Macunaíma, um herói malandro

Há no imaginário popular alguns conceitos que são atribuídos ao povo brasileiro, como por exemplo; o tal "jeitinho brasileiro" ou a tal "malandragem", que justifica como alguns brasileiros ganham vantagens em várias situações. Esta "malandragem" talvez tenha sido instituída na cultura popular brasileira por algumas heranças históricas entre elas, a colonização massacrante que obrigava os negros a usarem a astúcia para se livrarem das chibatadas e do índio que "preguiçosamente" não se rendeu a exploração dos colonizadores portugueses ou dos próprios portugueses que exploraram tanto as riquezas naturais do Brasil quanto ao povo.

Um comercial de cigarro na década de 70 apresentou como garoto propaganda um jogador de futebol da seleção brasileira que acabara de ganhar o tri campeonato mundial, Gérson o canhotinha de ouro, afirmava: "O importante é levar vantagem em tudo, certo?" Esta frase instituiu um importante componente significativo da cultura nacional por muito tempo, criou-se a Lei de Gérson.

Os estúdios de Walt Disney, através da política de boa vizinhança propagada pelos EUA, criou personagens representativos das duas nações aliadas mais importantes do continente, México e Brasil. Nasceu, então, Zé Carioca, um papagaio malandro que vive de enganar, ludibriar, mentir, levando vantagem em todas as situações. Seria esta a visão do mundo sobre os brasileiros?

Antonio Candido, em Dialética da Malandragem (1993) caracteriza o malandro como um "aventureiro astucioso...cuja malandragem visa quase sempre ao proveito ou a um problema concreto, lesando frequentemente terceiros na sua solução." Antonio Candido também afirma que este malandro "seria elevado à categoria de símbolo por Mário de Andrade em Macunaíma." Assim é possível afirmar que este esteriótipo de malandro, instituído no imaginário popular, foi também figurado por Mário de Andrade em sua rapsódia e de uma maneira folclórica e fantástica, que nos leva a crer na intenção de desmistificar/mitificar este mesmo esteriótipo.

"No mucambo si alguma cunhatã se aproximava dele pra fazer festinha, Macunaíma punha a mão nas graças dela, cunhatã se afastava. Nos machos guspia na cara. Porém respeitava os velhos e frequentava com aplicação a murua a poracê o torê o bocororô a cucuicogue, todas essas danças religiosas da tribo" (ANDRADE, MARIO, Macunaíma, o herói sem nenhum caráter, p.6, 1988)

A imagem do brasileiro como um malandro seria sem dúvida um conceito equivocado, afinal uma figura sem nenhum caráter não poderia ser a representação de nós, brasileiros, porém esta figuração malandra efetuada por Mário de Andrade tem um propósito objetivo, o de transmitir uma visão irônica de um herói que só poderia ser brasileiro, pois habita em lugares/situações comuns na sociedade brasileira, que o obriga a usar de astúcia para sobreviver. Segundo Telê Porto, Rapsódia e Resistência, 1988, Mário teria "desejado apenas simbolizar - sem o símbolo - um brasileiro", no entanto este símbolo seria uma forma de expressar, "o modo de ver do povo brasileiro que o narrador adota: sensível à pluralidade dos sentidos, à ambiguidade, ao jogo, ao humor, à fantasia, à bricolagem (BOSI), atento ao refazer poético do mundo (VICO) no cotidiano, sem perder de vista a fôrma mito." Há, portanto, em Mário de Andrade a intenção clara de criticar o modelo naturalista/realista até então adotado na sociedade brasileira, que embora falasse objetivamente das situações enfrentadas por esta mesma sociedade, não rompia com valores e tabus estabelecidos. Mário faz isso utilizando-se de linguagem e imagens diferenciadas, assim, seu herói sem nenhum caráter traduz as suas intenções por de trás de uma malandragem característica do folclore popular. Nosso herói e anti-herói, representa através de sua personalidade duvidosa, de sua malandragem, a quebra de tabus e de certezas instituídas.

Macunaíma não é um herói comum, na verdade um anti-herói, por todo o texto o personagem é chamado de herói, mas este herói seria um herói as avessas, um herói ardiloso, irônico e engraçado, pregador de peças, mentor de façanhas por toda a trama. Mário de Andrade, o intitula, o herói sem nenhum caráter e é esta questão, a questão da falta de caráter a característica principal que define o típico malandro. Para Darcy Ribeiro, Liminar, 1988, a questão do caráter ou a falta dele em Macunaíma é traçado como algo intrigante e o autor questiona, se: "não seria ele assim, tão sem juízo e compostura, para contrapor-se ao senso comum da gente séria, ajuizada, ganhadora de dinheiro, virtuosa e servil? Os que fazem e conservam este mundo feio e triste, tal qual é? " E adiante Darcy afirma que:

"Ser Macunaíma, o herói de nossa gente...só pode ser porque ele veste a carne que nos veste; porque é a carapuça que nos cabe, a nós brasileiros. Falo, é claro, não de nós, do clube dos contemplados, mas do brasileiro-massa, povão, desde sempre humilhado e ofendido, o que, aparentemente, é toda uma contradição." (RIBEIRO, DARCY, Liminar, p. 21, 1988)

Podemos, assim, encontrar em Macunaíma, um traço muito comum daqueles que buscam ganhar vantagem em todas as situações, nossos queridos malandros, o gosto pelo prazer imediato. O malandro tem como princípio fazer aquilo que lhe proporcione prazer e muito pouco esforço, portanto, a preguiça e o erotismo encontrados em Macunaíma, demonstram sua peculiar malandragem.

O erotismo, móvel de uma parcela do agir do herói é traço de caráter que se radica, como os demais, no já conhecido princípio do prazer. É a irresponsabilidade que lesa a ética da tribo e das relações com mano Jiguê, ou o obstáculo que afasta Macunaíma de seu destino no episódio do Sol. E é manifestação do sexo liberto da jesuítica noção do pecado, desnudando-se como alegria e plenitude na sintaxe renovadora "se rindo um para o outro" e no verbo "brincar". (PORTO, TELÊ, Rapsódia e Resistência, p. 274, 1988)

O termo brincar que é empregado na obra para significar o ato sexual, nos remete a uma "ingenuidade" vadia, meio malandra, mas uma malandragem brejeira, marota e gracejadora, como podemos perceber no trecho abaixo.

"Macunaíma dava um safanão na rede atirando Ci longe. Ela acordava feito fúria e crescia pra cima dele. Brincavam assim. E agora despertados inteiramente pelo gozo inventavam artes novas de brincar. Nem bem seis meses passaram e a Mãe do Mato pariu um filho encarado". (ANDRADE, MÁRIO, Macunaíma, um herói sem nenhum caráter, p. 26, 1988)

As características que compõem a personalidade de Macunaíma, contudo, figuram um personagem além da obra de Mário de Andrade, um personagem popular inerente a nossa cultura, cujo já até ganhou uma ópera, Ópera do Malandro de Chico Buarque, 1978, musical baseado no musical de John Gay, Ópera do mendigo, 1728, e a Ópera dos Três Vinténs, de 1928, uma das maiores obras de Berlim. Chico Buarque assim como Mário, usa o enredo de pretexto para discutir sua sociedade, discute portanto, através da malandragem carioca, questões como a decadência de um sistema econômico, social e político.

Segundo Darcy Ribeiro, este herói sem nenhum caráter, poderia caracterizar a condição de brasileiro outrora oprimido e explorado, que através da "caçoada folclórica", do povo que dança, canta, ironiza e ri, vinga-se de quem tenta ou tentou fazer sua cabeça. Se Mário de Andrade, quis sugerir que a malandragem é um traço expressivo da personalidade do brasileiro, certamente a fez para criticar aquela sociedade. Através do folclore e de personagens tipicamente brasileiros; o indígena, o negro, o mestiço, rompe com as instituições sociais e morais preconceituosa e hipócrita. A figura deste nosso malandro, realizada pelo herói e anti-herói Macunaíma, verte o herói de nossas contradições, que mesmo adaptado à aquela sociedade, não se entrega à lógica da racionalidade europeia.

Bibliografia:

Andrade, Mário, Macunaíma, o herói sem nenhum caráter. Paris: Association Archives de la Littérature latino américaine, des Caribes et africaine du XX sècle; Brasília, DF: CNPq, 1988.

Cândido, Antonio, Dialética da malandragem, in: O discurso e a cidade. São Paulo: Duas Cidades, 1993.

Porto, Têle, Rapsódia e Resistência, in: Macunaíma, o herói sem nenhum caráter. Paris: Association Archives de la Littérature latino américaine, des Caribes et africaine du XX sècle; Brasília, DF: CNPq, 1988.

Ribeiro, Darcy, LIMINAR: Macunaíma, in: Macunaíma, o herói sem nenhum caráter. Paris: Association Archives de la Littérature latino américaine, des Caribes et africaine du XX sècle; Brasília, DF: CNPq, 1988.

Mila Paiva
Enviado por Mila Paiva em 29/02/2012
Reeditado em 24/01/2013
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