Infância: o melhor tempo para começar amar os livros

Meu casamento com os livros

Quando criança, dizem, eu não gostava de pegar em livros, lápis e cadernos. Me davam para brincar e eu logo encostava e procurava outras coisas. No primeiro ano me apaixonei pela cartilha e fiquei angustiado até o dia em que foi entregue na sala. Tentei ler toda, mas a coisa não andava. Eu era analfabeto. Em casa sob a luz de lampião de querosene ficava folheando sem entender nada. Do segundo ano em diante foi tudo mais fácil. Fora o livro oficial tínhamos os outros livros que a professora trazia da pequena biblioteca para a leitura silenciosa. Estes me seduziam. Pedi para a professora me dar um, não podia, então roubei um exemplar de Estudos Sociais e Naturais de Maria de Lourdes Gastal. Em casa queria brincar de professor e utilizar para ensinar as árvores. Os próximos livros passaram a ser contados na hora de devolver. Então resolvi aplicar um golpe nos meus pais. Anotei direitinho os livros que as professoras usavam para passar o ponto no quadro negro. Era negro mesmo. Menti que era de uso obrigatório.O problema era quando minha mãe encontrava as mães dos meus colegas e elas diziam que os livros não era para comprar. Tinha que fazer um enredo e ficar emburrado pela desconfiança. Finalmente os livros chegaram. Me dei mal na sala. Resolvi conferir os exercícios dados na tarefa com os dos livros e eram os mesmos. Me antecipei resolvendo-os em casa, todos, numa caderno à parte. Quando a professora passava no quadro eu disfarçava que estava escrevendo. Um dia ela se cansou e veio até a carteira e teimou que eu não estava escrevendo. Mostrei os exercícios feitos. Foi um escândalo. Levei um puxão de orelha. Eu não poderia. Não adiantou. Continuei fazendo o restante e não joguei o que tinha feito. Um inusitado dia, ela chamou a Diretora, Professora Lúcia Werner, para comunicar o ocorrido. A Diretora olhou tudo, disse que não era bom fazer daquele jeito, mas foi carinhosa comigo. Pediu para visitar minha família. Foi lá um dia com uma rural Willys. Não criticou nada nem me desmentiu com a compra dos livros. No dia seguinte, ganhei roupas e calçados dela, alguns exemplares do jornal Diário dos Campos e do Estadão. Só. Passaram-se alguns dias e quando eu entrava na sala de aula, a professora me dizia, vá até o gabinete que a Diretora quer falar com você. Queria que eu arrumasse os livros. Na verdade, ocupar o meu tempo, pois os exercícios todos estavam feitos. Não me lembro se eu incomodava os colegas na sala. Quarenta alunos misturados garotos e garotas. De repente, a Diretora me disse, a professora do tal ano faltou e você vai ficar na sala passando os pontos no quadro. E fiquei sozinho na sala. Me sentindo sozinho, resolvi dar palpites e passar o ponto em voz alta para os amigos da turma. Dali para frente foi só sucesso. Quando concluí o 5º ano recebi uma homenagem pública e um livro "O evangelho das crianças". Tenho até hoje. Comecei ali a minha biblioteca. Outra professora queria saber de onde eu retirava os exemplos e perguntas que fazia em sala. Do Projeto Minerva respondia. Certo dia me pediu que ao sair da escola passasse em sua casa. Fui. Ganhei uma coleção de apostilas impressas do MEC com aulas radiofonizadas do Projeto Minerva. Pode parecer idiotice, mas revejo as leituras que fiz naquele tempo e recobro a emoção de quem foi se apegando aos livros. Queria ser escritor, me fingia de escritor, como não dava para tanto, eu "plagiava", copiava livros e dava meus títulos. Tudo começou assim. Ate hoje, não consigo começar o dia sem ler um pequeno trecho que seja. Em livro, em papel, já que não sinto nada por livros virtuais.