Da Necessidade de Superação dos Limites da Análise Semiótica em Literatura

Da Necessidade de Superação dos Limites da Análise Semiótica em Literatura

Por: Jayro Luna (Jairo Nogueira Luna)

Resumo: Neste artigo buscamos analisar as relações atuais entre o método semiótico e a literatura de modo a compreender as dificuldades de aplicação na análise de obras literárias e de como o método parece estar ainda em desenvolvimento, exigindo do estudioso uma postura criativa no sentido da descoberta de categorias semióticas aplicáveis.

Palavras-chave: Semiótica, Interpretação, Crítica Literária.

1. Semiótica e Literatura

A Semiótica de que tratamos neste artigo é notadamente a peirceana, fundamentada nos trabalhos de C. S. Peirce (1) e com desenvolvimentos em autores contemporâneos entre os quais, citamos, Umberto Eco(2) , Lúcia Santaella (3) , Décio Pignatari (4) e Elisabeth Walter-Bense (5) . Não nos deteremos, senão circunstancialmente em aspectos ligados à Semiologia de base Saussureana ou à Semiótica Greimasiana. Nosso propósito é tomar por base a teoria geral dos signos conforme a delineada por Peirce e os desenvolvimentos como os que fez Umberto Eco no que tange aos conceitos de diagramas, desenhos, emblemas e sinais.

Ao estudioso que busca entender o método semiótico aplicado à análise literária talvez começasse seu percurso de aprendiz ou sua iniciação pela leitura de uma obra cujo título talvez vá direto à questão que é Semiótica e Literatura, de Décio Pignatari. Primeiramente editada em 1974, apresenta-nos algumas interessantes comparações. Ao estudar o processo de Paul Valéry para a análise literária, Pignatari observa que:

“Pensamento que se aprofunda é pensamento que se aproxima de seu objeto – este é o fundamento do pensamento metodológico de Valéry (e é extraordinário como essa idéia se acopla tão coerentemente à Semiótica de Peirce, para quem toda criação, científica ou artística, resulta num ícone).” (PIGNATARI, 1974, p. 29)

Esta colocação, algo aparentemente circunstancial, feita por Pignatari disfarça uma ousadia comparativa. Quando considera válida a afirmação de que toda criação (científica ou artística) resulta num ícone, deixa-nos no entretexto a ideia da concretude e também da busca da simbiose entre palavra e objeto, ou dito de outra forma, a eliminação da palavra, enquanto símbolo na acepção peircena pela imagem do objeto que representa, este sim o ícone referido. Por essa afirmação, Pignatari como que sutilmente coloca a ideia de que a criação artística – e nos referimos aqui, preferencialmente a ela – mais do que utilizar a linguagem como elemento constituinte e básico de si mesma, apresenta também a superação ou a transubstanciação dessa fisicalidade da linguagem em uma imagem mental que faz por tornar rarefeita esta mesma linguagem, restando ali as ligações abstratas.

Mais adiante, Pignatari vai explicando ao leitor as noções básicas da teoria dos signos de Peirce, mas em alguns momentos vai pontuando os parágrafos com afirmações mais complexas aqui e ali. Em determinado momento nos diz que “As sugestões associativas são inferências, segundo Peirce, e as inferências podem ser de dois tipos: por Contigüidade (Contiguity) e por Semelhança (Resemblance) (6)” . Observemos que a ideia de que existem dois tipos – contigüidade e semelhança – de inferências associativas permite-nos a confrontação com os conceitos de metáfora e metonímia, bem como com os conceitos de eixos paradigmáticos e sintagmáticos. Ao nosso ver, a metáfora se compõe no eixo sintagmático uma vez que dois elementos são comparados com vistas à determinação de suas características semelhantes, ao passo que, a metonímia se compõe num processo ligado ao eixo paradigmático em que características contíguas de um elemento ou objeto são destacadas num processo de substituição.

Na questão da criação artística e literária, a obra analisada demonstraria a utilização de uma arquitetura da linguagem em que esses dois tipos de inferências seriam o pano de fundo a servir de elementos estruturantes da composição da obra em seus aspectos microestéticos, porém, tal visão, não eliminaria a possibilidade de organização macroestética da obra. Não é, pois, por outro motivo que Pignatari faz observações em Proust, notadamente no episódio das madeleines (7) , ao conto de Edgar Alan Poe, The Fall of the House of the Usher (O Mal da Casa de Usher) e em Machado de Assis, Memórias Póstumas de Brás Cubas. Nestas obras, Pignatari busca nos apresentar como estes dois tipos de inferências compõem capítulos específicos das obras e de como tais capítulos são centrais na composição do enredo. As lembranças que traz o degustar das madeleines, os rabiscos de Brás Cubas no papel em busca do nome de Virgília, de como a casa de Usher contém os pronomes pessoais (she, he, us, her) e como house os possui em parte anagramaticamente.

Porém, ao término da leitura da Semiótica e Literatura, o leitor que queira ter um instrumental de análise encontrar-se-á instigado às descobertas, mas por outro lado, perceberá que é ele quem tem que construir ou descobrir as possíveis inferências de contigüidade e de semelhança, as relações abstratas de caráter metafórico e metonímico, mas não tem claro que isto seja o objetivo da análise, ou que tais descobertas o ajudarão de fato a ter uma leitura da obra que seja parte de um processo crítico substancial.

Já em A Assinatura das Coisas, de Lúcia Santaella, que tem o subtítulo de “Peirce e a Literatura” na verdade, tem como grande propósito a explanação do modo como o filósofo americano compreendia a classificação das ciências (com destaque para o capítulo “Cartografia das Ciências) e de como leitores de Peirce escreveram obras que buscam determinar características de categorias semióticas, como é o caso da Abdução. De fato, a autora não parte para uma aproximação metodológica entre a Semiótica, conquanto método, e a Literatura, como objeto. Somente no capítulo final “A Semiose Literária” a autora busca essa aproximação, mas sem uma especificação própria para o trato do objeto literário:

“Para se compreender as possibilidades de utilização dos meandros da definição de signo (identificadora dos elementos que fazem o signo agir e se movimentar) como um mapeamento ou guia, como um conjunto de sinalizações para a observação, descrição, análise e interpretação de semioses concretas (tais como estão em atividade no mundo: uma obra literária, por exemplo, um paciente em tratamento psicanalítico, o modo de vida de uma pessoa, as peças de teatro de um dramaturgo, uma matéria de jornal, uma exposição de videopoemas, etc.) algumas questões têm de ser levadas em conta.” (SANTAELLA, 1992, p. 198)

Podemos perceber como a análise literária nesta colocação não difere muito de análises da linguagem em situações concretas de comunicação, como a fala do paciente em tratamento psicanalítico ou uma matéria de jornal. Nesse âmbito, o método semiótico aplicado à análise literária não privilegia as particularidades da obra literária de modo a que devam merecer um conjunto particular ou próprio de procedimentos de análise semiótica para compreensão do processo de criação literária, o que ao nosso ver, incorre-se num generalismo uma vez que uma matéria de jornal ou o discurso do paciente não têm na mesma medida nem no mesmo contexto o aspecto da criação por meio do trabalho com a linguagem. Assim, justifica-se o parágrafo colocado na página 26 do livro de Santaella que começa por dizer que “Em vista disso, o objetivo prioritário deste livro é o de contextualizar a Semiótica peirceana dentro do corpo mais amplo de sua arquitetura filosófica, inserindo essa arquitetura no diagrama mais vasto da classificação das ciências”(p.26)

Um pouco mais adiante, Santaella relaciona a questão da criatividade com o conceito de Abdução em Peirce, onde diz que “(...) ‘o caráter semiótico do reconhecimento icônico’, ‘a iconicidade abdutora da metáfora’ etc. que se ampliam até as considerações acerca de uma Estética peirceana.” (p.40) utilizando citações do livro de Angel Herrero, Semiótica y Creatividad – La Lógica Abductiva (1988). E voltamos assim ao ponto citado de Décio Pignatari acerca da iconicidade da imagem literária.

2. Os Limites do Método

I.M. Lotman escrevendo acerca da semiótica russa observa que um sistema de relações sígnicas interpretativo da obra não pode se prender ao caráter estático, sendo preferível um sistema múltiplo que comporte diferentes processos de leitura e interpretação e é nas relações interprocessuais que surgiria a leitura semiótica:

“Ao colocar diante de si a finalidade consciente da construção de modelos dinâmicos da obra artística, é indispensável rejeitar sua contraposição categórica aos modelos estáticos e, mais ainda, negar-se a considerar esses dois tipos de modelização do texto artístico como metódica e metodologicamente hostis. Bem mais correta será sua interpretação como duas etapas da aproximação científica à compreensão do mecanismo de funcionamento social da obra. Um mesmo texto pode ser descrito de algumas maneiras diferentes. Sendo assim, se cada uma dessas descrições for tomada isoladamente, isto só será possível na qualidade de sistema estático, e então a estrutura dinâmica surgirá nas relações”. (LOTMAN, 1979, p.132)

Notemos a terminologia utilizada: modelos, por este termo subtende-se que a leitura crítica de uma obra comporta a utilização de modelos de caráter analítico e processual para estudo das obras. A Semiótica não fornece um modelo específico, embora apresente um conjunto de categorias classificatórias sígnicas e um sistema de análise do processo de apreensão sígnica. Sistema dinâmico, por esta expressão entendemos que o modelo, se utilizado, deva não ser estático, seu contraditório, mas sim aberto a novos acréscimos e modificações estruturais no próprio sistema. Estrutura dinâmica, as novas leituras e os novos acréscimos formariam um conjunto complexo de relações interpretativas, sejam complementares, ou mesmo até contraditórias, mas de cujo confronto surgiria uma visão macrosistêmica do todo.

Julia Kristeva chama-nos a atenção para o caráter específico da linguagem poética em contraposição a linguagem não poética (falada, cotidiana, referencial, etc.). No texto poético existe uma impossibilidade de comutabilidade das palavras, ao passo que na linguagem não poética a alteração da ordem de termos não necessariamente altera o significado do texto e ainda mais, essa possibilidade de alteração, por sua vez, implica na dispensabilidade do caráter estético da mensagem. Por outro lado, a linguagem poética se sustenta não num código específico, mas sim na interrelação de mais de um código, como por exemplo, o código da arte poética e o código lingüístico:

“Nesta perspectiva, claro é que o significado poético não pode ser considerado como dependente de um único código. Ele é ponto de cruzamento de vários códigos (pelo menos dois), que se encontram em relação de negação um com os outros.” (KRISTEVA, 1969, p.174)

Porém, argumentamos, não deixando de validar as colocações de Lotman e de Kristeva dentro dos contextos e momentos em que foram escritos, que a leitura semiótica da obra literária parece, ainda aos dias de hoje – já na segunda década do século XXI – carecer de um processo que sustente a estrutura dinâmica ou o sistema dinâmico e que demonstre inequivocamente que o cruzamento de vários códigos é uma característica constitutiva e construtiva da obra literária em termos de categorias semióticas. Na maior parte das vezes, as leituras semióticas complementam outras leituras (socioliterárias, históricas, estrutural-formalistas, desconstrutivistas, projectuais...)em termos de terminologias categóricas, mas cujas categorias não fazem efetivamente emergir uma nova leitura além do uso desta nova terminologia ou quando não, fazem por reforçar os aspectos significantes e composicionais do texto, equiparando leituras de caráter microestético com as leituras sócio-literárias em um nível de troca de similaridades, e nesse caso lembremos de Décio Pignatari ao considerar os grafismos de Brás Cubas como ponto articulador da tomada de consciência da personagem acerca do seu sentimento amoroso. E embora esta proposição se sustente na análise microestética da obra, ela não garante que a estrutura da obra tenha se articulado a partir deste ponto, podendo o mesmo ter sido apenas um acréscimo ornamentativo do estilo do autor.

Num brilhante trabalho acerca da obra poética do heterônimo pessoano Alberto Caeiro, intitulado O Guardador de Signos, um trocadilho bem colocado com relação ao mais conhecido poema do heterônimo, Rinaldo Gama busca constantemente a apreensão do processo pelo qual Caeiro tenta eliminar o pensamento em favor das sensações como elementos constitutivos de seu ser e estar no mundo:

“Isto não quer dizer que a expressão do real se dê sem a intermediação sígnica. É preciso não confundir o signo da Primeiridade, o ícone por excelência – se pensarmos na relação S-O do triângulo básico dos processos de significação – com esta categoria cenopitagórica. Refletindo a respeito de ‘questões sobre certas faculdades reivindicadas para o homem’, Peirce responde à possibilidade de se pensar sem signos: ‘É uma questão familiar, mas até agora a melhor resposta que lhe deram consiste em dizer que o pensamento precede o signo.’ A experiência da Primeiridade é sempre original, trata-se, como foi dito antes, de sensação pura, qualidade de sensação.” (GAMA, 1995, p. 54)

A Primeiridade, categoria peircena, está determinada pelas sensações. Conquanto sejam sensações sua duração no tempo é o tempo de sua percepção. A partir do momento em que se traduz em signo na memória fica-se o registro traduzido em outro signo de outra categoria que pode ser um índice ou um símbolo, conforme o mesmo processo de tradução ou de apreensão.

Alberto Caeiro, que sempre na busca de esquecer o modo de lembrar: “Procuro esquecer-me do modo de lembrar que me ensinaram, / E raspar a tinta com que me pintaram os sentidos, / Desencaixotar as minhas emoções verdadeiras, / Desembrulhar-me e ser eu, não Alberto Caeiro.” (PESSOA, 1977, p. 225-226), apresenta-nos um drama da consciência humana que é nosso modo de nos relacionarmos com a realidade, ou com o que definimos por realidade via este mesmo modo e o presente, este por sua vez, outro elemento inapreensível em sua fisicalidade plena, uma vez que o registro do instante presente na memória já o torna passado e o próprio modo físico de chegada da percepção pelos sentidos necessita de um tempo pra transcorrer, configurando o presente como no máximo um passado próximo.

Um físico pós Einstein, David Bohm coloca de modo interessante o modo como apreendemos as sensações e formamos nossa interpretação do que seja o real: “Este é o ponto em que quero chegar: o pensamento está afetando o que você vê. A representação entra na percepção.” (BOHM, 2007, p.101). Bohm, o criador dos conceitos de Ordem Implícita e Ordem Explícita acerca da configuração do universo no tempo e no espaço parece se aproximar do modo como a própria Semiótica compreende o que vemos e entendemos do Mundo. Rinaldo Gama teve o mérito de analisar um poeta cuja produção se apresente exatamente neste interstício entre o que vemos e/ou sentimos e o que pensamos, mas esta precisão de leitura se perde se escolhemos outras obras literárias em que o autor não tem esta preocupação ou construção, mas sim que constrói sua obra utilizando o processo como meio, especificamente, e não como mensagem, para contrariar um pouco Marshall Mcluhan, mas não muito, só o suficiente para que contextualizemos sua famosa afirmação: “the medium is the message / mass age”.

Citando Max Bense, a semioticista Elizabeth Walter-Bense busca argumentar na validade da aplicação de um método semiótico para análise das obras de arte e por conseguinte, da obra literária:

“Recentemente, Bense (Paper 9) ampliou suas elaborações de uma estética semiótica por meio de observações sobre a origem semiótica da arte, que ele contrapõe ao interesse pelo objeto, isto é, à origem objetiva da arte. Tendo em vista que toda representação artística é uma representação icônica, indexicálica ou simbólica e que por representação se entende uma relação de um meio com o objeto, o interesse principal do artista não é o objeto como tal, mas a representação com os meios da arte. Bense apóia essa concepção nas maneiras fundamentais de relação do homem com o seu ambiente, que ele determina mediante a ‘adaptação’ icônica, a ‘aproximação’ indexicálica e a ‘escolha’ simbólica, e que deve ser entendida não apenas geneticamente mas, de modo geral, como essencial para o comportamento humano.” (WALTER-BENSE, 2000, p. 89)

Max Bense em sua Pequena Estética (8) desenvolve uma fórmula matemática para medição da qualidade estética dos objetos: Ee = O/C, na qual “Ee” é o estado estético da obra que se obtém pela relação matemática de divisão entre um valor dado ao nível de Ordem (O) da obra e um valor dado de complexidade de sua estrutura (C). Esta fórmula, Bense obtém a partir da leitura de George D. Birkhoff acerca da medida da informação.

A relação entre ordem e complexidade é um bom artifício para obtenção de um valor construtivo ou composicional. Bense supõe que este valor seja condição para o prazer estético, o que parece ser verdadeiro, uma vez que a obra desordenada em seus elementos constitutivos e cuja simplicidade seja resultado de uma pobreza desses mesmos elementos não parece ser capaz de gerar agradabilidade por parte do receptor. De outro modo e numa linguagem menos técnica, Aristóteles já observava esta questão ao enunciar que “Além disso, o belo, em um ser vivente ou num objeto composto de partes, deve não só apresentar

ordem em suas partes como também comportar certas dimensões. Com efeito, o belo tem por condições uma certa grandeza e a ordem.”(ARISTÓTELES, c. VII, 8).

Notemos que a definição quantitativa do estado estético de uma é em Max Bense bem aplicável aos objetos em que elementos de complexidade são definidos por coisas como simetria, tamanho, volume, cores, etc. No caso da obra literária a aplicação de tal fórmula implicaria num cem número de possibilidades de medição da ordem e da complexidade que levaria a um paradigma sem fim de possibilidades semânticas, semióticas e estruturais. A colocação de que Max Bense em escrito posterior à Pequena Estética de que “toda representação artística é uma representação icônica, indexicálica ou simbólica” não vai além do óbvio a partir das colocações de Peirce, uma vez que a tríade ícone-índice-símbolo para Peirce dá conta de todas as possibilidades de signo no âmbito da relação S-O (Signo para com seu Objeto). O que faz da análise do texto ou de uma intenção de operação no texto em que se descortinem os efeitos de adaptação, aproximação e escolha como uma mera atividade classificatória segundo um novo parâmetro, mas que não opera efetivamente no sentido da exploração semiótica do texto.

Para Umberto Eco a questão da intenção de operação do/no texto é um elemento definidor das condições de interpretação, uma vez que duas ações podem determinar isto: o uso e a interpretação. O uso é uma ação pragmática que não necessariamente leva à interpretação, que é de caráter teórico:

“Uso e interpretação são, certamente, dois modelos abstratos. Toda leitura resulta sempre de uma comistão dessas duas atitudes. Às vezes acontece que um jogo iniciado como uso acabe produzindo lúcida e criativa interpretação – ou vice-versa. Às vezes, mal-interpretar um texto significa desencrustá-lo de muitas interpretações canônicas precedentes, dele revelar novos aspectos, e, nesse processo, o texto passa a ser muito melhor e mais produtivamente interpretado segundo sua intentio operis, que as inúmeras intentiones lectoris precedentes, camufladas de descobertas da intentio auctoris, haviam atenuado e obscurecido.” (ECO, 1999, p.18)

Neste sentido, mesmo a tentativa algo malograda de aplicação dos conceitos estético-matemáticos de Max Bense e Birkhoff para compreensão de um texto literário no que se refere à sua forma podem ser úteis no sentido dessa desencrustação. Lembro do trabalho de Jean Roche, Jorge Bem Mal Amado, em que faz uso de um extenso levantamento estatístico de vocabulário, construções sintáticas, expressões idiomáticas para descobrir uma alteração no uso da linguagem em obras anteriores e posteriores ao seu retorno após exílio no exterior, redefinindo a partir dessa constatação quantitativa o conceito de literatura engajada (9). Mas é sempre um alto risco esta operação do/no texto sem que se tenha um propósito definido de onde se pretende chegar, podendo o jogo iniciado terminar num vazio infinito ao qual as várias relações levantadas em tabelas e gráficos não ir além de apontar um conjunto de aspectos micro e macro-estéticos que no mais das vezes mais complicam do que interpretam o texto. Não é raro encontrar no auge da vigência do estruturalismo como método crítico a existência de trabalhos dessa ordem.

3. Para além...

A Semiótica parece ser herdeira dessa pecha creditada ao Estruturalismo, uma vez que as análises semióticas da literatura têm encontrado uma barreira interpretativa que só parece ser superada quando se opera com elementos não propriamente advindos da teoria semiótica, mas adaptados de outras formulações como os aspectos histórico-sociais delineados desde a Sociologia da Literatura com as homologias de Goldmann (10) ou da Hermenêutica em Heidegger ou Hans Gadamer (11)ou, ainda, da Estética da Recepção em Jauss (12)ou em Iser (13). Ou quando não se intenta esta superação a leitura fica no âmbito de encontrar na classificação de signos peirceana um conjunto de definições que se articulem com os aspectos composicionais do texto.

Greimas parece querer superar essa barreira quando apresenta o conceito de isotopia, ou seja a proposição de que existem níveis de leitura ou “um conjunto redundante de categorias semânticas que tornam possível uma leitura uniforme do texto, tal como provém de leituras parciais dos enunciados e da resolução de suas ambigüidades, que é guiada pela busca de uma leitura única” (GREIMAS, 1970, p. 188). Ou dito de outro modo, um texto literário pode permitir diversas leituras, mas não infinitas leituras. O limite de leituras decorre da natureza própria dos aspectos semânticos da obra e por extensão, dos aspectos sócio-culturais, o que inclui seu contexto. Mônica Rector a este respeito, observa que as diferentes leituras, quando colocadas em confronto, produzem uma pluri-isotopia:

“Isto não quer dizer que haja uma infinidade de leituras possíveis. As leituras podem ser várias, mas em número finito, as variações provêm do leitor que ‘destrói’ ou ‘desestrutura’ o texto. O importante é fixar-se na passagem de uma isotopia a outra, e das relações de profundidade entre as várias leituras possíveis. As leituras, ao contrário do que possa parecer, não são independentes, mas estabelecem relações determináveis entre si.” (RECTOR, 1978, p. 75).

Neste sentido, parece-nos que o conceito de pluri-isotopia muito se aproxima do de sistema dinâmico do qual falamos quando da citação de I.M. Lotman. O que nos parece abrir uma nova possibilidade é no que se refere acerca das “relações de profundidade entre as várias leituras possíveis”. Neste sentido, o conjunto finito de possibilidades encontra a abertura para leituras que não sejam centralizadas no formalismo, ou no estruturalismo, ou na semiótica, ou na hermenêutica, ou na estética da recepção e etc., qualquer método provê o sistema pluri-isotópico de uma nova leitura possível, desde que fundamentada – e aí está sua profundidade – em um conjunto coeso e coerente de proposições acerca do modo de leitura da obra que permite a interpretação desta nas diferentes isotopias.

No nosso entendimento se articularia sobremaneira a necessidade de ressignificação constante da obra em função das várias leituras possíveis. A ressignificação, conquanto o termo seja utilizado também na neurolinguística, no sentido de que ressignificar é o ato de atribuir novo significado a acontecimentos através da mudança de visão de mundo, nos parece, que tal uso neurolinguístico tem suas bases em Carl Jung, ainda que alguns neurolinguistas objetem quanto a isto. No âmbito da semiótica o termo comparece, por exemplo, ao se tratar dos desdobramentos do processo de intersemiose ou de tradução intersemiótica. Curioso é que não são poucos os trabalhos acadêmicos que fazem uso do termo sem lhe dar o devido significado (14). Mesmo nós em dois artigos utilizamos o termo sem uma definição específica (15). O termo carece de definição precisa na semiótica, embora se encontre seu uso em vários autores, seu significado parece ser genérico, no entanto, muito profícuo a confusões. O termo pode ser entrevisto na teoria peirceana quando se considera o fato de que um signo pode gera outro signo ad infinitum e por outro lado, o conceito de sinequismo peirceano que considera “‘O sinequismo é a tendência do pensamento filosófico que insiste na ideia de continuidade como tendo importância primordial em filosofia e, em particular, na necessidade de hipóteses envolvendo a verdadeira continuidade.”(PEIRCE, Collected Papers, 6.168). A continuidade da tradução de um signo em outro signo é, pois, um efeito análogo ao sinequismo.

O signo que é um ícone pode ser traduzido num índice e posteriormente num símbolo, e vice-versa; ou ainda, um símbolo pode gerar outros símbolos e cada tipo de signo gerar outros signos continuamente. Neste sentido, a ressignificação seria uma característica do signo em geral se entendermos que ressignificar significa dar novo significado ao signo, o que em verdade, é criar um novo signo a partir de um primeiro e não propriamente dar um novo significado ao signo, o que, em termos precisos da determinação peirceana seria incoerente. Porém, tomemos o termo já de uso genérico e o adotemos como significado esta possibilidade dar novo significado ao signo, o que, reiteramos, é criar novo signo a partir de outro.

No âmbito da relação da obra literária com seu contexto social, cultural e histórico pode-se pensar na possibilidade de se encontrar estruturalmente na mesma obra elementos que a atualizam em função do tempo e do espaço. Neste sentido, a obra em questão não envelheceria e não são poucos os casos de obras que continuam sendo lidas e reinterpretadas continuamente através dos tempos. A Bíblia seria um exemplo típico, mas podemos pensar em Shakespeare, Fernando Pessoa, Homero, enfim, uma gama de autores considerados fundamentais em suas literaturas nacionais.

Essas relações no tempo e no espaço provocariam leituras que poderíamos classificar como isotopias e pluri-isotopias, no termo de Greimas ou num sistema dinâmico, Lotman, e que, ao final das contas, ressignificam a obra como um todo. Porém, descobrir que ligações permitem essas releituras da obra nas suas diferentes contextualizações de tempo e espaço abrem um novo leque, qual seja o descobrir signos que são símbolos utilizados na obra e que geram novos símbolos ao contato com novos contextos. Este é ao nosso ver, uma das tônicas do que denomino de Neo-estruturalismo Semiótico.

Neste sentido é que se pode ler um romance como Eurico, o Presbítero, de Alexandre Herculano, que parece preso ao ideal romântico nacionalista do século XIX e descobrir que as narrativas das batalhas ali apresentadas e que compõem parte considerável do próprio texto são análogas a estrutura do jogo de xadrez (16), tendo por base que o jogo de xadrez é a representação de uma batalha medieval, e nos surpreendermos que o número de personagens envolvidos nas descrições das batalhas é equivalente em número e posição às peças dos jogo de xadrez. Ou ainda, que a árvore da vida da Cabala possui correlação com a disposição das personagens principais do Fausto de Goethe (17) ou que o “Sonetilho do Falso Fernando Pessoa”, de Drummond (Claro Enigma) tem um conjunto de semelhanças de figuras sonoras e de estrutura com “Ulysses” de Fernando Pessoa (Mensagem)(18).

Deste modo, a leitura semiótica da obra literária ainda encontra limites que devem ser superados com vistas à formulação de um método mais consistente com as possibilidades de leitura e interpretação das obras. O Neo-estruturalismo Semiótico tem a seu favor o fato de propor uma busca de pluri-isotopias para compor um sistema dinâmico, na qual as relações entre a obra e o seu contexto histórico, social e cultural permitem a descoberta de elementos que ressignificam não apenas a leitura da obra, mas o signo exterior – inscrito no âmbito do imaginário social – que passa a ter uma ligação com a obra.

NOTAS:

1 PEIRCE, C.S. Collected Papers. Cambridge, Harvard University Press, 4 vols., 1960 Em português há um livro com um substrato da obra: Semiótica, série Estudos, Ed. Perspectiva, 1979

2 ECO, Umberto. Os Limites da Interpretação. São Paulo, Perspectiva, 1999. As Formas do Conteúdo. São Paulo Perspectiva, 1974. Tratado Geral de Semiótica. São Paulo, Perspectiva, 1975.

3 SANTAELLA, Lúcia & NÖTH, Winfried. Imagem: Cognição, Semiótica, Mídia. São Paulo, Iluminuras, 2008. SANTAELLA, Lúcia. A Assinatura das Coisas: Peirce e a Literatura. Rio de Janeiro, Imago, 1992. Cultura das Mídias. São Paulo, Paullus, 2003. O que é Semiótica. São Paulo, Brasiliense, 1983.

4 PIGNATARI, Décio. Semiótica e Literatura. São Paulo, Perspectiva, 1974. Signagem da Televisão. São Paulo, Brasiliense, 1984.

5 WALTER-BENSE, Elisabeth. Teoria Geral dos Signos. São Paulo, Perspectiva, 2000.

6 Op.Cit., pg. 62.

7 PROUST, Marcel. Em Busca do Tempo Perdido. Rio de Janeiro, Ediouro, 3 vols, 2009. O episódio em questão encontra-se em No Caminho de Swann.

8 BENSE, Max. Pequena Estética. São Paulo, Perspectiva, col. Debates, 2.ª ed., 1975

9 “Outro elemento que possui o mesmo tipo de evolução, de Capitães a Tocaia grande, é a frequência das orações subordinadas. Quanto aos outros aspectos da sintaxe e dos processos expressivos, começam depois de Capitães os movimentos em “dentes de serra”, ou seja, para as subordinadas nucleares, as adverbiais principalmente, os índices de variedade, de liberdade, a frequência das frases nominais, a inversão do sujeito, a proporção de inversão do adjunto adverbial em relação ao total de utilização deste complemento, a pontuação marcada, movimentos, esses, que se estendem até Tocaia grande.” (ROCHE, Jean. Jorge Bem/Mal Amado. São Paulo, Cultrix, 1987, p.157-158)

10 GOLDMANN, Lucien. Sociologia do Romance. Rio de de Janeiro, Paz e Terra, 1967.

11 GADAMER, Hans-Georg. Hermenêutica da Obra de Arte. São Paulo, Martins Fontes, 2010.

12 JAUSS, Hans Robert. História da Literatura como provocação à Ciência Literária. São Paulo, Ática, 1994.

13 ISER, Wolfgang. Literatura e O Leitor. São Paulo, Paz e Terra, 2011.

14 Para fins de exemplificação citamos: ROCHA, Patrício. “Montagem e ‘ressignificação’: a utilização de imagens de arquivo de televisão no documentário brasileiro”. In: Revista Temática, ano 8, n.° 8, agosto de 2012 (www.insite.pro.br). NAKAGAWA, Regiane M. O. “A ressignificação do meio e da mídia revista pela publicidade de imprensa; o caso do anúncio Visa” in: UNIrevista, vol. 1, n.° 3, julho 2006. (http://www.unirevista.unisinos.br). FRAGOSO, Suely. “Calidoscopia Midiática: da criação à ressignificação das imagens em perspectiva”. Intexto, n.° 11, 2004 (http://seer.ufrgs.br/intexto/article/view/4049/4451). SILVA, Luiza Helena O. “O passado que se faz presença: uma leitura de Meu Primeiro Picolé, de José Francisco da Silva Concesso.” In: Revista do Curso de Mestrado de Ensino de Língua e Literatura da UFT, n.° 2, 2011/1. (http://www.uft.edu.br/pgletras/revista/capitulos/4.concesso.pdf). SILVA, Cíntia Alves. As Cartas de Chico Xavier: Uma Leitura Semiótica. Dissertação de mestrado, orientação: prof.dr. Jean Cristus Portella. Araraquara, Unesp, 2011. Interessante observar que o termo aparece no resumo da dissertação e em mais três momentos no corpo do texto sem, no entanto, uma definição.

15 LUNA, Jayro. “ Hermenêutica do Neo-estruturalismo Semiótico” in: Genes: Boletim do Grupo de Estudos Neo-estruturalistas Semióticos, v. 3, p. 9-15, 2007. “ Estética da Recepção e o Neo-estruturalismo Semiótico” in: Genes: Boletim do Grupo de Estudos Neo-estruturalistas Semióticos, v. 2, p. 8-14, 2006.

16 LUNA, Jayro. “O Jogo de Xadrez e as batalhas medievais de Eurico, o Presbítero: Anotações esparsas para uma análise formalista” in: Caderno de Anotações. São Paulo, Opportuno, 2003. p. 27-36

17 LUNA, Jayro. “A Árvore da Vida entre Deus e o Diabo em Milton, Goethe e Saramago” em: Teoria do Neo-estruturalismo Semiótico. São Paulo, Vila Rica, 2006. p. 101-153.

18 MARQUES, Cristina F.L. “Uma Leitura de Pessoa Por Drummond: Sonetilho do Falso Fernando Pessoa” em: Revista Diálogos, n.° 7, p. 49-57.

REFERÊNCIAS

ARISTÓTELES. Arte Poética e Arte Retórica. Rio de Janeiro, Ediouro, 1985.

BENSE, Max. Pequena Estética. São Paulo, Perspectiva, col. Debates, 2.ª ed., 1975

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Necessity of Overcoming Limitations of Semiotic Analysis in Literature

Abstract: In this article we analyze the current relationship between the semiotic method and literature in order to understand the difficulties of applying the analysis of literary works and the method seems to be still under development, requiring the reader a creative attitude towards the discovery of semiotic categories applicable.

Keywords: Semiotics, Interpretation, Literary Criticism.