A REPRESENTAÇÃO DOS GÊNEROS EM JOÃO CABRAL DE MELO NETO

RESUMO

João Cabral de Melo Neto é conhecido como o poeta antilírico e antissentimental por excelência, devido a sua produção poética racional preocupada com o papel da palavra e a construção obsessiva da estrutura do poema, o que lhe rendeu a alcunha de poeta-engenheiro. Grande parte da crítica se debruça aos estudos dos aspectos metalinguísticos e intertextuais na obra cabralina, deixando outros pontos relevantes de lado. Este artigo visa observar como o poeta retrata o masculino e o feminino em sua obra. Procura-se verificar as metáforas que João Cabral utiliza para a representação dos gêneros. Tomaremos por base, textos de Lauro Escorel e Marta Peixoto, dentre outros, observando como os críticos analisam tal representação na obra do poeta pernambucano.

Palavras-chave: João Cabral de Melo Neto, Feminino, Gênero, Erotismo, Poesia antilírica.

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Luiz Costa Lima, Benedito Nunes, Antonio Carlos Secchin e Vitorino Nemésio são alguns dos críticos que dedicaram estudos sobre a poesia de João Cabral de Melo Neto, discutindo em seus textos, os aspectos metalinguísticos, intertextuais e sociais na obra do poeta Pernambucano.

É inegável que o nome de João Cabral ocupa lugar importante na nossa literatura, dividindo espaço com outros nomes também importantes, como Manuel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade. Seus versos caracterizam uma nova perspectiva na lírica brasileira: a da poesia racional, construída e arquitetada a partir de metáforas, de figuras de linguagem e da estrutura sólida de versos metrificados - em grande parte em quadras – além do recurso do enjambement, termo francês para um processo poético que consiste no desalinhamento da estrutura métrica e sintática de uma composição, outra recorrência na poética cabralina. Somando a isso, as temáticas na obra do poeta também são de particularidade singular.

João Cabral iniciou na poesia com o livro A pedra do sono em 1942, livro com forte influência cubista onde o poeta oscila entre a técnica imagística do surrealismo e o intelectualismo de Mallarmé.

Dentre os temas principais desta obra inicial, está a descrição do onírico, revelando o interesse de Cabral pelos estados fronteiriços entre o sono e a vigília. Entretanto, a influência das vanguardas europeias foi abandonada logo na obra de estreia e, depois de uma publicação onde glosa o poema “Quadrilha” de Carlos Drummond de Andrade (Os três mal-amados, de 1943), João Cabral encontra enfim sua verve poética na publicação de seu terceiro livro, O Engenheiro, de 1945, obra que solidifica seu estilo de poesia produzida “mais por transpiração do que por inspiração”, a partir da labuta e esmero demasiado, quase que obsessivo, com o qual o autor se lança à construção de seus versos, na busca da palavra objetiva e exata que se iguala a aridez do solo nordestino, o que lhe rendeu a alcunha de poeta-engenheiro e arquiteto das palavras que compunha uma poesia antilírica e anticonfessional, onde não há espaço para a representação do eu, tão característica no gênero lírico.

Cabral opta por representar em sua poesia, o fazer poético através da metapoesia, fazendo uso de imagens metafóricas, como a pedra e a faca. Mas outros temas são recorrentes e importantes para pensarmos a poética cabralina. Dentre eles, a representação de Pernambuco, sua terra natal, e de Sevilha, cidade espanhola que o poeta tanto admirava. Além da poesia social e da já mencionada metapoesia.

Tais temas são recorrentes na fortuna crítica do poeta, sendo fontes de estudos que visam demonstrar a grandiosidade e particularidade da lírica (ou antilírica) de João Cabral de Melo Neto. Todavia, alguns aspectos importantes de sua obra carecem de estudos mais aprofundados: O humor, o erotismo e a representação dos gêneros, são alguns exemplos destes aspectos pouco explorados pelos críticos.

Sendo assim, este artigo visa apresentar como o poeta representa os gêneros masculino e feminino em sua arte poética. Para tanto, utilizaremos alguns textos críticos que discutem tal tema, tendo como corpus dois textos elementares: o primeiro, de Marta Peixoto intitulado ‘Um pomar às avessas’ – Gênero e Figuração da escrita em João Cabral, publicado em 2000, onde a autora discute como o poeta representa os gêneros em sua obra a partir das imagens metafóricas das quais utiliza, e o segundo, do crítico Lauro Escorel, A pedra e o rio – Uma interpretação de João Cabral de Melo Neto, publicado em 2001. Neste, o que nos interessa é o capítulo sete, onde o autor discute como se dá a representação da mulher na poesia cabralina.

Vale ressaltar que a representação do gênero feminino é uma temática que já possui alguns estudos de relevância, dos quais buscaremos suporte para entender o lirismo próprio de João Cabral, com o intuito de ver em que medida o autor reformula os conceitos cristalizados desde o romantismo a respeito de tal representação.

Já se tratando da representação do gênero masculino, o mesmo ainda carece de aprofundamento, tendo sido o texto da Marta Peixoto o único encontrado para as reflexões que buscamos atingir como objetivo deste artigo.

AS TEMÁTICAS DO UNIVERSO POÉTICO DE JOÃO CABRAL

João Cabral de Melo Neto despreza o lirismo tradicional, seu subjetivismo e exagero metafórico ao conceber uma poesia arquitetada, criada a partir da labuta - do escrever e reescrever - e não de insights, inspirações ou, de como diria Ferreira Gullar, do espanto.

A busca pela palavra ideal é obsessiva. Uma vez escrita, ela é retomada, em novas sugestões, até a exaustão em imagens metafóricas, só se encerrando com o “click da caixinha” que segundo Cabral, é o sinal de que o poema está pronto. Seu universo poético tem como temáticas básicas: o nordeste, nas figuras dos retirantes, das tradições, do folclore, dos engenhos e de Pernambuco, sua terra natal; a Espanha, nas paisagens, nas pessoas, nos costumes e, principalmente, na cidade de Sevilha; e por fim a arte, representada nos poemas em homenagem a outros poetas, pintores, escultores e, principalmente, à própria poesia, em seus metapoemas.

A poesia de Cabral resulta da intensa reflexão e elaboração, representando a instauração, na lírica brasileira, de uma poesia construtiva, racionalista e objetiva, que se opõe a família da poesia expressiva, subjetiva e irracional.

Mesmo tendo essa característica de um poeta racionalista, Cabral não deixa de apresentar em sua poética uma lírica que retrate a figura feminina que, juntamente a representação do eu lírico, é um dos eixos centrais do fazer poético. Todavia, a lírica cabralina se manifesta de maneira muito particular, que nada se aproxima da tradicional lírica que presta tributo à herança de representação feminina deixada por Petrarca que perdura na lírica desde sempre. Este é um dos pontos que pretendemos demonstrar neste artigo: aprofundar o exame da figura da mulher em suas múltiplas e complexas manifestações, buscando demonstrar o processo cabralino de construção da imagem feminina que por sua vez, sugere um metaforização entre diferentes representações de imagens, seja na arquitetura, na escultura, na pintura, na dança e na música, como veremos a seguir.

O GENDER NA REPRESENTAÇÃO CABRALINA

Marta Peixoto, no texto ‘Um pomar às avessas’ – Gênero e figuração da escrita em João Cabral (2000), discute a questão da representação do gênero na obra do poeta pernambucano. A autora confessa, logo no início do ensaio, perceber o gradativo aumento dos estudos em torno do gênero:

Com a crítica feminista norte-americana e europeia, o gender ou o gênero sexual –i. é, as construções culturais e simbólicas que tomam por base as diferenças biológicas dos sexos – passou a funcionar como categoria analítica e a ser reconhecido como importante fator na produção, circulação e recepção do discurso literário. [...] Depois de uma fase inicial em que o interesse desta corrente crítica se voltou quase exclusivamente para o feminino – suas representações, produção cultural de mulheres, debates sobre a écriture féminine -, sobreviveram novas linhas de investigação nas últimas duas décadas, a partir do reconhecimento de que a escrita masculina também se encontra marcada pelo gênero e que estudá-la deste ponto de vista pode ser proveitoso. (PEIXOTO, 2000, p.229)

Ou seja, para a crítica, os estudos em torno da representação do gênero, tanto feminino quanto masculino, apresenta um campo interessante na interpretação dos discursos literários, esteja ele inserido na prosa ou na poesia. A partir da apresentação dessa importância do estudo dos gêneros, Marta afirma que pretende indagar a função desempenhada pelos valores tradicionalmente designados como masculino e feminino na poética cabralina, fazendo isso através da representação das imagens da sexualidade masculina na poética de João Cabral que se dá, como a própria autora afirma, por intermédio de imagens como facas, pedras, balas enterradas no corpo ou na figura de toureiros, como no poema “Alguns toureiros”, da obra Paisagens com Figuras (1955):

[...]

sim, eu vi Manuel Rodrígues,

Manolete, o mais asceta,

não só cultivar sua flor

mas demonstrar aos poetas:

como domar a explosão

com mão serena e contida,

sem deixar que se derrame

a flor que traz escondida,

e como, então, trabalhá-la

com mão certa, pouca e extrema:

sem perfumar sua flor,

sem poetizar seu poema.

(METO NETO, 1997, p. 131)

Segundo Marta Peixoto, o poema apresenta modelos másculos da arte de tourear que representam, de forma figurativa, o próprio ofício poético, nos diversos tipos de poesia, que em Cabral se configura como arte viril, nos moldes cabralinos, de uma produção racional:

A arte de tourear é comparada ao ofício poético que se apresenta como arte viril: são precisas uma coragem e uma habilidade extremas para dominar a explosão, para evitar os excessos e descontroles que o revento lírico pode desencadear, só assim é possível atingir a medida justa, nem perfumada nem poetizada. (PEIXOTO, 2000, p.230)

No trecho destacado, percebe-se que Cabral trata a poesia (e aqui ele destaca a sua poesia) como uma arte propriamente de força masculina. Não que seja restrita aos homens, como veremos mais adiante, mas no sentido de que é preciso virilidade para que a mesma não se desgoverne nos excessos da lírica romântica, representada no poema na imagem da flor, elemento feminino que o autor controla. O mesmo ocorre, segundo Marta, no poema “A palo seco”, onde o cante a palo seco, canto flamenco sem o acompanhamento instrumental (se assemelhando com o que é conhecido por aqui como canto à capela), é revestido de atributos viris, por representar uma voz que corta sozinha o silêncio, como se fosse uma lâmina, rompendo-o numa imagem quase que erotizada. Em ambos os casos, o toureiro e o cante a palo seco, são imagens de conotação masculina que representam a poesia que Cabral tem como ideal.

Como já foi mencionado, apensar de enxergar o ofício poético como uma força de virilidade masculina, Cabral não restringe a arte de escrever somente aos homens. Isso fica claro quando na antologia Poesia Crítica, de 1982, o poeta tece elogios às representantes femininas, tanto do fazer poético quando do mundo das artes, onde percebe “a arte praticada por estas mulheres – todas elas vistas como exemplares – se situar numa continuidade absoluta com a dos criadores masculinos.” (PEIXOTO, 2000, p.233). Ou seja, Cabral reconhece a grandeza de figuras como Marianne Moore e Sophia de Mello Breyner Andresen, na poesia e Mary Vieira e Vera Mindlin nas artes plásticas. Todavia, tal grandeza está relacionada à uma força masculina. Sendo assim, o poeta, por um lado, coloca tais mulheres em plano de igualdade com os homens e, ao mesmo tempo, distingue-as de qualquer feminino cultural ou biológico que venha diminuir ou mesmo menosprezar seu trabalho no campo artístico. Para ele a poesia tem um impacto masculino, mas a mulher “também a pode praticar.” (PEIXOTO, 2000, p.234)”.

Cabe aqui registrar que no poema “Elogio da usina e de Sophia de Mello Breyner Andresen”, Cabral compara a poetisa à imagem da usina, numa metaforização que iguala sua força poética com a de produção das máquinas. A imagem da usina, por outro lado, é um elogio à modernidade, ao avanço. Percebe-se, então, que a escolha da imagem para representar a verve da poetisa portuguesa faz alusão à ideia da mulher como figuração do progresso, sendo a presença feminina, o elemento que possibilita a modernidade, a evolução. Sendo assim, é impossível relacionar João Cabral com qualquer imagem machista que seja.

No poema “Estudos para uma bailadora andaluza”, Marta Peixoto também destaca o cruzamento das fronteiras entre os sexos, permitindo às mulheres a prática da arte marcada pelo masculino. O desprezo de Cabral pelo feminino cultural se dá desde a escolha do termo “bailadora” ao invés de “bailarina”, que habita no ideal feminino tradicional. Além disso, Cabral opta por comparar no poema os movimentos e as características da bailadora ao de um rude e robusto camponês e não a de uma doce e feminina camponesa. Estas são outras provas de que a força masculina é o que rege a representação feminina na poesia cabralina, contrariando o molde clássico que pende para o feminino cultural. Aqui a bailadora tem vitalidade masculina, e a progressão de sua dança é marcada por uma virilidade que se encerra na imagem da espiga, uma imagem fálica utilizada para representar uma manifestação artística feminina.

Segundo Marta Peixoto, é possível associar e remeter tal representação a uma interpretação psicanalítica, recorrendo à imaginária mulher fálica freudiana:

[...] uma fêmea possuidora do órgão genital masculino ou dos seus símbolos. Em Cabral a referencia é não só aplicável à bailadora andaluza, cujo corpo assume por inteiro o aspecto de um falo, mas também a algumas mulheres acima citadas, cujos textos ou realizações plásticas são descritos através de imagens de igual teor. (PEIXOTO, 2000, p.235)

Percebe-se assim, que a manifestação artística feminina, encontra-se sempre comprometida e imbricada com o masculino cultural. Já o feminino cultural e a reprodução biológica surgem muitas vezes ligados a criatividade descontrolada, ao lirismo desmedido que não possui a racionalidade e lucidez que são os ideais da poética racional cabralina. Sendo assim, há uma conexão, segundo Marta Peixoto, de causa e efeito entre a poesia construída e a imagem do poeta como ser masculino, mesmo se tratando de uma poetisa. Para Marta Peixoto:

As imagens de poder masculino incluídas no seu projeto poético estariam encarregadas de afirmar uma obra não coprometida com um subjetivismo exacerbado e “fraco”, para não dizer feminino, e, pelo contrário, de um instrumentalismo eficaz, que em certos momentos ambiciona não só dar a ver como também a combater condições injustas no mundo social. (PEIXOTO, 2000, p.237)

O trecho destacado confirma que Cabral filia sua poesia à instância de poder masculina de simbolização cultural, combatendo a poesia subjetiva, tida como inspirada e feminina. Sendo assim, fica visível a assimilação da potência sexual masculina à eficácia poética na obra de Cabral.

Como um último exemplo, Marta Peixoto cita o poema “tecendo a manhã”, onde fica evidente, quando o poeta invoca o galo no desempenho da função que lhe é exclusiva enquanto macho de sua espécie de anunciar, com seu canto (e aqui, mais uma vez o canto como metaforização de força masculina) o nascer de um novo dia.

Para finalizar, a autora afirma que seu propósito com o ensaio não é de reivindicar um Cabral feminista, mas sim, de observar certas configurações em sua poética, interpretando-as de forma a fazer realçar na obra certos aspectos menos óbvios e já trabalhados a exaustão pela fortuna crítica do poeta. Para a autora, o exemplo das artistas com acesso a poéticas fortes e masculinizadas se, por um lado, pode ser interpretado como excludente de valores culturais femininos, também pode por outro ser visto como crítica a uma hierarquia que prende as mulheres a determinado tipo de características, saberes e fazeres limitativos e impeditivos de outras opções. Para combater isso, Marta Peixoto afirma que uma leitura mais dedicada poderá até sublinhar aspectos desta figuração de escrita surpreendentemente afins dos projetos do feminismo e do estudo dos gêneros, projetos empenhados em estudar a produção discursiva de relações de poder definidas pelo gênero sexual e, em ultima analise, apostados em desfazer tais hierarquias. Para todos os fins, a autora finaliza pontuando e deixando bem claro que, apesar de se apegar a uma força masculina na sua poética, não podemos, como já dito, afirmar que João Cabral prega a exclusão feminina em sua poesia:

A figuração da escrita em Cabral, em que tantas vezes se inscreve o acesso a um poder masculino, não impõe, em suma, uma leitura também masculinizante, pois na especificidade da sua execução, delineia um contexto em que outras lutas – mesmo e paradoxalmente a feminista – se podem inserir. (PEIXOTO, 2000, p.239)

A REPRESENTAÇÃO DA MULHER EM JOÃO CABRAL

Em A pedra e o rio – Uma interpretação de João Cabral de Melo Neto (2001), expecificamente no capítulo sete, Lauro Escorel reflete a forma como João Cabral representa o feminino em sua obra poética.

A busca pela produção poética objetiva, que procura atingir a inteligência e não o sentimento parece ser a tônica da obra do poeta. Em seus poemas, nos deparamos com um eu lírico que não se envolve sentimentalmente com a situação que apresenta, seja em um poema no qual descreve uma paisagem, seja no poema em que descreve uma figura ou manifestação de arte. E é exatamente essa particularidade da falta de envolvimento que caracteriza a representação da mulher em João Cabral. Segundo Lauro Escorel, sendo “descarnada e anti-sensual, tomando como paradigmas estéticos o deserto, o sol e a pedra, a poesia de Cabral de Melo teria de tratar, por uma questão de coerência lógica, o tema feminino de modo ascético e antierótico.” (ESCOREL, 2001, p.87).

Escorel é um dos primeiros críticos a dedicar um capítulo especial à mulher na poesia cabralina, com uma peculiaridade: propõe a interpretação dos poemas a partir da psicologia junguiana:

É verdade que, no seu primeiro livro, Eras surge como força perturbadora de um espírito adolescente às voltas com suas primeiras angústias, vagos pressentimentos mórbidos e terrores noturnos, que levam o poeta a saudar a manhã nascente como um riso de fada [...] o conflito entre as solicitações sexuais e as inquietações espirituais da adolescência, idade em que, segundo Jung, ocorre, com o desenvolvimento da consciência, a separação da mãe, de ambos os pais, do inconsciente e do mundo instintivo. (ESCOREL, 2001, p.87)

Entretanto, seu estudo se limita aos poemas de Pedra do sono (1942) e A educação pela pedra (1966). Ainda sobre a obra de estreia em sua interpretação psicológica, Escorel afirma que

Todos os poemas de Pedra do sono traduzem essa luta de uma consciência, que começa a emergir da primitiva identidade com a mãe, com a componente feminina da psique do homem, mais particularmente da anima, expressão do inconsciente, na qual se originam os sentimentos nebulosos, os pressentimentos misteriosos e as intuições reveladoras, como também as angústias indefinidas, as depressões inexplicáveis, os temores da doença e da morte, estados psíquicos pré-neuróticos que podem ordenar o individuo ao monólogo, e lhe tornar impossível viver com espontaneidade os próprios sentimentos e emoções de sua natureza instintiva. (ESCOREL, 2001, p.88)

Sendo assim, as mulheres em Pedra do sono são imagens latentes que surgem de forma difusa, em planos nebulosos e escuros ou em retratos. Elementos provenientes do estado de sono que o poeta transfigura de seus “sentimentos nebulosos” para o plano consciente, em uma escrita marcada pelo surrealismo que era a verve do poeta em suas primeiras manifestações poéticas.

Já no segundo livro, Os três mal-amados (1943), João Cabral parece questionar a figura feminina de Pedra do sono. O poeta reapresenta o poema “Quadrilha” de Carlos Drummond a partir dos três homens – João, Raimundo e Joaquim – e a relação de cada um deles com suas respectivas amadas: Teresa, Maria e Lili. A primeira imagem, Teresa, não é tratada de forma lúcida e objetiva. É uma mulher “um vulto em outro continente”. Esta primeira imagem feminina apresentada e, em todo o texto, revista pelo poeta, parece ser tudo o que ele não deseja apresentar em seus poemas. Já Maria, a segunda mulher, parece sim ser o ideal que o poeta busca para representação feminina. Maria é “mulher-praia”, “sem mistério e sem profundeza”. Ela é representada em figuras características da poética cabralina, como elementos naturais e objetos, sendo o exemplo de claridade e lucidez que Cabral busca em sua poesia para confrontar o lirismo noturno da tradição poética. Escorel diferencia as duas representações:

Maria parece ser, no seu tríplice aspecto de água, madeira e terra, um símbolo da mãe que o poeta “perdeu” ao entrar na puberdade, e à qual anseja obscuramente retornar. Teresa, de outro lado, parece revelar uma lembrança erótica de uma mulher determinada, experiência vivida mais em sonho do que em realidade. (ESCOREL, 2001, p.88-89)

Já Lili, a terceira mulher é o amor de Joaquim, esgotando-o por completo. Isso fica claro em suas descrições sobre o amor, que dele, devora tudo. É a representação do amor e da mulher idealizada pelos poetas românticos, aquela que tormenta a subjetividade do vassalo que sofre por um amor que não se concretizará. É justamente a figura feminina que Cabral tenta combater.

Segundo Lauro Escorel, a representação feminina desaparece completamente da poesia cabralina a partir de O engenheiro, que passa a desenvolver-se “em torno de uma temática obsessivamente geometrizante e mineral.” (ESCOREL, 2001, p.89).

Tal enfoque negativo da mulher se mantém em Psicologia da composição. Obra em que o poeta parece combater com veemência a representação romântica da mulher:

[...] os três poemas daquele livro constituem uma verdadeira diatribe contra o lirismo noturno e, em consequência, indiretamente, contra tudo o que a mulher representa de sonho, de sensualidade erótica, de criação amorosa, de fecundidade e de comunhão afetiva. O sol substitui a lua – que jamais tornará a ser mencionada na obra cabralina – e o deserto passa a ser cultivado “como um pomar às avessas”. (ESCOREL, 2001, p.89)

Será somente no livro Quaderna que a mulher ressurge como tema poético. A leitura de Escorel, apesar de se restringir a parte da obra do poeta nordestino, aponta questões importantes para a investigação da temática feminina. A outra questão que poderia ser proposta a partir do estudo de Escorel (2001), é a da ausência do erotismo na poesia cabralina. Segundo o autor:

O que Cabral de Melo realmente consegue evitar, fiel à sua atitude ascética, é a complacência sensual na descrição da mulher; o que ele procura conter é a livre expansão da força erótica da natureza masculina, que conduz tantos outros poetas ao sensualismo, quando não a um franco erotismo exibicionista. Não que o poeta pernambucano seja sensível à atração de Eros: a tensão de seus poemas, inspirados na mulher acusam, ao contrário, uma forte sensualidade contida e transmutada em beleza poética. O que ocorre é que Cabral de Melo focaliza a mulher mais em termos de espaço do que de tempo. (ESCOREL, 2001, p.90-91)

Cabral de Melo representa a mulher como um objeto do qual se mantêm desligado; descrevendo-a, de forma indireta, vendo na mulher mais um refúgio (novamente a influência junguiana na interpretação de Escorel) do que um objeto de deleite erótico.

Finalizando seu texto, Lauro Escorel chama a atenção para o poema “Jogos frutais” que segundo o crítico, é uma exceção no conjunto da obra poética de Cabral no que se refere à representação erótica da mulher.

Obedecendo ao mesmo processo da oposição entre o que a imagem oferece externa e internamente, o poema explora a sensorialidade da textura, da luminosidade, da forma e do gosto da “fruta-mulher”:

De fruta é tua textura

e assim concreta;

textura densa que a luz

não atravessa.

Sem transparência:

não de água clara, porém

de mel, intensa.

Intensa é tua textura

porém não cega;

sim de coisa que tem luz

própria, interna.

E tens idêntica

carnação de mel De cana

e luz morena.

“Jogos frutais” (MELO NETO, 1997b, p. 248) é de longe o poema mais erótico de toda a poesia cabralina. O poema surpreende pela sua forte sensualidade. Segundo Escorel:

É certamente o poema mais erótico da obra cabralina, ainda que seu erotismo seja, como sempre, expresso de forma oblíqua: o poeta não se deleita propriamente na fruição direta do corpo feminino; mas descreve lascivamente as qualidades de cada fruta pernambucana que podem sugerir a voluptuosidade da carnação da mulher. (ESCOREL, 2001, p.99)

Segundo o crítico, em “Jogos frutais” João Cabral, parece haver, por um momento, baixado a sua guarda, “permitindo que a sensualidade tropical fluísse em liberdade na sua, de ordinário, ascética natureza.” (ESCOREL, 2001, p.99).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

De acordo com os estudos apresentados, percebemos que a representação dos gêneros na poética de João Cabral se dá de duas maneiras: o masculino é representado em imagens fálicas, que de uma maneira ou outra, caracterizam a virilidade da escrita racional, da poesia cerebral e arquitetada, seja na representação da faca, da bala, do canto, do toureiro, do galo, etc. É a força masculina que rege a potencialidade da poética idealizada por Cabral.

Já o gênero feminino é representado de maneira contrária à tradição lírica ocidental herdada pela poesia petrarquiana, aquela que produz as imagens da mulher casta e romântica, dotada de belezas físicas e idealizada como amada, esposa e mãe ou exaltada por seus atrativos sexuais.

Luiz Costa Lima em A traição consequente ou a poesia de Cabral (1968) caracteriza o antilirismo amoroso cabralino como traição às tradições da lírica brasileira, sobretudo ao já mencionado modelo petrarquiano.

Nesse sentido, o antipetrarquismo de Cabral, observado pelo crítico, vincula-se à rejeição do poeta nordestino a qualquer tipo de ilusionismo poético que o distanciaria da presença concreta do objeto que visa representar. Sendo assim, a mulher na poesia de João Cabral é objeto concreto, é clara, luminosa, cristalina, opondo-se ao subjetivismo noturno dos românticos. Segundo Costa Lima, não há em Cabral a sacralização poética da mulher. Ela é vista na sua naturalidade, como são vistas as facas, as balas, as cabras, e as canas. E mesmo quando o poeta apresenta a imagem volúvel da água, mediante a qual há um desdobramento da imagem feminina, revelando seus horizontes internos, a mulher permanece objeto.

Também não se encontra na obra de João Cabral, a mulher desvelada pela sensualidade pura e vulgar. Não se encontra palavras eróticas ou pornográficas e nem representação ou mesmo citação de áreas erógenas do corpo feminino. A mulher é desvelada pela construção imagética, a nudez revela-se e esconde-se por meio das imagens concretas com as quais o poeta produz o símile.

João Alexandre Barbosa, afirma em A imitação da forma: uma leitura de João Cabral de Melo Neto (1975), que a mulher entra no texto cabralino pela linguagem “seja da dança, seja da arquitetura, seja das águas do ‘Rio e/ou poço’, seja da própria palavra, seja das frutas do nordeste.” (BARBOSA, 1975, p.163).

As referências à mulher são feitas por meio de elementos naturais que remetem a sensações. A mulher é água, fogo, animal, fruta, casa, vegetal, mineral, gaiola, palavras, enfim, a mulher é identificada por elementos naturais concretos e através destes elementos Cabral poetiza a imagem feminina. Sendo assim, o feminino é representado como a mulher que é onda (em “Imitação da água”); ou como a mulher que é fruta (em “Jogos frutais”). A mulher na poética cabralina é sempre apresentada como modelo de virilidade. O único poema em que se percebe a figura feminina relacionada a fragilidade é no poema “A mulher e a gaiola”.

Concluindo, João Cabral representa a mulher de sua maneira antilírica e antipetrarquiana, a partir de metáforas e da representação por elementos naturais ou não. Sua representação feminina não paga tributos ao modelo clássico, como afirma o próprio Cabral em entrevista a Antonio Secchin (1995):

É um tratamento feminino que não é usado para falar de mim, de minha vida. É verdade que sempre falamos um pouco de nós, a simples escolha do assunto já é uma opção pessoal. Mas quase sempre, veja o caso de Vinícius de Moraes, o tema feminino é abrigo de reações excessivamente subjetivas e até biográficas. Além disso, por que só a mulher deve monopolizar essa libertação de ânimo? O poeta deveria demonstrar seu estado de espírito até no ato de descrever um açucareiro. Na minha poesia a mulher é um tema a mais, como qualquer outro. Não o utilizo para confessar frustrações amorosas. Descrevo uma mulher sem biografia; o que ela representou na minha vida não vem ao caso (MELO NETO, 1995, In: Secchin, p.305).

Sendo assim, na poesia cabralina a mulher é apenas um tema a mais, como qualquer outro, retratado sem subjetividades líricas.

Na vasta produção poética de João Cabral de Melo Neto, deparamos-nos com poemas nos quais a mulher sempre estará associada a um objeto ou elemento da natureza. A mulher passa assim, por um processo de perda de suas características humanas. Cabral, através do símile, a retrata em um processo que a desumaniza e a metaforiza em forma de objetos concretos. Concluindo, a mulher na poética cabralina é casa, é égua e cavaleira, é fruta ácida do nordeste. Água, vento e/ou fogo.

REFERÊNCIAS

ATHAYDE, Félix de. Idéias fixas de João Cabral de Melo Neto. Rio de Janeiro: Nova Fronteira/FBN; Mogi das Cruzes, SP: Universidade de Mogi das Cruzes, 1998.

BARBOSA, João Alexandre. A imitação da forma: uma leitura de João Cabral de Melo Neto. São Paulo: Duas Cidades, 1975.

BARBOSA, João Alexandre. A poesia crítica de João Cabral. Revista Brasileira de Literatura CULT. São Paulo, nº 29, p. 23-29, dez., 1999.

CAMPOS, Haroldo de. Metalinguagem e outras metas. São Paulo: Perspectiva, 1992, p. 77-88.

CARDOSO, Helânia Cunha de Sousa. Motivo Feminino e Construção Poética e João Cabral de Melo Neto, Dissertação de mestrado, Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Letras, Literatura e Crítica Literária, Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, 2001.

ESCOREL, Lauro. A pedra e o rio: uma interpretação de João Cabral de Melo Neto. Rio de Janeiro: Academia Brasileira de Letras, 2001.

LIMA, Luiz Costa. A traição conseqüente ou a poesia de Cabral. In: Lira e antilira: Mário, Drummond, Cabral. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968, p. 237-410.

MARQUES, Patrícia. Quaderna: a lírica erótico-amorosa de João Cabral de Melo Neto, Dissertação de mestrado, Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Letras, Literatura e Crítica Literária, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2010.

MELO NETO, João Cabral de.. João Cabral de Melo Neto, Serial e antes. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997.

_____________. João Cabral de Melo Neto, A educação pela pedra e depois. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997.

_____________. Poesias completas: 1940 – 1965. Rio de Janeiro: José, Olympio, 1986.

MERQUIOR, José Guilherme. “Onda mulher, onde a mulher”. In: Razão do poema; ensaios de crítica e estética. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1965, p. 96-101.

MERQUIOR, José Guilherme. Nuvem civil sonhada – ensaio sobre a poética de João Cabral de Melo Neto. In: A Astúcia da Mimese: ensaios sobre crítica. Rio de Janeiro: José Olympio/Conselho Estadual de Cultura, 1972, p. 69-172.

PEIXOTO, Marta. Poesia com coisas (Uma leitura de João Cabral de Melo Neto). São Paulo: Perspectiva, 1983.

PEIXOTO, Marta. "Um pomar às avessas”: género e figuração da escrita em João Cabral. In: Colóquio: Letras, n.°157-158, 2000, págs. 229-240.

SECCHIN, Antonio Carlos. João Cabral: a poesia do menos e outros ensaios cabralinos. Rio de Janeiro: Topbooks, 1999.

SILVA, Letícia Batista da. As seis mulheres de A educação pela pedra. Cadernos do IL, Porto Alegre, n.º 45, dezembro de 2012. p.141-156.

Simião Mendes
Enviado por Simião Mendes em 11/03/2018
Código do texto: T6276944
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2018. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.