A LÍNGUA PORTUGUESA E O PORTUGUÊS BRASILEIRO DIANTE DA PROPOSTA DA LINGUAGEM NEUTRA, NÃO-BINÁRIA OU INCLUSIVA: UMA QUESTÃO LINGUÍSTICA OU UMA ARBITRARIEDADE IDEOLÓGICA?

A LÍNGUA PORTUGUESA E O PORTUGUÊS BRASILEIRO DIANTE DA PROPOSTA DA LINGUAGEM NEUTRA, NÃO-BINÁRIA OU INCLUSIVA: UMA QUESTÃO LINGUÍSTICA OU UMA ARBITARIEDADE IDEOLÓGICA?

THE PORTUGUESE LANGUAGE AND BRAZILIAN PORTUGUESE IN THE PROPOSAL OF A NEUTRAL, NON-BINARY OR INCLUSIVE LANGUAGE: A LANGUAGE ISSUE OR AN IDEOLOGICAL ARBRITY?

Tânia Maria da Conceição Meneses Silva

RESUMO

A pretensão deste estudo é a de refletir acerca da linguagem neutra (LN), inclusiva ou, ainda, não-binária, do ponto de vista geral; e, a partir de alguns pontos de abordagens específicas. Para tanto, o objetivo geral é o de dispor na mesa do debate diversos posicionamentos sobre a temática em torno da Linguagem Neutra (Inclusiva ou Não-Binária), quer sejam favoráveis ou não. As abordagens mais específicas são as de: abordar o tema de forma panorâmica, pontuando os efeitos sociais sobre a língua portuguesa elencados pelos especialistas em debate; examinar os posicionamentos dos estudiosos via consulta de parte da literatura existente acerca da temática; comentar posicionamentos do senso comum e de especialistas que se encontram expostos nas mídias sociais em depoimentos diversos, quer em artigos, entrevistas ou vídeos; analisar aspectos da linguagem oral e da linguagem escrita do português brasileiro (PB) em função das consequências que emergem da possibilidade de a sociedade “ter de” utilizar a LN; especificar o objetivo sobre o qual se ampara a LN e os empecilhos que enfrenta para ser incluída no sistema da LP e, especificamente, do PB; lançar questionamentos sobre distintas situações da comunicação oral e da linguagem escrita e que sugerem futuros problemas.

Palavras-chave: Língua Portuguesa. Português Brasileiro. Linguística. Ideologia.

ABSTRACT

The aim of this study is to reflect on neutral language (LN), inclusive or even non-binary, from a general point of view; and, from some points of specific approaches. Therefore, the general objective is to have on the table of debate several positions on the theme around Neutral Language (Inclusive or Non-Binary), whether favorable or not. The more specific approaches are: to approach the topic in a panoramic way, pointing out the social effects on the Portuguese language listed by the specialists in the debate; examine the positions of scholars by consulting part of the existing literature on the subject; commenting on positions of common sense and specialists who are exposed on social media in various testimonies, whether in articles, interviews or videos; analyze aspects of oral language and written language of Brazilian Portuguese (BP) in terms of the consequences that emerge from the possibility that society “has to” use LN; specify the objective on which LN is supported and the obstacles it faces to be included in the LP system and, specifically, in the BP; launching questions about different situations of oral communication and written language that suggest future problems.

Keywords: Portuguese language. Brazilian Portuguese. Linguistics. Ideology

RESÚMEN

El objetivo de este estudio es reflexionar sobre el lenguaje neutro (LN), inclusivo o incluso no binario, desde un punto de vista general; y, desde algunos puntos de enfoques específicos. Por tanto, el objetivo general es tener sobre la mesa de debate varias posiciones sobre el tema del Lenguaje Neutral (Inclusivo o No Binario), sean favorables o no. Los enfoques más específicos son: abordar el tema de forma panorámica, señalando los efectos sociales sobre la lengua portuguesa enumerados por los especialistas en el debate; examinar las posiciones de los académicos consultando parte de la literatura existente sobre el tema; comentar posiciones de sentido común y especialistas que se exponen en las redes sociales en diversos testimonios, ya sea en artículos, entrevistas o videos; analizar aspectos de la lengua oral y escrita del portugués brasileño (PB) en términos de las consecuencias que surgen de la posibilidad de que la sociedad “tenga que” utilizar la LN; especificar el objetivo sobre el que se apoya LN y los obstáculos que enfrenta para ser incluido en el sistema LP y, en concreto, en el PB; lanzando preguntas sobre diferentes situaciones de comunicación oral y lenguaje escrito que sugieran problemas futuros.

Palabras clave: Lengua Portuguesa. Portugués Brasileño. Lingüística. Ideología

1 INTRODUÇÃO

Neste precário estudo não se pretende um aprofundamento sobre a Filosofia ou a Sociologia da linguagem. O objetivo principal é o de dispor na mesa do debate diversos posicionamentos sobre a temática em torno da Linguagem Neutra (Inclusiva ou Não-Binária), quer sejam favoráveis ou não; ou, ainda, muito pelo contrário, o não-estou-aí-e-nem-vou-chegando.

Recentemente se tem acentuado a questão da LN, o que aumentou após jornalistas e repórteres brasileiros (e estrangeiros) haverem se utilizado dessa forma de falar (escrever?) durante as Olimpíadas. A repercussão trouxe à cena a importante e substantiva questão da Língua Portuguesa, da linguagem, da escrita, da leitura, do ensino e da aprendizagem. Já existem especialistas envolvidos na contenda, enquanto a população, ainda meio alheia, não se preocupa com os destinos da nossa forma de ouvir, falar, ler e escrever a língua do Brasil, o Português Brasileiro (PB). Não demorará muito até que a situação se torne mais complexa, tendo-se em vista a polarização dos discursos a favor ou contra a LN. A propósito, no dia 31 de julho de 2021 foi reinaugurado, em São Paulo, o Museu da Língua Portuguesa e, na oportunidade, foi prestigiada a LN. De outro prisma, os que ouviram ou leram algo sobre a temática aqui em debate têm uma opinião a mostrar, mas, na maioria, sem pesquisa, sem exame. Esses, em geral, partem para a teimosia, posicionando-se favoravelmente ao uso da LN. A outra banda, formada por pessoas que têm algum conhecimento sobre a LP e a proposta da LN, se posiciona contra (uns) e a favor (outros) o fenômeno linguístico, digamos, neutro.

A leitura que está sendo feita popularmente é a de que a LN é uma criação de partidos de esquerda e de que questioná-la é atitude de extrema direita. Nada pode ser tão equivocado quanto esse modo de pensar, pois, além de não ser a verdade, a população LGBTQIA+ está espalhada por todos os quadrantes e extratos sociais e políticos. Trata-se de uma militância específica espalhada por várias partes do planeta. Naturalmente, questões de ordem moral e preconceitos os mais variados entram também na discussão sobre o tema.

2 A LÍNGUA PORTUGUESA E O PORTUGUÊS BRASILEIRO DIANTE DA PROPOSTA DA LINGUAGEM NEUTRA, NÃO-BINÁRIA OU INCLUSIVA

As questões relativas ao neutro, desde o latim, estão sendo revistas por estudiosos que se agrupam em dois blocos distintos, ainda que esses estudiosos sejam especialistas na área da Linguística. Dessa discussão brotam argumentos que priorizam as temáticas sobre os direitos humanos, a inclusão, a exclusão, o feminismo e o sexismo (discriminação contra o sexo oposto) e a LP x LN. Vale citar o estudo minucioso intitulado Sobre gênero neutro em português brasileiro e os limites do sistema linguístico, de Luiz Carlos Schwindt, que conclui suas argumentações dizendo que

Entre os muitos papéis da Linguística, seguramente está o de entender como a mudança se processa com olhar especializado, seja interno ou externo ao que chamei aqui de sistema. Sendo ciência, embora não lhe caiba qualquer tipo de prescrição sobre condutas verbais, tem compromisso inegociável com o entendimento das diferenças. Nesse sentido, o já significativo conjunto de estudos sobre uso inclusivo e marcação neutra de gênero em PB, ao qual se soma este ensaio, pode oferecer importante contribuição (SCHWINDT, 2020).

Língua é um fenômeno natural, que se originou há milhares de anos e que, em função do desenvolvimento sócio-histórico, político-econômico e, também, ideológico e religioso, vai sofrendo mutações simples e mutações muito complexas, incluindo as muitas ideologias. Só para refrescar a memória, na Roma dos Imperadores falava-se e escrevia-se o latim. Atualmente, nessa mesma Roma, o que existe é o idioma italiano, que nada mais é do que uma evolução que sofreu o latim de lá para cá. Assim também ocorreu no território do Brasil, onde não se conhecia outra forma de se comunicar que não fossem os dialetos indígenas. As mutações de qualquer monta ocorrem dentro de contextos de processos espontâneos, naturais. Isto é, em Roma, por exemplo, não houve um dia em que o Poder decretasse que, a partir daquele instante, a população usaria o Latim. Repita-se que a língua é um organismo vivo e em constante mutação, e não é chegada a receber ordens. Pelo contrário, como pode ser investigado, depois da Reforma Ortográfica assinada em 1990 e vigente desde 2016, sem consulta popular, pessoa alguma a domina totalmente e sempre é preciso recorrer à pesquisa, especialmente no caso das palavras compostas. Considerado e repisado que a língua é um fenômeno natural e que ocorre lentamente, é possível questionar, a partir do ocorrido com o sofrimento causado pela Reforma Ortográfica em vigor nos países de língua portuguesa, se o complexo sistema linguístico dessa língua absorveria a LN.

E o que é essa LN? É produto de um pensamento, uma ideologia (ideologia por ideologia, tanto existe nesta, nessa ou naquela língua/linguagem. Seria o caso de uma batalha entre as ideologias para ver quem é que ganha?) de abrangência mundial, que planeja incluir indivíduos de acordo com suas preferências ou escolhas de identidade de gênero. Acredita-se que assim, tais pessoas não se sintam excluídas e nem alijadas do processo de comunicação, do discurso. Já existe uma “gramática” da LN que contém detalhes da proposta. O que interessa mesmo é procurar sentir o quanto essa mudança causaria desgastes em algo já por si só, problemático, o uso do idioma português.

Segundo Mokwa (2019), identidade de gênero é diferente de sexualidade, primeiro porque sexualidade “diz respeito ao gosto do indivíduo no quesito atração física, romântica e sexual; e ela não define a identidade dos indivíduos no sentido de sua expressão física, apesar dos estereótipos, como o gay afeminado ou a lésbica ‘caminhoneira”. A identidade real, verdadeira “é a maneira com a qual o indivíduo apresenta-se à sociedade excluindo o fator ‘relacionamento’ e incluindo o fator ‘gênero” (MOKWA, 2020). Enfim, por incontáveis razões, “quem defende que feministas e/ou pessoas LGBT quer impor uma ‘ideologia de gênero’ na sociedade em geral comete uma série de equívocos” (COLLING, 2018, p. 56).

O perfil histórico da LN é um mistério. Por motivos político-partidários e ideológicos se tem colocado a culpa no PT, como se esse movimento tivesse surgido a partir dos governos Lula, ou tão somente no Brasil. A jornalista e repórter Cristina Graeml, da Gazeta do Povo, em um vídeo no qual manifesta seu posicionamento, menciona o fato de ser a LN uma imposição. No vídeo, a jornalista entrevista a professora de Português, Cíntia Chagas, que frisou a importância da LP como veículo de ascensão social e patrimônio histórico, e finalizou falando da arbitrariedade e opressão (CHAGAS, 2021). Entretanto, há informações de que a neutralidade na linguagem é um fato muito antigo e que, modernamente, países europeus como a Suécia, a Inglaterra, a França e a Espanha já estão usando regularmente e aos poucos a LN; nos Estados Unidos, também. Enfim, os adeptos estão usando a LN em ocasiões formais, o que é ainda mais extravagante.

Um esboço das modificações desejadas pela LN inclui o repúdio ao binarismo (masculino /feminino) e ao sexismo da LP. Entretanto, o que pretenderia ser diferente e melhor se com a LN se continuará envolvendo os indivíduos em questões muito sérias de identidade sexual e que precisam da abordagem da Psicologia? A tentativa de contemplar a identificação de gêneros como identidade de sexo, validando-os no discurso poderá causar um estrago maior. Ora, sabe-se que a sigla LGBTQIA+ tem evoluído à medida que foram sendo descobertas novas tendências de identidade de gênero e, que, muitas pessoas nem sabem ao certo dizer o que sentem ou o que são (pessoas há que demoram a sair do armário).

A atriz e escritora Estrela Rofe diz que um indivíduo transexual quer ser tratado pelo gênero com o qual se identifica e a ideia de um terceiro pronome e artigo seria, na verdade, um ato de exclusão e não inclusão. ‘[Essa mudança] representa uma porcentagem de indivíduos que não chega nem a 15% da comunidade LGBT, e também não chega a 00,2% da porcentagem de brasileiros’, conta Estrela. ‘São em sua maioria ou jovens com menos de 35 anos que absorveram teorias estadunidenses para tentar se conectar a uma realidade’ (STARLLES; DIAZ, 2020).

O termo queer se origina da língua inglesa “e a sua tradução literal é ‘estranho’, mas por muitos anos foi usada como uma palavra para discriminar e ofender os LGBTQ+”. Atualmente, o termo designa “a pessoa que rompe a heteronormatividade, ou seja, procura fugir dos padrões e não quer deixar se rotular”. A sigla para definir a comunidade pretendia “incluir todos e todas, pois o termo gay é excludente e não agrega toda a comunidade”. A sigla pioneira foi a GLS (gays, lésbicas e simpatizantes), preterida porque se considerou a continuidade da situação de exclusão. Em seguida é a vez do termo LGBT (lésbicas, gays, bissexuais e transexuais), este sim, incluindo mais diversidades. A Organização das Nações Unidas (ONU) utiliza a sigla LGBTI (lésbicas, gays, bissexuais, transexuais e intersex). Por sua vez, “os movimentos sociais têm preferido usar LGBT (Grupo Gay Bahia, Grupo Dignidade e Parada SP)”. Outras siglas utilizadas são LGBTTTQQIAA, que objetiva maior inclusão; e a sigla oriunda do inglês, LGBTQQICAPF2K+ que tem como meta ampliar ainda mais o processo da inclusão.

A primeira sigla tem como significado lésbicas, gays, bissexuais, transgênero (em alteração de gênero), transexual, two-spirit (pessoas que nasceram com o espírito masculino e feminino), queer, questionando (pessoas incertas sobre a sua identidade), intersex (quando a pessoa não pode ser identificada claramente como um masculino ou feminino), assexual (quando não há interesse sexual), aliado (simpatizantes da causa). Já o segundo acrograma é composto pelos seguintes membros: lésbicas, gays, bissexuais, transgênero, queer, questionando, intersex, assexual, sem gênero (ausência de gênero), aliado, pansexual (atração por todos os gêneros), poli sexual (atração por pessoas de vários gêneros), amigos e família, two-spirit, kink (fetichista). No Brasil, a sigla mais utilizada pelos órgãos governamentais e movimentos sociais é a LGBT (SOUZA, 2019, p. 9).

Recolocando o foco sobre a temática da LN, convém lembrar que língua tanto é oral quanto escrita. E então, a LN valeria para a oralidade apenas, ou para ambas? Se a proposta for válida para a escrita, a situação se agrava e muito, vez que há de se pensar na Gramática e de como elas serão reformuladas. Pelo que se lê nas redes sociais e por depoimentos que chegam das escolas, a LN também está na escrita. Sendo assim, não adianta tentar esconder o sol com uma peneira e nem inaugurar uma paura linguística inibidora da comunicação. E como se lidar com todos esses fatores?

Sob o olhar da Educação (processo de ensino e de aprendizagem), até que ponto o pessoal dessa área está envolvido em um debate sobre o tema? Já se pensou o caso da alfabetização? As crianças passarão a aprender a LP através desses manuais da LN? E sob qual justificativa? E depois? E o Ensino Médio? As cartilhas e os livros didáticos e obras da literatura sofrerão a agressão da LN? O que foi pensado para a fase da alfabetização? E quanto à soletração? Bom também ter em mente que um dos momentos mais importantes para os estudantes é o da prova do ENEM, claro que os vestibulandos estarão preocupados com a Redação e em saber se têm ou não a obrigação de demonstrar algum conhecimento sobre a LN. E sobre as provas para concursos? Estas e outras situações não estão planejadas, sequer definidas. Como será o sentido da Poesia, da linguagem figurativa, metafórica e das rimas? Como ferir de morte a Poesia com tais coisas impensadas? E as músicas/canto? E quanto ao Ensino Superior e os diversos cursos? Não seria uma irresponsabilidade essa tentativa de alterar forçosa e abruptamente a LP com os ditames da LN? Para além das questões da identidade de gênero e a suposta satisfação de indivíduos ainda em busca por si mesmos, como a maioria se sentiria nessa situação? Não se está esquecendo de que cada ser é um universo e que vários sujeitos prefeririam a discrição? Não se estará menosprezando aqueles que são tímidos, ou outros que temem a descoberta de suas intimidades por parte dos familiares ou da sociedade? O que mesmo justifica que algum conferencista precise dirigir-se aos seus ouvintes usando a LN? A linguagem popular e regional está sendo pensada? E a literatura de cordel?

Segundo Héliton Diego Lau, da Universidade Federal do Paraná (LAU, 2017, p. 89):

A LP diferencia tudo em masculino e feminino. Com esse avanço da linguagem neutra um novo pronome de tratamento foi criado na língua inglesa, em que suas palavras, em grande parte são consideradas neutras, pois é a partir dos pronomes que se é atribuído um gênero. O pronome em questão, registrado no dicionário Oxford, é “Mx.” (pronuncia-se “mux” ou “mix”) que é o neutro de “Mr.” (senhor) e “Mrs.” (senhora). Ainda não há uma tradução oficial para a LP.

Observe-se que o fato de se dizer que “ainda não há uma tradução oficial para a LP” expõe o vazio nessa mudança sem fundamento, sem compromisso com a etimologia ou o significado das palavras. Ou com as situações de comunicação entre indivíduos de línguas diferentes, ou seja, como se lidaria com a interpretação da oralidade feita para as línguas estrangeiras e a tradução? Qual seria, então, a procedência de Mx? Não há resposta! Ou seja, Mx é uma invencionice, algo artificial e imposto aos usuários da língua inglesa. É diferente do pronome de tratamento Senhor (LP), que naturalmente evoluiu para sô (na linguagem popular), seu (seu José, seu João), também popular. Entretanto, não se admite na linguagem das formalidades.

Merece atenção redobrada a exemplificação dada pelo autor acima citado que expõe mais ainda o grande problema que está sendo engendrado:

Para “neutralizar” adjetivos e substantivos, como “aluno”, “bonita”, “entre outras”, utilizarei a vogal “e”. Então estas palavras serão escritas e faladas da seguinte forma: “alune”, “bonite” e “entre outres”. E no caso de “professores”, por exemplo? Palavras no plural consideradas masculinas terão a letra “i” no meio. Então será escrito e falado “professories”. Uma possível variação pode ser a exclusão do “e” ficando “professoris”. Preposições, como “de” e “da” serão substituídas por “du”, por exemplo: “Este lápis é du Iraci”. A respeito dos artigos definidos (“o”, “a”, “os”, “as”), serão substituídos por “le” e “les”. Por exemplo: “Les professories já estão na sala de reunião”. Os indefinidos (“um”, “uma”, “uns”, “umas”), utilizarão a letra “e” no final, ficando da seguinte forma: “ume”, “umes”. Pronomes possessivos (meu, minha, seu, sua, meus, minhas, seus, suas) faço um “empréstimo” do espanhol, ficando: mi, su, mis, sus (LAU, 2017).

Seria trágico se não fosse cômico, caso se levasse em conta a profusão de palavras do nosso idioma (léxico), isto sem computar empréstimos linguísticos, gírias e vocabulário regional. Não seria o caso de, inclusive, se perguntar até que ponto a LN daria visibilidade a alguns gêneros e retiraria de outros? Não se estaria apagando a identificação de gênero binário?

Estudos sobre pontos favoráveis à LN encontraram uma barreira no Projeto de Lei n°, de 2020 (Do Sr. Guilherme Derrite), que

Estabelece o direito dos estudantes de todo o Brasil ao aprendizado da língua portuguesa de acordo com a norma culta e orientações legais de ensino, e dá outras providências (BRASIL, 2020).

O mencionado Projeto de Lei deve ser lido e analisado, dele destacamos o

Art. 2º Fica vedado o uso da “linguagem neutra”, do “dialeto não binário” ou de qualquer outra que descaracterize o uso da norma culta na grade curricular e no material didático de instituições de ensino públicas ou privadas, em documentos oficiais dos entes federados, em editais de concursos públicos, assim como em ações culturais, esportivas, sociais ou publicitárias que percebam verba pública de qualquer natureza (BRASIL, 2020).

Por outro prisma, a LN, a partir do ponto de vista do gênero no Parlamento Europeu, é um documento que se refere ao Contexto Geral, assim se pronuncia logo no seu primeiro parágrafo:

O princípio da igualdade de género e da não discriminação em razão do género está profundamente enraizado nos Tratados e na Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, tendo sido reiterado pelo Parlamento Europeu em diversas ocasiões. A linguagem que se utiliza no Parlamento deve, por conseguinte, refletir este desiderato (PARLAMENTO EUROPEU, 2018, p. 4).

Adiante, em suas Recomendações Gerais quanto à LP, o mencionado documento alega que,

Em virtude da riqueza linguística e cultural da língua portuguesa, é possível, dentro da normal utilização das regras gramaticais do português, tentar encontrar soluções que contribuam para conferir uma igual visibilidade de género no discurso ou uma abstração à referência ao género, conforme for mais adequado (PARLAMENTO EUROPEU, 2018, p. 10).

Após a análise ponderada de inúmeros fatores, o professor André Valente, admite que

Enfim, aos linguistas cabe se debruçarem sobre o fenômeno e tentar entendê-lo para poder explicá-lo. A sociedade já está discutindo o assunto, a linguagem já vem sendo empregada, inclusive em empresas, por órgãos governamentais, no cotidiano das pessoas, nas redes sociais. Onde isso vai parar? Não sabemos, pode ser uma onda que passa, pode ser uma mudança real. A história nos mostra que várias mudanças acabaram sendo incorporadas à língua e se tornaram tão autênticas e legítimas quanto outras formas de expressão, de tal maneira que ninguém discute seus usos, o caso do Vossa Mercê, que hoje se tornou Você, incorporado à norma culta da língua e “cê” no cotidiano das pessoas; o caso do “tu” e do “vós”, que não são mais usados como prescreve a norma gramatical na maioria do país, essas e outras inúmeras mudanças acontecem na língua todos os dias, sem que ninguém possa impedir (VALENTE, [2020]).

O Manual prático de Linguagem Inclusiva (LI), de André Fischer, justifica e patenteia que o objetivo para o uso desse tipo de linguagem é o de “Falar e escrever tomando cuidado ao escolher palavras que demonstrem respeito a todas as pessoas, sem privilegiar umas em detrimento de outras. Esse é o objetivo de quem usa a linguagem inclusiva” (VALENTE, [2020]).

Um exemplo de manual claro e objetivo é o Manual para o Uso não Sexista da Linguagem (O que bem se diz bem se entende), do Governo do Estado do Rio Grande do Sul e Secretaria de Políticas para as Mulheres. O livro abrange aspectos relativos ao papel da linguagem; do gênero na Gramática; do sexo das pessoas e a linguagem; da Gramática e da Semântica; do uso do neutro e o uso de genéricos, das profissões exercidas por mulheres, da linguagem administrativa, dos documentos para praticar o que se deve aprender. Mas, em nenhum momento aparecem com a devida relevância os aspectos pedagógicos, didático-metodológicos para se promover a práxis.

A respeito da linguagem como agente socializante, o referido Manual se posiciona, alegando que: “O problema não está na língua em si que, como vimos, é ampla e mutável, mas sim nas travas ideológicas, na resistência em dar um uso correto a ela, em utilizar palavras e expressões inclusivas e não discriminatórias para as mulheres” (RIO GRANDE DO SUL, 2014, p. 24). No tangente às diferenciações de gênero, adianta que “a tradição e outras formas de perenizar conceitos, experiências e práticas entre as gerações fenece se não for constantemente interpretada. Ela cristaliza o “sempre foi assim”, a repetição, o passado” (RIO GRANDE DO SUL, 2014, p. 31). Sobre a relação sexo x linguagem, aponta que se trata da não reprodução do incorreto, do falso e do que promove discriminação e “desvaloriza ou não reconhece a realidade, seja mediante provérbios, ditados, estereótipos sexistas, frases feitas ou palavras que consolidam uma constituição social negativa para as mulheres” (RIO GRANDE DO SUL, 2014, p. 41). Nos espaços da gramática e da semântica, afirmam:

Estamos plenamente convencidas de que será a influência social que fará possível que as palavras representem devidamente a diversidade existente e que mude a representação das mulheres no mundo e a imagem estereotipada, minimizada ou desvalorizada que ainda hoje reproduzimos ao falar (embora seja sem intenção, sem interesse e sem pensar, ou simplesmente por falta de informação) do mesmo modo que conceitos e ideias evoluíram mediante uma mudança em nossa forma de falar e escrever (RIO GRANDE DO SUL, 2014, p. 49, grifo nosso).

No quesito sobre o uso do neutro e o uso dos genéricos, as autoras esclarecem que o masculino é um pretenso genérico, e que “muita gente confunde neutro com genérico ou com indeterminado ou indefinido” [...] e “que o neutro é inexistente em nossa língua para substantivos”. [...] Acrescentam que “na nossa língua só se considera neutro o artigo o quando é usado como pronome demonstrativo equivalente a isto ou isso, ou aquilo e os reflexivos se e si” (RIO GRANDE DO SUL, 2014, p. 53, grifos nossos). Cabe levantar a questão cultural e a imensa quantidade de letras de canções antigas ou recentes onde muita malícia seria apontada como constrangimento à mulher, a exemplo dos versos de Mulher rendeira: Olê, mulé rendera/Olê, mulé rendá/Tu me ensina a fazê renda/Que eu te ensino a namorá/ (Tu me ensina a fazê renda) / (Que eu te ensino a namorá). É oportuno incluir a pergunta feita por Lau e Sanches sobre se houvesse o gênero neutro na LP: as pessoas que não se identificam com os pronomes binários se identificariam com o “neutro” ou se sentiriam diminuídas pelo teor desta terminologia?”

O Manual em observação recomenda praticar as substituições dos artigos os e o por as pessoas, a humanidade, a juventude, etc. Como se pode evitar o uso de aquele e aqueles? A resposta do Manual é que, na circunstância do surgimento do relativo que, em seguida podemos substituí-lo por quem. Por exemplo: Aqueles que saibam assinar que o façam no final da aula (NÃO RECOMENDADO) mas, Quem souber assinar que o faça no final da aula. (RECOMENDADO). Na frase Papa pede cuidado especial àqueles que têm fome e sede. (NÃO RECOMENDADO). Entretanto, Papa pede cuidado especial a quem têm fome e sede. (RECOMENDADO); Forte é aquele que acredita. (NÃO RECOMENDADO), porém, Forte é quem acredita. (RECOMENDADO). Os exercícios prosseguem para diversas situações, mas, longe estão de convencer o público em geral quanto ao uso ou à obrigatoriedade da LN.

Para André Fischer, ocorrem situações de comunicação “em que o sexismo extrapola o mero masculino genérico e chega a se confundir com misoginia”. Esclarece ainda que o “professor espanhol Álvaro García Meseguer foi um dos precursores do estudo do sexismo linguístico e criou o conceito de ‘salto semântico”. O denominado ‘salto semântico’ é identificado “quando o masculino é usado como genérico para se referir a homens e mulheres seguido de referência a particularidades unicamente masculinas”. São representações “de prática antiquada e machista” que não podemos fingir não ver (FISCHER, 2020).

Sabe-se e subentende-se que, quando ouvimos/pronunciamos/escrevemos uma frase como: “Todos os alunos devem trazer seus materiais didáticos para a sala de aula”, não assoma ao nosso pensamento a questão da identidade de gênero das pessoas, mas sim, se trata de uma convenção e de um expediente linguístico justamente para que os usuários, quer sejam meninos ou meninas, rapazes ou moças, mulheres ou homens se sintam envolvidos. A convenção tem raízes históricas e, sim, passa pela influência do poder do masculino. Por outra, na escrita, em alguns casos, ao invés de encurtarmos as frases como se prefere na atualidade, as alongaremos, aumentando o grau de complexidade. Da interferência da LN também advirão equívocos de concordância e perda considerável da fluência, vez que os falantes e escreventes terão que conhecer o mecanismo de alteração dos vocábulos para, então, aplicá-lo. A LP passaria a ter um conceito diferente língua “mãe” para o de ser uma língua estranha de um “país” e “povo” desconhecidos. Por se falar em interferência de uma língua sobre outra, há tempos que o idioma inglês acontece na LP, mas, o que se vê nas redes sociais é uma confusão, por exemplo, no uso da palavra live, que é escrita de diversas formas: liv, laife, laive, layv, etc. Equívocos outros na escrita, em especial, advirão, no caso da adoção de uma gramática complementar da LN.

E quanto à crença e à credibilidade nessa linguagem estranha (LN), há os que apostam cegamente nela, há os que de forma alguma acreditam que a proposta seja aceita ou venha a se transformar em oficial e, ainda, há os que não conseguirão aprender a dita linguagem.

E sobre a dicionarização? Teríamos novos dicionários? E o que se faria com as palavras do gênero gramatical feminino ou masculino, a exemplo de moços e moças? Essas e tantas outras palavras, assim como as conhecemos, seriam riscadas da LP para sempre? Qual a abrangência cultural da LN? Em uma situação real de interação entre pessoas, por certo há de se perceber que a frase “Você é bonita (o)” tem peso semântico e emocional mais amplo e mais profundo do que “Você é bonite”. No caso de alguém se dirigir a uma mãe com um bebê recém-nascido nos braços dizendo “Su filhe é bonite”, como esse alguém saberá se a mãe gostará desse tratamento? Estas e outras situações de interação entre pessoas não têm sido motivo de preocupação na maioria dos estudos consultados, além do que, os exemplos com palavras e frases, em geral, são sempre os mesmos. A retirada dos artigos definidos e dos indefinidos também é uma questão a ser bastante analisada.

Refletindo um pouco mais, surge nova dúvida, a de como será possível narradores de partidas de futebol, que, em geral, narram as partidas desse esporte descrevendo os lances de forma rápida, muito rápida. Sendo assim, não é possível imaginar esse tipo de narração oral feita em linguagem neutra ou não-binária. Os profissionais da locução não conseguiriam desenvolver o pensamento lógico e cadenciado, atento aos lances e, concomitantemente, pensando em como substituir cada palavra e formular frases coerentes e coesas, etc., e etc.

3 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Como é regra geral em pesquisas, chegamos a este ponto e justificamos o nosso ponto de vista dizendo que este artigo foi pensado em função unicamente de estudo para compreender melhor a situação já exposta. Antes do mergulho, ainda que raso, já nos posicionávamos contra a imposição e, quem sabe, legislação que viesse a obrigar o uso do dialeto LN. Por essa razão, entendemos que, na condição de professora de Língua Portuguesa, não nos é possível nem seria propriamente sincero um posicionamento favorável à LN. Assim estaríamos negando a nossa formação no campo da língua e da linguagem.

Quanto ao respeito às pessoas que lutam por essa causa, estamos conscientes de que é uma bandeira legítima, mas é algo que se resolve pelo viés da educação da moral, da ética, do comportamento e do espírito humano.

Já existem estados que tentam de alguma forma tornar a LN motivo de legislação, o que nos preocupa. Resta a esperança de que a Justiça se recorde do quanto vale para os seus membros o padrão culto da língua escrita e oral. E de quanto sofrerão os professores de quaisquer níveis de ensino caso a LN venha a ser oficializada.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Projeto de Lei n. 5248/2020. Estabelece o direito dos estudantes de todo o Brasil ao aprendizado da língua portuguesa de acordo com a norma culta e orientações legais de ensino, e dá outras providências. Brasília, DF, 2020. (Deputado Federal Guilherme Derrite). Disponível em: https://static.poder360.com.br/2020/12/PL-5248-2020.pdf. Acesso em: 01 set. 2021.

CHAGAS, Cíntia. Linguagem neutra não existe. [Entrevista cedida a] Cristina Graeml. Gazeta do Povo, [s. n.], 5 de ago. de 2021. 1 vídeo (23 min 38 seg.). Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=385TYLSUEZg. Acesso em: 06 set. 2021.

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