Cruz e Sousa
o eterno simbolista

Falar de Cruz e Sousa, explicar quem foi esse homem; esse poeta; esse negro admirável; é lembrar que o Brasil teve, no fim do século XIX, um grandioso talento na literatura.
 
Nessa época viajamos ao som de Debussy, pelo impressionismo de Renoir e Van Gogh. Convictos de que a linguagem não pode pretender representar a realidade como ela de fato é. Pode-se, no máximo, sugeri-la. Seguindo por esse caminho anti-materialista, produto de uma forte crise espiritual a que se tem chamado decadentismo do final do século, foram marcantes na literatura o uso de símbolos, imagens, metáforas e sinestesias. Isso sem contar os recursos sonoros e cromáticos, tudo com a finalidade de exprimir o mundo interior, intuitivo, anti-lógico e anti-racional. Por isso, esse período foi chamado de Simbolismo.
 
Para Charles Baudelaire, poeta francês pós-romântico e precursor do movimento simbolista, a poesia é a expressão da correspondência que a linguagem é capaz de estabelecer entre o concreto e o abstrato, o material e o ideal.
 
Tal qual o Romantismo, que reagira contra o racionalismo burguês do século XVIII (o iluminismo), o Simbolismo rejeita as soluções racionalistas, empíricas e mecânicas trazidas pela ciência da época e busca valores ou ideais de outra ordem, ignorados ou desprezados por ela: o espírito, a transcendência cósmica, o sonho, o absoluto, o nada, o bem, o belo, o sagrado, etc.
 
A origem dessa tendência espiritualista e até mística situa-se nas camadas ou grupos da sociedade que ficaram à margem do processo de avanço tecnológico e científico do capitalismo do século XIX e da solidificação da burguesia no poder. São setores da aristocracia decadente e da classe média que, não vivendo a euforia do progresso material, da mercadoria e do objeto, reagem contra ela. Propõem a volta da supremacia do sujeito sobre o objeto, rejeitando desse modo o desmedido valor dado às coisas materiais.
 
Assim, os simbolistas procuram resgatar a relação do homem com o sagrado, com a liturgia e com os símbolos. Buscam o sentimento de totalidade, que se daria numa integração da poesia com a vida cósmica, como se ela, a poesia, fosse uma religião.
 
Sua forma de tratar a realidade é peculiar. Partem do princípio de que é impossível o retrato fiel do objeto; o papel do artista, no caso, seria o de sugeri-lo, por meio de tentativas, sem querer esgotá-lo. Desse modo, a obra de arte nunca é perfeita ou acabada, mas aberta, podendo sempre ser modificada, ampliada ou refeita.
 
Essa concepção da realidade e da arte trazida pelos simbolistas suscita reações entre setores positivistas da sociedade. Chamados de malditos ou decadentes, os simbolistas ignoram a opinião pública, desprezam o prestígio social e literário, fechando-se numa quase religião da palavra e suas capacidades expressivas.
 
O Simbolismo - com as propostas de inovação, oposição e pesquisa trazidas pela geração de Verlaine, Rimbaud e Mallarmé - não sobrevive muito. O mundo presencia a euforia capitalista, o avanço científico e tecnológico. A burguesia vive a belle époque, um período de prosperidade, de acumulação e de prazeres materiais que só terminaria com a eclosão da Primeira Guerra Mundial, em 1914.
 
Nesse contexto, o Simbolismo desaparece. Mas deixa ao mundo um alerta sobre o mal-estar trazido pela civilização moderna e industrializada, além de códigos literários novos, que abrirão campo para as correntes artísticas do século XX, principalmente o Expressionismo e o Surrealismo, também preocupados com a expressão e com as zonas inexploradas da mente humana, como o inconsciente e a loucura.
 
O Simbolismo retoma alguns dos procedimentos românticos, entre eles o interesse pelo mistério, pelo macabro e por ambientes noturnos. Nossos principais simbolistas escreveram poemas que dão continuidade à tradição gótica, como é o caso de Cruz e Sousa.
 
Ao contrário do que ocorreu na Europa, onde o Simbolismo se sobrepôs ao Parnasianismo, no Brasil o Simbolismo foi quase inteiramente abafado pelo movimento parnasiano, que gozou de amplo prestígio entre as camadas cultas até as primeiras décadas do século XX. Apesar disso, a produção simbolista deixou contribuições significativas, preparando o terreno para as grandes inovações que iriam ocorrer no século XX, no domínio da poesia.
 
Cruz e Sousa ligou-se ao movimento simbolista em parte influenciado nas redações e em rodas de bar ou café, no lugar que funcionava como ponto-de-encontro dos novos e combativos moços de vanguarda. Como diz Araripe Júnior: "Lembra-me de que em 1891 formou-se um grupo de rapazes em torno da Folha Popular (jornal da época). Foi aí que os novos, tomando por insígnia um fauno, tentaram as suas primeiras exibições. A esse grupo prendiam-se, por motivo de convivência e por aproximações de idade, Bernardino Lopes, Perneta, Oscar Rosas e Cruz e Sousa".
 
Este grupo teve a inclusão de Gonzaga Estrada, que com mais dois amigos (Lima Campos e Mário Pederneiras) funda em 1897 a revista simbolista Galáxia.
 
Também entre este grupo de amigos temos a presença de Saturnino de Meireles, poeta simbolista nascido no Rio de Janeiro. Este possuía um emprego modesto, mas dava a Cruz e Sousa uma quarta parte do seu salário. Promoveu a edição póstuma de Evocações, através de assinaturas e seu próprio recurso. Adquiriu o terreno para o monumento de Cruz e Sousa, no cemitério de São Francisco. E dedicou seu livro Astros mortos (1903) ao "grande mestre e divino amigo".
 
Em 1895 o poeta simbolista Alphonsus de Guimaraens (1870-1921), de Minas Gerais e agora com o curso de direito concluído em São Paulo, quis passar pelo Rio de Janeiro, antes de retornar ao seu Estado natal, para conhecer o poeta negro. E desse episódio é interessante uma história narrada por Henriqueta Lisboa, em sua Conferência sobre Alphonsus de Guimaraens:
 
"Ao caminharem pela rua, Alphonsus apontou para um escritor eminente que ia passando:
 
– Olha ali, o Coelho Neto! Vamos falar com ele!
 
 – Não! - rejeitou Cruz e Sousa - Eu detesto esta gente".
 
Ora, sabe-se que Cruz e Sousa tinha uma oposição declarada aos estetas passadistas, aos quais denominava de "asininos".
 
Cruz e Sousa (1862 - 1898), filho de escravos, foi amparado por uma família aristocrática, que o ajudou nos estudos. Ao transferir-se para o Rio, sobreviveu trabalhando em pequenos empregos e sempre foi alvo do preconceito racial. Na juventude, teve uma grande desilusão amorosa, ao apaixonar-se por uma artista branca. Acabou casando-se com Gavita, uma negra, que mais tarde ficaria louca. O poeta conheceu a moça por acaso no bairro pobre de Catumbi, onde foi visitar um amigo seu, João Várzea, e a viu em frente ao portão do cemitério que havia ali perto. Ela era escrava do Juiz Dr. Antônio Rodrigues Monteiro, humanitário e abolicionista, que deu à moça uma excelente educação.
 
Gavita Rosa Gonçalves foi o esperançoso namoro de um ano. Nesse período Cruz e Sousa preparava Missal e Broquéis, publicados ao longo de 1893.
 
Acredita-se que o noivado influenciou todo o conteúdo de Broquéis. As sublimações, ao subirem ao plano da fantasia se tornam nebulosas, alvas, claras... ainda que a noiva Gavita fosse negra.
 
Várias passagens em Broquéis apresentam reflexos do brilho de alabastro de Gavita.
 
Depois de consagrado com a publicação de dois livros marcantes do simbolismo brasileiro, casa-se Cruz e Sousa com Gavita em 9 de novembro de 1893.
 
Mas então veio uma desgraça suprema para acabar de vez com sua vida. O ano em que tudo começou foi 1896. Gavita enlouquece em março, e fica nesse estado durante seis meses. Cruz e Sousa deixa páginas comoventes sobre o ocorrido. Como se não bastasse o seu estado de pobreza, ainda teria que cuidar de dois filhos pequenos e um recém-nascido. Consequentemente sua mulher contrai uma anemia profunda que altera de vez suas faculdades mentais. Cruz e Sousa tem então sua saúde pessoal abalada. E mal ia chegando ao fim o mal desta loucura, vem o telegrama comunicando o falecimento do seu velho pai.
 
De quatro filhos que o casal teve, apenas dois sobreviveram. Cruz e Sousa morreu com 36 anos, vítima de tuberculose.
 
Seu amigo Nestor Vitor fez o discurso de despedida:
 
"Diga-se, para honra do Brasil: não foram apenas seus amigos que se abalaram com a sua morte; foi todo o país, no que ele tinha propriamente de intelectual, tanto quanto naquele momento lhe era possível conhecer o alcance da perda que sofria".
 

Hoje Cruz e Sousa é considerado o mais importante poeta simbolista brasileiro e um dos maiores poetas nacionais de todos os tempos. Seu valor, contudo, só foi reconhecido postumamente, depois que o sociólogo francês Roger Bastide colocou-o entre os maiores poetas do Simbolismo universal.
 
Sua obra poética apresenta diversidade e riqueza. De um lado, encontram-se aspectos noturnos do Simbolismo, herdados do Romantismo: o culto da noite, certo satanismo, o pessimismo, a morte, etc.
 
De outro lado, há certa preocupação formal que o aproxima dos parnasianos: a forma lapidar, o gosto pelo soneto, o verbalismo requintado, a força das imagens; de outro, ainda, a inclinação à poesia meditativa e filosófica, que o aproxima da poesia realista portuguesa, principalmente de Antero de Quental.
 
Juntamente com o poeta realista português Antero de Quental e o pré-modernista brasileiro Augusto dos Anjos, Cruz e Sousa apresenta uma das poéticas de maior profundidade em língua portuguesa, quanto à investigação filosófica e à angústia metafísica.
 
O drama da existência, em sua obra, revela uma provável influência das ideias pessimistas do filósofo alemão Schopenhauer. Além disso, certas posturas de sua poesia - o desejo de fugir da realidade, de transcender a matéria e integrar-se espiritualmente no cosmo - parecem originar-se não apenas do sentimento de opressão e mal-estar trazido pelo capitalismo, mas também do drama racial e pessoal que vivia.
 
A trajetória de sua obra parte da consciência e da dor de ser negro, em Broquéis; e à dor de ser homem, em busca da transcendência, em Faróis e Últimos sonetos, obras póstumas.
 
Por uma razão transcendental, Cruz e Sousa preocupava-se muito para que seus livros fossem publicados, como permanência do espírito após a morte.
 
Observe o conteúdo de uma página de Missal, sob o título "Sugestão", em que o poeta mostra que não se contentava só com a impressão em jornais (sabe-se que muitos de seus escritos foram publicados em jornais):
 
"Ora, jornais! Jornais só são papéis avulsos, vivem o curto espaço de um minuto ou de um segundo e, muitas vezes, sem os lermos com os mais resplandecentes pensamentos contidos em suas colunas, os deitamos pela janela fora... Um livro sintetiza qualquer individualidade".
 
Cruz e Sousa produziu cerca de mil páginas, de que quase a metade foi em poesia.
 
Conseguiu publicar, em vida, dois livros de prosa, Tropos e Fantasias (1885) e Missal (1893). E um livro de poesias, Broquéis (1893).
 
Deixou um terceiro livro de prosa ordenado para publicação, Evocações, editado postumamente por Saturnino Meireles, em 1898.
 
Um segundo e terceiro livro de poesias foram editados de acordo, mais ou menos, com os projetos de Cruz e Sousa, Faróis (1900) e Últimos sonetos (1905).
 
Andrade Muricy resumiu em 1952 a situação de Cruz e Sousa no estrangeiro. Observem o impacto de Cruz e Sousa em outros lugares no mundo: "A primeira repercussão da sua obra no estrangeiro ficou demarcada pela conferência do poeta simbolista boliviano, naturalizado argentino, Ricardo Jaimes Freyre, realizada no Ateneu, de Buenos Aires, em 28 de agosto de 1889. Félix Pacheco foi quem pronunciou pela primeira vez um elogio acadêmico de Cruz e Sousa, no seu Discurso de Recepção, lido em 14 de agosto de 1913. O notável intelectual peruano Ventura Garcia Calderón, Ministro Plenipotenciário em Paris, e muito acatado no meio literário parisiense, declarou ser Cruz e Sousa ‘comparável a Baudelaire sem que o mundo saiba, porque escrevia em português’. Juan Más y Pi e Júlio Noé indicam Cruz e Sousa como tendo sido inspirador do maior poeta argentino, Leopoldo Lugones. O Cardeal Patriarca de Lisboa, D. Manoel Cerejeira, considera Cruz e Sousa dos fatores principais da renovação espiritualista da poesia brasileira. O professor francês Roger Bastide, por algum tempo da Universidade de São Paulo, consagrou-lhe em A Poesia Afro-Brasileira quatro largos estudos, onde o compara a Baudelaire e Mallarmé, e lhe indica no movimento simbolista universal, lugar de primeira plana. Refere-se à atitude ‘mística’ do Poeta Negro, aquilo que chama o ‘que há de mais original e talvez intraduzível em Cruz e Sousa e que lhe dá situação à parte na grande tríade harmoniosa: Mallarmé, Stefan George e Cruz e Sousa. Cruz e Sousa é dos maiores poetas do simbolismo universal e, na opinião de V. Garcia Calderón, o maior poeta sul americano’".
 
Depois de comemorado o centenário de Cruz e Sousa em 1961, eram considerados os seguintes os maiores nomes da poesia simbolista brasileira, por Manuel Bandeira, que os reuniu em uma Antologia, pela ordem cronológica:
 
Cruz e Sousa - Florianópolis (1861-1898);
Emiliano Perneta - Curitiba (1866-1821);
Mário Pederneiras - Rio (1868-1915);
Dário Veloso - Rio (1869-1937);
Azevedo Cruz - Campos, S. Paulo (1870-1905);
Silveira Neto - Morretes, Paraná (1872-1942);
Carlos Fernandes - Mamanguape, Paraíba (1875-1942);
Alphonsus de Guimaraens - Ouro Preto, Minas Gerais (1870-1921);
Marcelo Gama - Mostardas, Rio Grande do Sul (1878-1915);
Tristão da Cunha - Rio (1878-1942);
Maranhão Sobrinho - Barra da Corda, Maranhão (1879-1915);
Félix Pacheco - Teresina, Piauí (1879-1935);
José de Abre Albano - Fortaleza (1882-1923);
Castro Menezes - Niterói (1883-1920);
Da Costa e Silva - Amarante, Piauí (1885-1950);
Álvaro Moreyra - Porto Alegre (1888-1964);
Eduardo Guimaraens - Porto Alegre (1892-1928);
Rodrigo Octávio Filho - Rio (1892-1969);
Rodrigues de Abreu - Capivari, São Paulo (1897-1927).
 
        "Desapareceram totalmente e acredito que definitivamente: Oscar Rosas, Severiano de Resende, Gustavo Santiago, Adolfo Araújo, Gonçalo Jácomo, Maurício Jubim...  São tantos!" (Manuel Bandeira).


 
Sr Arcano
Enviado por Sr Arcano em 28/07/2016
Reeditado em 28/07/2016
Código do texto: T5712105
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