Capoeira no Pará: Gostosa Belém de Outrora/Ginastas da Valentia!

OBS: esta obra foi publicada originalmente em 1965, em Belém do Pará. (TEXTO COMPLETO)

GINASTAS DA VALENTIA

Belém do começo do século e possivelmente até o crepúsculo da segunda década, se não chegou a empório da capoeiragem bem perto disso andou.

Os ginastas da valentia, autênticos uns, outros simples valentões de costas quentes, por aqui ganharam fama, por ações na maioria de execrável memória, executadas que eram por mercenária motivação.

A capoeira, luta nacional que no Rio de Janeiro chegou à conquista de adeptos até em camadas intelectuais (por exemplo, Coelho Neto, se fantasia não houve dos escribas coevos), teria de dar um bordo pelo extremo norte. Seus cultivadores foram "bichos beleches". E seriam depois "batutas", "bichões", "marretas", "tacos", "bambas" ou "cobras"... conforme se os denominariam cronologicamente, assim até hoje os tivéssemos, aplicando-se-lhes os designativos de "maioral", que também vieram mudando com o tempo... (pag. 51)

A introdução da capoeira entre nós, é fora de dúvida, teve como autores marinheiros que o sul nos mandava, para aqui servir no velho Arsenal de Marinha e nos navios da Armada, tais o patacho "Guajará ou canhoneira "Guarani".

Gente cuja disciplina a bordo se fazia ao "canto" e ao "bailado" rebolante da chibata, aqui fora, na rua, não compreendia uma "licença" sem um rôlo, dos bons, para não perder a forma e manter viva a agilidade, num "rabo de arraia" ou numa entrada "de tesoura"...

Adversários preferidos, os homens da polícia, a Brigada que ganhara cartaz de dureza, "sangue na guelra" em Canudos. A Doca do Reduto, ali pertinho mesmo do Primeiro de Infantaria, foi muita vez arena para sangrentos "entreveros".

Nada tanto agradava a um "marinheiro de bordo" quanto fazer "voar" um "soronha", um "meganha", um "mata-cachorro", os nomes pelo sarcasmo da rua dados aos soldados de Polícia.

Estes, por sua vez, não enjeitavam parada. Às vezes íam mesmo caçá-la, pois sempre havia de parte a parte, contas a ajustar. E não faltavam entre êles, igualmente, consumados capoeiras.

Assim, a cada rencontro, titans de lado a lado, em cabeçadas fulminantes, pés gizando no ar "passaportes para o Inferno". E quase sempre, como complemento da rasteira, pés no ar, mãos no solo, o relâmpago da navalha aberta, rasgando ventres, abrindo lanhos em caras e braços de retardado gesto defensivo...

Daqueles marujos capoeiras (raro o que não fosse), ainda haverá por aí gentes veteranas que recordem o façanhudo, perigosíssimo 'Macaco", do princípio do século, especialista em brigas com a Cavalaria, delas saindo ileso e deixando no chão gente sangrando... Mais tarde, já por volta de 1910, o cognominado "Gato".

E muito depois do apogeu daquela raça, por aqui andou, celebrizando-se por incrível proeza, um remanescente dela. Esse, depois de um "pega", só contra uma dezena, num "quebra-peito" lá pelos confins do Jurunas, depois de abater um dos adversários, correu de lá até à beira do cais, lançou-se à água e nadou para seu navio fundeado aí no meio da Guajará. (pag. 52)

Mas a capoeiragem teria de conquistar adeptos, formar escola. Para isso, propícia a rivalidade entre bairros, que já de longe vinha, gentes do Umarizal e do Jurunas, que não desperdiçavam ocasião para um "tira-cisma"...

O dia da Trasladação caía na justa medida. Aquela garganta da Santo Antônio, da Barão do Guajará ao Largo das Mercês, até coisa de quarenta anos, haverá quem se lembre, era arena preferida...

Mas a grande influência da capoeiragem nestas plagas certamente se deveu à importação de capangas, em pleno zênite do lemismo.

Foi terror daqueles dias o temível Antônio Marcelino, capanga-mór. Trouxera, escolhido a dedo, um gango da mesma laia, de Pernambuco, para a específica missão de arriar o junco ou a "volta" de ferro torcido em quem, onde e quando conveniente fosse a seus importadores...

Foi Antônio Marcelino, entretanto, o introdutor no Pará dos cordões carnavalescos à pernambucana, os chamados clubes (os frevos de hoje, para o carioca), que tanto êxito tiveram até pouco antes de trinta, ou pouco depois.

Criou, que para isso rolava o dinheiro, o luxuoso "Clube dos Caiadores", modelo de quantos surgiram depois: Lenhadores, Varredores, Fígaros, Malhos, Martelos... e até um famanaz "Bilontras", formado por mulheres da vida alegre, as "cocotes" daqueles gostosos tempos.

Os "balisas" em tais grupos eram respeitados ases da capoeiragem. Um "encontro" entre êles seria empolgante contenda daqueles bailarinos da braveza se não resultasse, fatalmente, em cabeças quebradas, cortes de navalha, furadas de punhal, em que pesasse ao romântico figurino de suas roupagens, dando-lhes ares de pajens medievos, inclusive com as cacheadas cabeleiras louras por cima das caras bronzeadas e mesmo negras...

Pela época joanina, tais "balisas" eram geralmente os componentes das "malocas" dos bumbás ou grupos de "bichos.

"Pé de Bola", valentão do Jurunas, era garantia, como chefe de "maloca" do "Pai do Campo" nos turbulentos encontros. Não só nessas ocasiões, porém, a capoeira funcionava. Em qualquer briga de rua, como sói em nossos dias acontecer com (pag. 53)

os golpes do box(e), o que trabalha numa contenda era o pé, quando dois "duros" se estranhavam e resolviam "tirar a diferença"...

Comuns como diversão domingueira (que o futebol ainda não empolgava as preferências de todas as classes), eram ajuntamentos em terreiros bem varridos, com "torcidas" de lado a lado para os "pégas" entre bonzões (como fazem os angoleiros da Bahia.) A garotada, que aplaudia seus ídolos, buscava, por sua vez, imitá-los em idênticos treinamentos.

O molecório, assim adestrado, exibia-se fazendo "traços" à frente das procissões ou acompanhando, por fora, bandas militares e forças em desfile, costume que insensivelmente foi desaparecendo.

Capoeiras de renome, conhecidos pela destreza, dí-lo a tradição oral, foram, naquele Passado distante, um funcionário do Tesouro do Estado, o Teodoro "Medonho"; um pretinho operário do Arsenal da Marinha, o "Mané Baião" que, com uma semana de aprendizagem resolveu experimentar a auto-suficiência surrando seu próprio mestre; "Pé de Bola", já citado e seu companheiro "Norato", que foi até "argente" de Polícia, tudo isso povo do Jurunas.

Teve-os, igualmente, e em bom número, o Umarizal. Dos bons, posto que a maioria meros "desportistas" e não profissionais da "truba", do "esgru"...

Foram assim o encadernador Pantaleão, "Panta", primitivo dono da oficina que é hoje de Tó Teixeira. Sarado na negaça e no pé. E como êle, "Periquito", que era foguista marítimo; "Trincheta", Honorato, ferreiro do Gasômetro; "Gasolina", que chegou a ser bom goleiro e morreu tísico no "Domingos Freire"; "Benga", barbeiro (da Pratinha), todos "balisas" de carnaval e "caboclos" de grupos joaninos.

Grande, dos maiores, foi como "balisa" dos "Malhos de Ouro" o saudoso Carlos Campos, depois triunfante no palco regional como centro cômico, tal fôra nas ruas, fazendo com as pernas piruetas incríveis, os fantásticos traços de um legítimo mestre da luta nacional...

A capoeiragem um dia, pelo excesso de suas "aplicações", por dá cá aquela palha, conforme os apetites da malandragem, despertou das autoridades medidas arrasadoras de extinção no Rio de Janeiro, onde já se fizera calamitosa... (pag. 54)

Entre nós, uma rasteira histórica não deve ser esquecida: a do nosso bravo "Cabralzinho", que com ela desarmou um oficial que o tentava alvejar a tiro. E com isso poz abaixo as pretensões da França sobre o nosso Amapá... (pag. 55 / FIM)

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OBS: do livro GOSTOSA BELÉM DE OUTRORA, autor De Campos Ribeiro, edição da SECULT/PA, Belém/PA, 2005, 182 páginas.

Digitação:

"Nato" Azevedo