[...] Eu te encarcerava
Te acorrentava
Te atava ao pé do fogão
Não te dava sopa, morena
Se eu fosse teu patrão...
 
Chico Buarque
 
     No romance  O Primo Basílio, Eça de Queirós ataca a família burguesa lisboeta, de maneira implacável e reafirma o compromisso da obra literária com o seu tempo: combater os vícios, as mazelas e os desvios sociais. Ora, se a burguesia era a principal consumidora dos romances, deveria enxergar-se neles, ver seus defeitos a fim de modificar seu comportamento.
Embora o autor faça duras críticas à estrutura familiar, o seu alvo não é a família, segundo ele, “instituição eterna”, mas a família lisboeta que merecia ser combatida em suas bases falsas e podres. Em carta a Teófilo Braga, Eça explica qual é a sua função como escritor de romances:
 
[...] mas eu não ataco a família ─ ataco a família lisboeta, ─ a família lisboeta produto do namoro, reunião desagradável de egoísmos que se contradizem, e, mais tarde ou mais cedo, centro de bambochata. [...] A minha ambição seria pintar a sociedade portuguesa, tal qual a fez o Constitucionalismo desde 1830 ─ e mostrar-lhe, como num espelho, que triste país eles formam eles e elas. [...] É necessário acutilar o mundo oficial, o mundo sentimental, o mundo literário, o mundo agrícola, o mundo supersticioso ─ e com todo o respeito pelas instituições que são de origem eterna, destruir as falsas interpretações e falsas realizações que lhes dá uma sociedade pobre .
 
     Entretanto, meu objetivo, aqui,  não é analisar os aspectos éticos e sociais levantados pelo autor, mas sim, fazer uma reflexão filosófica, inspirada em Hegel, sobre a dialética do Senhor e do escravo que marca a relação entre as personagens Luísa e Juliana.
     Luísa é uma moça bela, frágil, ingênua, sonhadora, superficial e mimada. Na adolescência, apaixonara-se por  Basílio, seu primo, com quem pretendia se casar. Todavia, a família do rapaz perde toda a fortuna e ele é obrigado a viajar para o Brasil, a fim de recuperar os negócios. Após três anos de espera, Luísa recebe uma carta de Basílio, rompendo o noivado. Ela entra em um estado de tristeza profunda, tornando-se apática, o que caracteriza o luto que, segundo Freud, “é a reação à perda de um ente querido, à perda de alguma abstração que ocupou o lugar de um ente querido, como o país, a liberdade ou o ideal de alguém, e assim por diante”.
     Passado o período do luto , Luísa conhece Jorge, um engenheiro que se apaixonara por ela, no passeio público. Casam-se em pouco tempo, e vivem aparentemente felizes, numa casa confortável, de estilo burguês. A jovem senhora passava o tempo lendo romances de folhetim ou tocando piano, para evitar a monotonia, já que não tinha filhos e as atividades domésticas eram entregues aos cuidados de uma cozinheira, a Joana e de uma criada, a Juliana. Esta última é, a nosso ver, a personagem mais complexa do romance. Vive pelos cantos, tentando ouvir conversas, resmungando inconformada com a sua condição de criada, mexe nas gavetas e no lixo, à procura de algum segredo que possa comprometer a patroa, e se regozija com o sofrimento dela.
 
Nascera em Lisboa. O seu nome era Juliana Couceiro Tavira. Sua mãe fora engomadeira [...]
Um dia uma vizinha má, a quem ela não quisera ajudar a lavar a roupa, enfureceu-se, e atirando-lhe injúrias dos degraus da porta – gritou-lhe que sua mãe era uma desavergonhada, e que seu pai estava na África por ter morto o Rei de Copas! Pouco tempo depois foi servir. Sua mãe morreu daí a meses, com uma doença de útero [...].
 
Entretanto, a felicidade do casal dura pouco. Jorge viaja anegócios para a Alentejo e Basílio, recém-chegado do Brasil, vai visitar a prima. Admira-se do longo período que ela está sozinha e se oferece para fazer-lhe companhia, com o único objetivo de seduzi-la. Para impressionar a moça, fala de suas viagens pelo mundo, de amizade com príncipes, da moda em Paris, usa termos franceses, enfim, apresenta-lhe um mundo que ela só conhecia dos romances.
 
─ Que vida interessante a do primo Basílio! ─ pensava. ─ O que ele tinha visto! Se ela pudesse também fazer as suas malas, partir admirar aspectos novos e desconhecidos, a neve nos montes, cascatas reluzentes! Como desejaria visitar os países que conhecia nos romances [...].
 
     Essas visitas ficam cada vez mais frequentes e Luísa, sentindo-se solitária pela ausência do marido, deixa-se envolver pelo discurso galante do primo, tornando-se alvo de mexericos dos vizinhos e das chantagens de Juliana.
     Antes de Jorge se casar com Luísa, Juliana fora dama de companhia de uma tia dele que estava muito doente. Durante o tempo em que cuidou daquela senhora, dedicou-se com fingido esmero, desejando que a enferma, ao morrer, lhe deixasse uma boa herança, como reconhecimento pelo seu trabalho . Somente dessa forma, ela poderia abandonar definitivamente aquela vida de servidão e passaria a ser senhora.

 
[...] um conto de réis era um dote, poderia casar, teria um homem!
Estavam acabadas as canseiras. Ia jantar, enfim, o seu jantar! Mandar, enfim, a sua criada! Via-se a chamá-la, a dizer-lhe de cima para baixo: ─ Faça, vá, despeje, saia! ─ Tinha contrações no estômago, de alegria. Havia de ser boa ama. Mas que lhe andassem direitas! Desmazelos, mas respostas, não havia de sofrer a criadas!
 
     No entanto, a tia de Jorge ao morrer, deixa todos os bens para o sobrinho que já estava casado. Como forma de gratidão, ele resolve levar Juliana para ser criada de dentro de sua casa. Luísa detestava os modos da criada. “achava-a fúnebre. [...] e não podia disfarçar a sua antipatia [...]”. (Queirós, 1878, p.65). Quis demiti-la, mas Jorge não concordava e enaltecia as qualidades da criada, principalmente o zelo com que cuidara de sua tia. Por sua vez, Juliana começou também a odiá-la, da mesma forma que odiara todas as patroas anteriores. Invejava-as pelo conforto em que viviam, sobretudo, pelo fato de terem conquistado um homem, enquanto ela permanecia virgem.
 
E cada dia detestava mais Luísa. Quando pela manhã a via arrebicar-se, perfumar-se com água-de-colônia, mirar-se ao toucador cantarolando, saía do quarto porque lhe vinham venetas de ódio, tinha medo de estourar! Odiava-a pelas toilettes, pelo ar alegre, pela roupa-branca, pelo homem que ia ver, por todos os seus regalos de senhora. [Grifos do autor].
 
 
     Juliana não se conformava com a sua sorte. Revoltava-se com a injustiça social em que vivia, relegada à condição de criada, trabalhando como uma “negra escrava”, dormindo em um quarto úmido, infestado de ratos e percevejos, enquanto as patroas andavam bem vestidas, bem perfumadas, bem alimentadas e felizes com os seus homens.
     Com efeito, a revolta de Juliana contra Luísa é porque ela representava todas as patroas para quem, ao longo de vinte anos, trabalhara na simples condição de escrava. Assim, percebendo-se doente, sem recursos, desamparada e sem perspectivas de um futuro digno, rebela-se a fim de garantir, ainda que por meios ilícitos, um futuro melhor.
 
Servia, havia vinte anos. Como ela dizia, mudava de amos, mas não mudava de sorte. Vinte anos a dormir em cacifos, a levantar-se de madrugada, a comer os restos, a vestir trapos velhos, a sofrer os repelões das crianças e as más palavras das senhoras, a fazer despejos, a ir para o hospital quando vinha a doença, a esfalfar-se quando voltava a saúde! ... Era demais! Tinha agora dias em que só de ver o balde das águas sujas e o ferro de engomar se lhe embrulhava o estômago. Nunca se acostumara a servir. [O grifo é meu].
 
     Embora Juliana desse todos os motivos para que Luísa recorresse à autoridade de senhora, de patroa e a demitisse, ela permanecia suportando-lhe a presença desagradável e antipáticada criada, para não contrariar o marido.
     Ao perceber que Jorge viajara e que Luísa ficara em companhia apenas da criada e da cozinheira, Basílio passa a visitá-la assiduamente, dando início ao seu plano de sedução, já que estava em Lisboa de passagem e não levara  uma namorada consigo. Vejamos os comentários que ele faz com um amigo, a respeito da prima:
 
─ Há um marido que a veste, que a calça, que a alimenta, que a engoma, que a vela se está doente; que a atura se ela está nervosa; que tem todos os encargos; todos os tédios, todos os filhos, todos, todos os que vierem, sabes a lei... Por consequência o primo não tem mais que chegar, bater o ferrolho encontra-a asseada, fresca, apetitosa à custa do marido e...
 
     Luísa, sentindo-se solitária pela ausência do marido, deixa-se seduzir pelos encantos e galanteios do primo e comete adultério. Juliana, desconfiada daquelas visitas, passa a espreitar todos os passos da patroa, à procura de algo que possa comprometê-la. Certo dia, por um descuido de Luísa, a criada rouba as cartas que ela trocara com o amante e passa a chantageá-la, exigindo uma quantia elevada para devolvê-las à patroa. A partir de então, há uma inversão de papéis entre elas. Luísa é obrigada a desempenhar as funções domésticas e a doar suas roupas a Juliana, a qual assume o lugar da patroa, acordando tarde, saindo a passeio e exigindo, cada vez mais, luxo e conforto.
 
Pois que lhe parece? - exclamava. - Não que eu coma os restos e a senhora os bons-bocados! Depois de trabalhar todo o dia, se quero uma gota de vinho, quem mo dá? Tenho de o comprar! A senhora já foi ao meu quarto? É uma enxovia! A percevejada é tanta que que tenho de dormir quase vestida! E a senhora se sente uma mordedura, tem a negra de desaparafusar a cama, e de catar frincha por frincha. Uma criada! A criada é o animal! Trabalha se pode, se não rua, para o hospital. Mas chegou a minha vez [...] - Quem manda agora sou eu! [ grifos meus].
 
     Luísa entra em desespero com as chantagens da criada, arruma as malas e procura o amante, com o ingênuo propósito de fugirem juntos para viverem livres em Paris. Basílio, a aconselha a voltar para casa, diz-lhe que a ideia de fuga é absurda e se oferece para pagar os 300 mil réis exigidos pela criada. Luísa, ferida em seu orgulho, não aceita o dinheiro e pede a Juliana que espere um pouco mais. Mais uma vez, a criada deixa clara a inveja que sente da patroa, principalmente, porque ela, mesmo cometendo adultério, ainda é amada pelo marido.
 
“A senhora chora! Também eu tenho chorado muita lágrima! Ai! Eu não lhe quero mal, minha senhora, certamente que não! Que se divirta, que goze, que goze! O que eu quero é o meu dinheiro! O que eu quero é o meu dinheiro aqui escarrado, ou o papel há de ser falado! Ainda este tecto me rache, se eu não for mostrar as cartas ao seu homem, aos seus amigos, à vizinhança toda, que há de andar arrastada pelas ruas da amargura.”
 
     Basílio, por medo do escândalo que estava por vir com a chegada de Jorge, parte de Lisboa com destino a Paris, deixando Luísa entregue à própria sorte e às ameaças de Juliana que, aproveitando a fragilidade da patroa diante da fuga do amante e da iminente chegada do marido, dobra o valor exigido como resgate. Diante das chantagens da criada, sem vislumbrar uma forma de conseguir o dinheiro, Luísa vai ficando cada dia mais fragilizada, enquanto Juliana assume o controle sobre ela, e aumenta o nível das exigências.

E Luísa passou a vesti-la. Deu-lhe um vestido roxo de seda, um casaco de casimira preta, com bordados a soutache. E receando que Jorge estranhasse as generosidades, transformava-as para as não reconhecer; mandou tingir de castanho o vestido; ela mesma por sua mão pôs uma guarnição de veludo no casaco. Trabalhava para ela agora! – Como acabaria tudo aquilo, Santo Deus?

   Observamos no trecho abaixo que, pelo discurso arrogante e ressentido da criada, ela estava segura do que pretendia e sabia que estava numa situação favorável, por isso, não se incomodava por ter sido chamada de ladra.


─ A senhora diz bem, sou uma ladra, é verdade; apanhei a carta no cisco, tirei as outras do gavetão. É verdade! E foi para isto, para mas pagarem! [...] Tenho sofrido muito, estou farta! Vá buscar o dinheiro onde quiser. Nem cinco réis de menos! Tenho passado anos e anos a ralar-me! Para ganhar meia moeda por mês, estafo-me a trabalhar, de madrugada até à noite, enquanto a senhora está de pânria! É que eu levanto-me às seis horas da manhã ─ e logo engraxar, varrer, arrumar, labutar, e a senhora está muito regalada em vale de lençóis, sem cuidados, nem canseiras. Há um mês que me ergo com o dia, pra meter em goma, passar, engomar! A senhora suja, suja, quer ir ver quem lhe parece, aparecer-lhe com tafularias por baixo, e cá está a negra, com a pontada no coração, a matar-se com o ferro na mão! E a senhora são passeios, tipóias, boas sedas, tudo o que lhe apetece ─ e a negra? A negra a esfalfar-se! [Os grifos são meus].
 
 
     Aos poucos, Luísa ia perdendo a liberdade dentro da própria casa. Tornara-se submissa à criada que passara a lhe fazer cada vez mais exigências e a lhe dar ordens. Começou por exigir o “quarto dos baús”, alegando que o seu era insalubre. Depois, passou a pedir os vestidos novos de Luísa, bem como os adornos com os quais saía para passear ou ir ao teatro, em pleno horário de trabalho. Essa atitude da criada pode ser vista como o desejo do desejo do outro que remete à dialética do senhor e do escravo a qual, segundo Hegel, “suprime o Outro, pois não vê o Outro como essência, mas é a si mesma que vê no Outro” . Juliana, por invejar Luísa, estabelece com esta uma relação especular, em que Luísa, como outro, é o que ela gostaria de ser e de ter. É, pois, o seu eu ideal. Juliana encarna, portanto, o supereu de Luísa, ou seja, a voz que brada: ─ Tu és culpada! Tu és culpada! O sentimento de culpa, como todo afeto, é consciente. Entretanto, o desejo de punição é inconsciente. Luísa se submete à criada, argumentando para si mesma que faz isso com medo de que seu “pecado” seja revelado. Juliana, por sua vez, aproveita a insegurança e a fragilidade da patroa para ditar as suas ordens.
     Como se todas as chantagens não bastassem, a criada ainda comentava sobre esses passeios com a patroa, que para não sobrecarregar Joana e evitar comentários dela, começou a lavar, passar, varrer, arrumar enfim, a fazer todas as tarefas atribuídas a Juliana. Além disso, Luísa passou também a agradar a cozinheira, dando-lhe presentes e permitindo que ela saísse no horário de trabalho.
     Como não suportasse mais viver sob o jugo da criada, Luísa deixa o orgulho de lado e escreve uma carta ao amante, solicitando o dinheiro, mas não obtém resposta. Resolve, então, desabafar com a amiga de infância, Leopoldina, a qual sugeriu que ela se entregasse ao Castro, um homem muito rico, em troca do dinheiro. No entanto, ela se sente humilhada por ter chegado a tal ponto e chicoteia o homem ao invés de entregar-se sexualmente a ele.
     Finalmente, Jorge retorna e Luísa fica desesperada, com medo de ser desmascarada e perder o marido. Resolve, portanto, contar tudo a Sebastião, que, com a ajuda de um policial, consegue reaver as cartas que estavam com a criada. Juliana fica assustada com a presença da polícia, tem um ataque e morre. Luísa sente-se aliviada. Afinal, com a viagem de Basílio e a morte de Juliana, a paz estava de volta ao seu lar.
Entretanto, o destino quis que fosse diferente. Jorge intercepta e lê uma correspondência de Basílio, na qual ele promete enviar o dinheiro que comprará o silêncio da criada. Jorge fica transtornado e exige explicações da mulher que não resiste ao desespero e morre.
     No desfecho do romance, Basílio regressa de Paris e, ao saber da morte de Luísa, age com ironia e indiferença, lamentando-se por não ter trazido a amante francesa. ─ “Que ferro! Podia ter trazido a Alphonsine!”
     Por fim,   conforme afirmei no início deste trabalho, minha intenção foi lançar sobre o romance O Primo Basílio uma visão filosófica que nos permitisse enxergar a relação conflituosa entre Luísa e Juliana, como uma relação normal para os padrões de um mundo capitalista em que o homem não enxerga no outro o seu semelhante, visto que o poder ou a falta dele os separa em duas classes: a que domina ─ representada pelo senhor─ e a que é dominada ─ representada pelo escravo. Luísa e Juliana são apresentadas ao leitor numa relação de conflito em que ambas conhecem a posição que ocupam dentro da sociedade lisboeta e o que esta sociedade espera delas, de acordo com os padrões vigentes do século XIX. O conflito se instaura porque Luísa detesta a criada, acha-a antipática e só a atura para não desagradar o marido. Juliana, por sua vez, além de invejar a beleza, o luxo e a juventude da patroa, não se conforma por não ter sido reconhecida no testamento da tia de Jorge, no qual depositara todas as esperanças de abandonar definitivamente aquela vida de trabalho servil a que vinha se dedicando há vinte anos. Enquanto isso, Jorge ficara com todo o dinheiro para proporcionar mais conforto a Luísa. Além disso, Juliana não se conformava com o fato de Luísa ser casada e receber todos os mimos e atenções do marido, enquanto ela continuava virgem, seca e amarga, sem jamais ter conhecido os carinhos de um homem.
     Embora antes da viagem de Jorge, houvesse uma antipatia recíproca, havia certo equilíbrio na convivência entre elas, porque cada uma desempenhava normalmente o papel que lhe cabia naquela estrutura social. Luísa (a senhora) dava as ordens e Juliana (a escrava) executava-as, mesmo contrariada; talvez, porque temesse a presença do senhor que ela reconhecia como o verdadeiro patrão. No entanto, quando ele parte para o Alentejo, a criada não consegue admitir as ordens da patroa e deseja encontrar algum deslize no comportamento dela que possa lhe trazer algum benefício, como por exemplo, a sua independência financeira.
     Essa harmonia existente entre as duas é interrompida com a chegada do primo Basílio, jovem rico, bonito e sedutor, que despertará em Juliana não somente a revolta pela sua condição de escrava, mas a inveja por ver naquele homem mais um varão que se sentirá atraído pela beleza e juventude de Luísa. Passa, portanto, a espionar os encontros dos dois, sempre com a certeza de que, mais cedo ou mais tarde, a patroa se deixará seduzir e cometerá o adultério no qual ela, a criada, se apoiará para conseguir sua liberdade.      Luísa, cega pela paixão, não se dá conta das intenções de Juliana e se deixa cair nas armadilhas dela, perdendo toda a sua autoridade diante da  ceida e deixando que os papéis se invertam, ou seja, Juliana assume a posição de senhora e passa a dominar a situação, exigindo que Luísa se submeta às suas ordens, tornando-se sua escrava.
     De acordo com o que vimos em Hegel, o final do romance deveria ter proporcionado às personagens a oportunidade de reconhecer a força de cada uma dentro da dialética da senhora e da escrava, garantindo-lhes a superação e a preservação do estado anterior da consciência. Visto que ambas, com a experiência adquirida pela inversão dos papéis deveriam ter aprendido, pelo reconhecimento das consciências de si, que ambas dependiam uma da outra.
    Entretanto, Eça de Queirós se afasta do modelo hegeliano, ao introduzir no conflito entre suas personagens a figura de Sebastião. Afinal, Juliana só devolveu as cartas porque fora coagida. A prova disso é que ela, dominada pela raiva, morre vítima de um aneurisma. Luísa, por sua vez, não é capaz de recuperar sozinha o seu lugar de senhora, mediante o reconhecimento da consciência-de-si. Ela recorreu à ajuda de Sebastião. Mesmo com a morte da criada, ela também não recupera o seu lugar de esposa, pois Jorge fica sabendo do adultério. Diante da vergonha e do medo, tem uma febre nervosa e morre. Assim, dentro da perspectiva de Hegel, o final do romance não permite às personagens nenhuma mudança, seja no plano das relações familiares, seja no das diferenças socioeconômicas, já que o conflito vivido por elas, nessa “dialética do senhor e do escravo”, não lhes proporcionou aprendizagem.
     Diante desse final trágico, podemos concluir  que, para Eça de Queirós, era inviável uma transformação no quadro social, político e econômico do século XIX ─ dominado pelo materialismo ─, nos moldes de Hegel, ou seja, com base na ação intersubjetiva entre dois atores, o senhor e o escravo.
 
 
 
REFERÊNCIAS
 
HOLLANDA, Chico Buarque de. Ópera do Malandro. São Paulo: Círculo do Livro S.A, 1978.
FREUD, Sigmund. Luto e Melancolia In: Edição eletrônica das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. vol. XIV Rio de Janeiro: Imago, 2000.
HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Fenomenologia do Espírito. Tradução de Paulo Menezes. Rio de Janeiro: Editora Vozes, 1992.
KOJÉVE, Alexandre. Introdução à leitura de Hegel. Tradução Estela dos Santos Abreu. Rio de Janeiro: Contraponto: EDUERJ, 2002.
LACAN, Jacques. O Estádio do espelho como formador da função do eu. In Escritos. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998.
QUEIRÓS, Eça de. O Primo Basílio. 14ª ed São Paulo: Ática , 1993.
_____. Correspondência. Correspondência. Porto: Lello.

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Lídia Bantim
Enviado por Lídia Bantim em 28/02/2018
Reeditado em 01/03/2018
Código do texto: T6267284
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