EDUCAÇÃO E LIMITES - ATÉ ONDE PODEMOS PERMITIR?

EDUCAÇÃO E LIMITES:

ATÉ ONDE PODEMOS PERMITIR?

Nivaldo Mossato

Quando falamos em educação, limites e liberdade, a percepção que temos em relação aos pais, e em específico às funções paterna e materna, é de perfeição. Tendemos a sonhar com filhos perfeitos e vencedores, com famílias perfeitas, amáveis, unidas e amorosas. Estas imagens, no entanto, são deveras mentirosas. A família é imperfeita, os pais são imperfeitos, e, portanto, os filhos são imperfeitos. Nos últimos anos a sociedade tem se mostrado, na maioria das observações realizadas pelas ciências sociais e divulgadas pelos veículos de imprensa, livros e revistas especializadas, como uma sociedade retraída e perdida em seus mais diversos aspectos de medo e insegurança.

O filósofo e teórico cultural sul coreano Byung-Chul-Han, erradicado na Alemanha, viajando entre a filosofia, a sociologia e a psicologia, traça o perfil da sociedade pós moderna como a sociedade do cansaço, onde o homem da atualidade se posta como aquele que, algoz de si mesmo, cobra-se ininterruptamente na corrida diária em busca de galgar os primeiros lugares. Uma corrida insólita, que tira do homem a própria humanidade, e quiçá, a própria identidade e sanidade.

Entretanto, entre os filósofos humanistas e existencialistas dos meados do século passado, já se ouvia em alto e bom discurso que os caminhos tomados pela sociedade, dita então como moderna, poderiam nos levar para o labirinto da exclusão e do desregramento social. Tal movimento de exclusão do Outro poderia nos colocar numa plataforma de acirrado egoísmo e individualismo que, consequentemente, daria origem a vários transtornos sociais e psíquicos.

Martin Buber, Emmanuel Lèvinas, Tzvetan Todorov, entre tantos outros, levantaram a bandeira para que tivéssemos a chance de, ao olhar para o Outro com maior proximidade e profundidade, pudéssemos direcionar a sociedade para longe deste abismo. No entanto, caímos. Entramos num processo de coisificação e rotulação do Outro que, ao exclui-lo, acabamos por excluir a nós mesmos, criando um mundo de angústias, tristezas e solidão. Ao excitarmo-nos ao extremo, galgando picos de ansiedade, sem conseguirmos metabolizar tais excitações, entramos em desespero ao darmos conta das nossas limitações. Saímos então, da sociedade da repressão, e criamos a sociedade da depressão.

Ao sairmos de uma observação global e direcionarmos nosso olhar para alguns pontos sociais específicos, podemos visualizar mudanças significativas que vem contribuindo para este registro geral. Sem que julguemos certo ou errado, positiva ou negativamente, ser este o único fenômeno responsável pelas mudanças, e sabemos não ser, percebemos que, o ponto nevrálgico destas transformações certamente transitou pelo âmbito familiar onde observa-se tanto o enfraquecimento, quanto a mutação e a inversão da função paterna. Tal fenômeno, associado a uma falsa imagem do ‘pai amigão’, criada pela mídia capitalista em vista única e exclusiva de um processo consumista, levou os pais à perda da autoridade perante os filhos, o que, por sua vez, impossibilitou o desenvolvimento de fronteiras e limites suficientemente fortes para estabelecerem autocontrole e autossuporte na lida com as frustrações da vida. Sem desenvolverem tais habilidades as crianças e jovens crescem inabilitados para lidarem com as barreiras sociais, tornando-se egotistas e narcisistas, exigindo dos pais, agora dominados pela culpa, que deem a eles, sem que precisem empreender esforço algum, ou responsabilizar-se por nada, tudo que pensam ter direito, ou que veem nas propagandas midiáticas.

Excitados ao extremo pela internet e redes sociais, e, de posse de informações inadequadas à idade provindas via celular, os filhos assumem, providos de total imaturidade, o comando afetivo das relações familiares. Inertes e culpados, os pais se anulam em suas funções de educadores, e, ao se anularem, tornam-se ausentes e acabam por terceirizar a educação dos filhos, sem se perceberem que, na ausência da autoridade e da função paterna, o caráter da criança em desenvolvimento fica amplamente comprometido.

Ao não desenvolverem o senso de responsabilidade e valor, que são provindos dos alicerces do caráter, o que impera na criança ou jovem é a baixa autoestima, propulsora dos sentimentos negativos sobre si mesmo, impossibilitando o reconhecimento da própria ipseidade – consciência da pessoa que nos tornamos neste momento. A falta da consciência de si mesmo leva o jovem à perda da consciência do Outro e do mundo, impossibilitando-o à felicidade, ao sentido da vida; ou pior, leva-o ao encontro das drogas, da automutilação e do suicídio.

Podemos enumerar ainda várias outras diretrizes que, neste momento, simultaneamente, em diversas partes do mundo corroboram para que tenhamos este ou outro mapa similar das condições psicológicas das nossas crianças, jovens e, infelizmente, adultos provedores. No entanto, ao que se propõe este escrito, basta-nos a consciência de que se faz necessário restaurarmos, urgentemente, a autoridade da função paterna. É-nos psiquicamente inaceitável, como sociedade humana, a ausência de tão importante função.

Tendo portanto, agora, ciência do assassinato global da função paterna em função de uma sociedade de consumo, podemos pensar qual caminho seguir para que possamos educar nossos filhos de forma a estabelecer limites seguros ao crescimento saudável. Entretanto, faz-se necessário uma ressalva: entendermos o que significa, verdadeiramente, o termo ‘Função Paterna’.

A Função Paterna na sociedade pós-moderna não é uma ação destinada especificamente à figura do pai, como era na sociedade patriarcal onde o pai detinha sobre si todos os poderes sobre a família. Contemporaneamente ela pode ser exercida por qualquer pessoa que se põe em posição de autoridade, inclusive a mãe. No entanto, requer, no campo afetivo relacional familiar um movimento novo, uma nova forma de expressão e confirmação da autoridade. Em outras palavras, aquele que toma para si a função paterna deve ser explicitamente confirmado perante cada ação de correção de comportamento ou de estabelecimento de limites. Do contrário, a função paterna será aniquilada e a autoridade se estabelece nas mãos dos filhos que, imaturos, tendem às manipulações para satisfazer suas necessidades, agindo pautados no princípio do prazer.

Ao pararmos o carro sob o comando da luz vermelha de um semáforo, ao cedermos o lugar numa fila a uma pessoa mais velha ou respeitarmos uma sinalização qualquer estamos experienciando os efeitos de uma função paterna adequada. A função paterna não diz respeito somente a uma relação direta entre pai e filho, ela é uma função social que excede e transcende o individual para o coletivo; o pessoal para o social. Portanto, uma sociedade sem pai é uma sociedade sem limites, sem regras, sem moral.

Tenho comigo três percepções às quais trago como escopo em minhas avaliações de comportamentos inadequados: a primeira é que, excluindo-se casos muito específicos, a criança não adoece psicologicamente. O que adoece a criança é o campo familiar, é a relação, o que há entre a função materna e a paterna. Raríssimos são os casos que comprovam o contrário. A segunda é que, filhos sem limites provém de pais inaptos à função paterna, imaturamente afetivos e que ainda não sanaram, dentro de si, os conflitos oriundos das relações tóxicas experienciadas com seus pais. A terceira, que é base estrutural para as duas primeiras, é que a paternidade não se aprende quando se tem um filho. Aprende-se a paternidade enquanto somos filhos, na relação direta com nossos pais.

Pautado, portanto, nas concepções necessárias para uma boa formação do caráter e personalidade dos filhos, reconhecemos que uma educação saudável, com estabelecimento de limites e fronteiras livres de neuroses e, até mesmo, em estados mais graves, de psicoses, requer, por primeiro, o restabelecimento de uma função paterna adequada. Atuar somente sobre a criança, inibindo a expressão do comportamento inadequado é cuidar de sintomas, sem erradicar as causas; é condená-la a neuroses futuras, à infelicidade e a uma paternidade também desastrosa.

Educar é delimitar espaços psicológicos, é estabelecer limites sadios entre as pessoas, e o limite de um vai até onde começa o direito do Outro,