ferro velho, sendo que em nenhum dia desses mais recentes três anos essa “família” ficou sem se alimentar, graças ao instinto materno e de liderança de Lilica.

“Então a Lilica não sabe que é e que sabe” [que sua família precisa de alimento]?, perguntou uma aluna, que ouviu minha resposta: “Até onde nossos limitados conhecimentos nos indicam, não! Lilica apenas cumpre a programação instintiva voltada para a perpetuação da espécie”.

Tanto é assim que Lilica não soube como contornar o problema da comida caindo rodovia adiante e para fora da sacola na primeira vez que praticou seu “nobre” gesto de solidariedade.

Outro indicativo de que Lilica não tem nem “krinon”, muito menos “conscientia”, que dirá “crítica”, é o fato de que, ao ficar famosa por ter aparecido na televisão e começar a receber grandes quantidades de ração por conta de sua fama, a cachorra não entende que não precisa mais cumprir a cotidiana jornada de duas horas para buscar em outro bairro o alimento para si própria e para os “seus”.

O fato é comovente? É! Mas ele é motivado por uma consciência crítica guiada por valores ao molde dos valores humanos? Até onde sabemos, não! Lilica é presa da programação instintiva que a faz “trabalhar” para “manter a espécie”. Nada além disso!

Mas, aproveitando a deixa, poderíamos perguntar se Lilica, a seu modo, também não é uma professora. Ou será que nosso egoísmo é mesmo o grande mestre, esse que nos ensina a acumular à custa da vida alheia que sucumbe ao nosso redor?