Alfabetizar ou Letrar?

Alfabetizar ou Letrar?

A alfabetização e o letramento caminham juntos, lado a lado, como as duas faces de uma mesma moeda, ou seja, são divergentes, porém ambas se complementam.

Diante das atuais concepções psicológicas, linguísticas e psicolinguísticas de leitura e escrita, a entrada da criança e também do adulto analfabeto no mundo da escrita ocorre simultaneamente por esses dois processos: alfabetização (sistema convencional da escrita) e letramento (práticas sociais que envolvem a escrita e a leitura). Eles não são processos independentes, mas interdependentes, ou seja, a alfabetização desenvolve-se através do letramento, isto é, por meio de práticas sociais de leitura e de escrita; o letramento, por sua vez, só se pode desenvolver através da aprendizagem das relações fonema-grafema, ou seja, de modo dependente da alfabetização. Segundo Magda Soares (2003, p. 38, 39), “letramento é o resultado da ação de ‘letrar-se .’”

Um indivíduo alfabetizado não é necessariamente um indivíduo letrado; alfabetizado é aquele indivíduo que sabe ler e escrever; já o indivíduo letrado é não só aquele que sabe ler e escrever, mas aquele que usa socialmente a leitura e a escrita, pratica a leitura e a escrita.

O letramento é o estado ou condição de quem se envolve nas numerosas e variadas práticas sociais de leitura e de escrita, por consequência, letramento é muito mais que alfabetização. A alfabetização é um processo formal, enquanto o letramento é uma prática social.

Nos dias atuais, em que as sociedades do mundo inteiro estão cada vez mais centradas na escrita, ser alfabetizado, isto é, saber ler e escrever tem se revelado condição insuficiente para responder adequadamente às demandas contemporâneas. É preciso ir além da simples aquisição do código escrito, é preciso fazer uso da leitura e da escrita no cotidiano, apropriar-se da função social dessas duas práticas; é preciso “letrar-se”.

O conceito de letramento, embora ainda não registrado nos dicionários brasileiros, tem seu aflorar devido à insuficiência reconhecida do conceito de alfabetização. E, ainda que não mencionado, já está presente na escola, traduzido em ações pedagógicas de reorganização do ensino e reformulação dos modos de ensinar, como constata Magda Soares em seus diversos escritos. Em vista disso, alfabetização e letramento são processos que envolvem níveis e/ou graus ascendentes, de acordo com as exigências do mundo atual e das práticas sociais as quais se está inserido. Ambas, portanto, são contínuas, para toda a vida.

Contudo, Tfouni (2002, p.15) afirma a esse respeito que: “(...) a alfabetização, enquanto processo individual, não se completa nunca, visto que a sociedade está em contínuo processo de mudança, e a atualização individual para acompanhar essas mudanças é constante”.

Em termos sociais mais amplos, o letramento é apontado como sendo produto do desenvolvimento e/ou prosseguimento da alfabetização. Segundo Tfouni (2002, p.20), “enquanto a alfabetização se ocupa da aquisição da escrita por um indivíduo, ou grupo de indivíduos, o letramento focaliza os aspectos sócio-históricos da aquisição de um sistema escrito por uma sociedade”. Em outras palavras, letramento é o estado em que vive o indivíduo que não só sabe ler e escrever, mas exerce as práticas sociais de leitura e escrita que circulam na sociedade em que vive: sabe ler e interpretar jornais, revistas, livros, bula de remédio, tabelas, quadros, formulários, carteira de trabalho, contas de água, luz, telefone, escreve cartas, bilhetes, telegramas, sabe redigir ofícios, requerimentos, “navegar” na internet etc.. Essas são exemplos de algumas práticas sociais de letramento mais comuns e cotidiana de leitura e escrita presentes no mundo contemporâneo.

Magda Soares (2003, p.58), falando sobre a questão, relata que “é preciso que haja, pois, condições para o letramento: escolarização real e efetiva da população e disponibilidade de material de leitura”, uma vez que aspirar um pouco mais do que simplesmente aprender a ler e a escrever (ser alfabetizado) é letrar-se.

Pode-se dizer que o processo de letramento se inicia bem antes de seu processo de alfabetização ou vice-versa. Soares (2003, p. 47), nos explica melhor esse contexto: “Um adulto poder ser analfabeto e letrado: não sabe ler nem escrever, mas usa a escrita”. “Uma criança pode não ser alfabetizada, mas ser letrada”: convive com livros, conta e finge escrever uma história etc.. “Uma pessoa pode ser alfabetizada e não ser letrada: sabe ler e escrever, mas não cultiva nem exerce práticas de leituras e de escrita”.

Portanto, é importante salientar que o letramento compreende tanto a apropriação das técnicas para a alfabetização quanto o aspecto de convívio e hábito de utilização da leitura e da escrita. É preciso reconhecer a possibilidade e necessidade de promover a conciliação entre essas duas dimensões da aprendizagem da língua escrita, integrando alfabetização e letramento, sem perder, porém, a especificidade de cada um desses processos, o que implica reconhecer as muitas facetas de um e outro e, consequentemente, a diversidade de métodos e procedimentos para ensino de um e de outro, uma vez que não há apenas um método para a aprendizagem inicial da língua escrita. Há múltiplos métodos e a natureza de cada faceta determina certos procedimentos de ensino, além de as características de cada grupo de indivíduos e/ou de cada indivíduo exigir formas diferenciadas de ação pedagógica.

Contudo, tomando os dois extremos como ênfases à aprendizagem da língua escrita, Soares defende a complementaridade e o equilíbrio entre ambos e chama a atenção para o valor da distinção terminológica: Porque alfabetização e letramento são conceitos frequentemente confundidos ou sobrepostos, é importante distingui-los, ao mesmo tempo em que é importante também aproximá-los: a distinção é necessária porque a introdução, no campo da educação, do conceito de letramento tem ameaçado perigosamente a especificidade do processo de alfabetização; por outro lado, a aproximação é necessária porque não só o processo de alfabetização, embora distinto e específico, altera-se e reconfigura-se no quadro do conceito de letramento, como também este é dependente daquele.

A partir dessa compreensão, assim como a autora, é preciso que reconheçamos o mérito teórico e conceitual de ambos os termos e de que, na ambivalência dessa revolução conceitual, encontra-se o desafio dos educadores em face do ensino da língua escrita: o alfabetizar “letrando”.

Referências

SOARES, M. B. Letramento: um tema em três gêneros. 2ª ed. Belo Horizonte, Autêntica, 2003. TFOUNI, L.V. Letramento e alfabetização. 5ª ed. São Paulo, Cortez, 2002.

Nalia Lacerda Viana
Enviado por Nalia Lacerda Viana em 03/09/2015
Reeditado em 01/09/2016
Código do texto: T5368937
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