VARIAÇÕES DA VOZ NARRATIVA NA CONSTITUIÇÃO DA IMAGEM FEMININA ENTRE OS SÉCULOS XIX E XX

RESUMO: Este trabalho tem como objetivo apresentar uma análise comparativa entre o conto A missa do Galo de Machado de Assis e a reescrita A missa do Galo da autora Julieta Godoy Ladeira observando a constituição da representação da mulher na narrativa dos respectivos autores. Tal análise se dá levando em consideração a importância dos textos, pois observar autores de épocas diferentes, e, perceber as discrepâncias no que tange a constituição da mulher na narrativa, contribui para abrir novas possibilidades de sentidos aos textos lidos. Para compor a estrutura argumentativa desta análise, tomamos como fundamentação teórica a proposta de Massaud (2007), o qual faz uma abordagem sobre a Análise Literária e os componentes que a cercam e Orlandi (2002), que traz alguns apontamentos acerca da constituição da Análise do Discurso- AD Francesa, fundada por Michel Pêcheux. Em se tratando da metodologia, inicia-se pela descrição de ambos os textos, sendo um de Julieta Ladeira (mulher do século XX) e o outro de Machado de Assis (homem do século XIX), ambos narrando o mesmo acontecimento. Posteriormente, relaciona-se a constituição da mulher aos pressupostos apontados na Análise do Discurso, principalmente, os conceitos de “Formação discursiva” e “Ideologia e Sujeito” descritos por Orlandi (2002). Espera-se que este texto possa despertar o interesse às leituras dos autores literários de um tempo remoto, como também os textos e/ ou releitura dos escritores atuais e regionais, considerando as narrativas e suas interpretações como uma rica fonte de conhecimento.

PALAVRAS-CHAVE: Análise do Discurso; Machado de Assis; Julieta Godoy; Missa do Galo.

INTRODUÇÃO

Este trabalho tem como objetivo evidenciar a representação da mulher na narrativa do conto “A missa do Galo” de Machado de Assis comparando-o à releitura do Conto “Missa do galo” escrito por Julieta Godoy Ladeira. Sugere-se uma comparação com os dois autores e seus respectivos textos, observando suas particularidades e semelhanças dentro de uma perspectiva temporal bem como o contexto de produção narrativa dos mesmos.

Esta análise se dá levando em consideração o quadro teórico da Análise do Discurso de linha francesa. A opção pelos dois autores se justifica pela relevância de ambos, em termos comparativos, visto que apesar de apresentar uma mesma temática, a narrativa se dá em tempos e perspectivas distintas. Acredita-se que este texto é de suma importância, pois observar autores de épocas diferentes, e, perceber as discrepâncias no que tange a constituição da mulher na narrativa, contribui para abrir novas possibilidades de sentidos aos textos lidos.

Quanto ao embasamento teórico, considera-se o texto de Massaud (2007), o qual aborda que para se fazer uma análise é preciso desfiar cada palavra do texto e conhecer os ingredientes estruturais que o compõe e Orlandi (2002), a qual pontua que a análise do discurso tem o papel de problematizar e refletir as maneiras de levar o sujeito falante ou leitor a ler, reconhecer os sentidos que os textos apresentam, bem como propor questões a partir das interpretações feitas considerando o contexto de produção de cada texto.

Em se tratando da metodologia, inicia-se pela leitura de ambos os textos de Julieta Ladeira e Machado de Assis, bem como se observa que, em se tratando da escrita, aquela é uma mulher e este um homem, ambos narrando o mesmo acontecimento. Posteriormente, faz-se necessário o recorte de alguns apontamentos acerca da constituição da Análise do Discurso- AD Francesa, fundada por Michel Pêcheux, para assim, compor a estrutura argumentativa desta análise.

Acredita-se que este trabalho possa despertar o interesse às leituras dos autores literários de um tempo remoto, como também os textos e/ ou releitura dos escritores atuais e regionais, considerando as narrativas e suas interpretações como uma rica fonte de conhecimento. Assim sendo, espera-se que as considerações contidas neste trabalho sirvam como base para outras significações, abrindo possibilidades de compreensão do texto literário, bem como possa despertar o interesse às leituras dos autores literários de um tempo remoto, dos textos e/ ou releitura dos escritores atuais e regionais, considerando as narrativas e suas interpretações como uma rica fonte de conhecimento.

1 PROCESSO DE CONSTITUIÇÃO DA ANÁLISE DE DISCURSO FRANCESA (ADF)

A Análise do Discurso originou-se em meados dos anos 60 tendo como fundador o filósofo Michel Pêcheux (1938-1983). Esta se constituiu numa relação com três domínios: a Linguística, o Marxismo e a Psicanálise. No entanto, como destaca Orlandi (2002, p. 20) apesar de apresentar uma teoria que surgiu a partir dessas três regiões do conhecimento, “a Análise do Discurso trabalha com a noção própria de discurso, que não se resume ao objeto da Linguística- a língua; nem se deixa absorver pela Teoria Marxista- ideologias, e tampouco corresponde ao que teoriza a Psicanálise”.

A análise do discurso tem o papel de problematizar e refletir sobre as maneiras de levar o sujeito falante ou leitor a ler, reconhecer os sentidos que os textos apresentam, bem como propor questões a partir das interpretações feitas considerando o contexto de produção de cada texto. Há vários modos de interpretar e cada pessoa analisa de forma diferente, sempre levando em consideração que o tempo de leitura e escrita é diferente e, por isso, cada indivíduo lê e compreende de uma forma. Nos estudos da Análise do Discurso não se separam forma e conteúdo, procura-se compreender a língua não só como estrutura, mas também como acontecimento.

Numa perspectiva discursiva, Orlandi (2002, p, 25) pontua que “a linguagem é linguagem porque faz sentido. E a linguagem só faz sentido porque se inscreve na história”. Assim, numa perspectiva discursiva, a noção de leitura é posta em suspenso. Como o sentido é a questão fundamental, a linguística neste caso, se relaciona com a Filosofia e com as Ciências sociais. Sendo assim, para se trabalhar o sentido, a Análise do Discurso se ampara em três regiões do conhecimento: a teoria da sintaxe e da enunciação; a teoria da ideologia com a teoria do discurso, atravessada pela teoria do sujeito de natureza psicanalítica. Nessa perspectiva, “a articulação dessas três regiões nos estudos do discurso é que resulta na posição crítica assumida nos anos 60 em relação à noção de leitura, de interpretação, que problematiza a relação do sujeito com o sentido (da língua com a história)” afirma Orlandi (2002, p. 25).

Existem várias formas de estudar a linguagem, tanto do ponto de vista: da língua enquanto sistema de signos ou como sistema de regras formais. Porém, a Análise do Discurso não trata nem da gramática nem da língua, trata do Discurso, da palavra em movimento, do dizer, da prática da linguagem, ou seja, observa-se o homem falando. Dessa forma, segundo Orlandi (2002, p.15) na Análise do Discurso “procura-se compreender a língua fazendo sentido, enquanto trabalho simbólico, parte do trabalho social geral, constitutivo do homem e da sua história”, isto é, tem a linguagem como meio de relação entre o sujeito e a realidade social.

Ainda segundo a autora, “A Análise do Discurso não estaciona na interpretação, trabalha seus limites, seus mecanismos, como parte dos processos de significação” (ORLANDI, 2002, p.26). Seguindo essa afirmativa, pode-se pontuar que todo discurso necessita de um artefato teórico para que os sentidos sejam concretizados. A Análise do Discurso coloca a interpretação em jogo, os trabalhos voltados para ela são muito importantes, pois abrem espaço para a teorização das interpretações. Nesta perspectiva, Orlandi (2002) estabelece uma distinção entre inteligibilidade, interpretação e compreensão. Segundo a autora:

A inteligibilidade refere o sentido à língua: “ele disse isso” é inteligível. Basta se saber português para que esse enunciado seja inteligível; no entanto, não é interpretável pois não se sabe quem é ele e o que ele disse. A interpretação é o sentido pensando-se o co-texto (as outras frases do texto) e o contexto imediato. Em uma situação X Maria diz que Antonio vai ao cinema. João pergunta como ela sabe e ela responde: “Ele disse isso”. Interpretando: “Ele” é Antonio e “o que” ele disse é que vai ao cinema. No entanto, a compreensão é muito mais do que isso. Compreender é saber como um objeto simbólico (enunciado, texto, pintura, música etc) produz sentidos. É saber como as interpretações funcionam (ORLANDI, 2002, p. 26).

A análise das condições de produção do discurso permitem identificar que todo discurso provém de outros discursos. Nenhuma palavra surge sem que seja relacionada com outras palavras, assim como também não há as que apresentam menos ou mais verdades. Todo dizer só é realizado, porque este está relacionado a outros dizeres: “Todo discurso é visto como um estado de um processo discursivo mais amplo, contínuo. Não há desse modo, começo absoluto nem ponto final para o discurso. Um dizer tem relação com outros dizeres realizados, imaginados ou possíveis” Orlandi (2002, p. 39). Na constituição do Discurso, existem alguns mecanismos importantes, dentre eles, pode-se pontuar as relações de força. Segundo essa noção, todo sujeito fala a partir de um lugar, logo, seu discurso é constituído de características que apontam tal posição. Nesse sentido, fala-se que todo o discurso é hierarquizado, pois as relações na sociedade são sustentadas pelas relações de força, as quais são identificadas pela posição que o sujeito ocupa dentro da sociedade.

Outro mecanismo que se encontra na base da produção dos discursos diz respeito ao mecanismo de antecipação, segundo o qual “todo sujeito tem a capacidade de experimentar, ou melhor, de colocar-se no lugar em que o seu interlocutor ‘ouve’ suas palavras” (ORLANDI, 2002, p.39).

Esses mecanismos de funcionamento do discurso são constituídos a partir das formações imaginárias. Para Orlandi (2002), não são os sujeitos físicos nem os lugares empíricos nomeados dentro da sociedade, que funcionam no discurso, mas sim as imagens resultadas dessas projeções. Na língua existem regras que possibilitam ao sujeito passar da posição empírica para a discursiva. As condições de produção implicam: o que é material (a língua sujeita a equívocos e a historicidade), o que é institucional (formação social) e o mecanismo imaginário. Dentro de uma conjuntura sócio histórica, o imaginário cria imagens do sujeito como também do objeto do discurso. Dessa forma, a partir da posição do sujeito locutor, pensa-se “quem sou e porque falo assim”; mas reflete-se também quem é o sujeito interlocutor “para quem estou falando”; e o objeto do discurso “do que está falando ou do que ele me fala”. Todo esse processo se dá por intermédio da antecipação, que configura através do imaginário toda a imagem do processo comunicativo (a troca de palavras, diálogo), pensando no locutor, a imagem que este faz do interlocutor (vice-versa) e por consequência do discurso que um profere e outro recebe Orlandi (2002, p.40).

De acordo com a autora, o funcionamento das formações imaginárias precisa ser pensado observando as diferentes e muitas possibilidades regidas pela maneira como a formação social está na história. Sendo assim, ao discorrer um discurso sobre determinado lugar, precisa-se levar em consideração a imagem que o sujeito locutor tem deste lugar, a imagem que os interlocutores têm tanto do lugar quanto do locutor e a imagem que tanto um quanto outro tem dos sujeitos que estão envolvidos em tal lugar. Toda essa reflexão além de contribuir para a constituição das condições em que o discurso será produzido, também colabora para o processo de significação.

Pêcheux (1975, apud ORLANDI, 2002, p. 44) pontua que “o sentido é sempre uma palavra, uma expressão ou uma proposição por outra palavra ou outra expressão”, logo, as palavras não têm sentido próprio, preso a sua literalidade. Assim, ainda de acordo com o autor, os sentidos se configuram nas relações de metáfora realizadas em processos de: substituição, paráfrase, formação de sinônimos, das quais a formação discursiva vem a ser historicamente o lugar mais ou menos provisório. A autora ainda destaca que uma mesma palavra pode ter significados/sentidos diferentes, pois podem estar inscritas em formações discursivas diferentes. Sendo assim, o analista precisa observar as condições de produção, verificando o funcionamento da memória, e, por fim, compreender o sentido que está posto nos dizeres.

O homem é levado a analisar qualquer objeto que está diante dos seus olhos, logo, ao refletir sobre o que tal objeto significa, faz-se o movimento da interpretação do sentido e como tal, a evidência aparece como se já estivesse lá há muito tempo. Esse processo acontece porque ideologicamente o objeto foi constituído por marcas dos discursos e relacionado aos sentidos expostos dentro da sociedade. Dessa forma, pode-se pensar que este é um dos papéis da ideologia, a de criar evidências e colocar o homem na relação imaginária com suas condições materiais de existência. Sendo assim, pode-se considerar que a ideologia é a condição para a constituição do sujeito e dos sentidos. A evidência do sentido designa objetos a partir das palavras, apagando o seu caráter material, logo, as palavras recebem sentido com base nas formações discursivas que foram constituídas ideologicamente. Por sua vez, a evidência do sujeito, que como tal é interpelado pela ideologia e chamado à existência: sua interpelação pela ideologia. Pode-se pensar que não há discurso sem sujeito, assim, não há sujeito sem ideologia.

Nessa perspectiva, ao pensar em ideologia, pensa-se na interpretação. Esta não surge do nada, convém um jogo de relação do que é, do que foi e do que poderá ser; buscando sempre o armazenamento do interdiscurso (memória), e daí reconhecer os sentidos estabelecidos na formação discursiva. Orlandi (2002, p. 50) pontua que “os sentidos não se esgotam no imediato. Tanto é assim que fazem efeitos diferentes para diferentes interlocutores. Não temos controle sobre isso. Mas tentamos. Faz entrada, assim, em nossa reflexão, a noção de contradição junto à de equívoco”.

Assim, segundo Sousa (2008).

[...] é através do condicionamento do sujeito à formação ideológica e à formação discursiva que o enunciador constrói representações fundamentais de seu discurso e dos lugares que ele e seu interlocutor ocupam, além de construir também as imagens que ele tem de seu interlocutor e as imagens que ele imagina que seu interlocutor tenha dele e de seu discurso. Dá-se, nessa perspectiva o jogo de imagens, que faz parte da teoria de Pêcheux. (SOUSA 2008, p.41)

Portanto, seguindo esta discussão acerca de alguns componentes referentes à constituição da Análise do Discurso, considera-se que este trabalho se constitui tendo como base principal os conceitos de “Formação discursiva” e “Ideologia e Sujeito” descritos por Orlandi (2002) no texto Análise do Discurso: princípios e fundamentos.

2 A TEORIA LITERÁRIA E A SUAS APLICAÇÕES NA ANÁLISE

Antes de iniciar a descrição do objeto de pesquisa, faz-se necessário uma reflexão acerca de alguns pressupostos referentes à Análise Literária, visto que os Contos em questão apresentam características textuais acerca dessa modalidade.

Fazer uma análise de um texto requer muito mais do que uma mera leitura, analisar minunciosamente uma obra é destrinchar cada palavra de forma que o seu sentido seja compreendido a partir da relação que os autores têm com o texto e o contexto em que estejam inseridos. Segundo Massaud (2007), a Análise Literária consiste em desmontar o texto para conhecer os ingredientes que o estruturam. Nesse sentido,

Análise define-se como um processo de conhecimento da realidade que não é exclusivo de ciência alguma, nem mesmo de filosofia alguma, religião alguma ou arte alguma. Sempre que um objeto, um conceito, uma equação matemática, uma ideia, um sentimento, um problema, etc., é decomposto em suas partes fundamentais, está-se praticando a análise (MASSAUD, 2007, p, 13).

No entanto, uma análise não é precisamente a única verdade apresentada pelo texto, mesmo porque cada leitura possibilita uma interpretação diferente. Leonardo Boff (1998) destaca que “todo ponto de vista é a vista de um ponto”, ou seja, cada indivíduo lê com os olhos que tem e interpreta de acordo com sua visão de mundo. Sendo assim, as considerações contidas neste trabalho, servirá como base para outras significações, abrindo possibilidades de compreensão do texto literário, bem como as sensações que a leitura desperta na mente humana.

Ao se fazer uma análise, o escritor fica exposto às críticas posteriores, pois toda escrita requer leituras e para se analisar é preciso também que o pesquisador tenha conhecimento do objeto, como também saiba fundamentar seus argumentos relacionando-os a outros pesquisadores.

Em se tratando do estudo da poética, que tem como objetivo compreender os aspectos da produção e divulgação da literatura, Teles (1996) pontua que nenhuma análise é definitiva, precisa ser sustentada em uma metodologia teórica que conduzirá o leitor a uma crítica disciplinada. Sendo assim, a verdade exposta dentro de uma análise é apenas um objeto que poderá ser estudado por outros estudiosos. Todo texto é fruto de leituras que se fez ao longo da vida, logo, nenhum discurso surge sem a interferência de outro.

Nesse sentido, é possível perceber como o texto literário assim como todos os outros, podem sofrer influência por outros discursos, os quais já foram discutidos em outros tempos. Marisa Lajolo (2001, p. 118) pontua que “quando um texto menciona direta e indiretamente um escritor ou um escrito, fala-se de intertextualidade”. Assim, podemos ressaltar que intertextualidade é uma das formas que o autor utiliza para inserir um texto dentro de outro cabendo ao leitor notar como eles se relacionam e se articulam.

Dessa forma, não podemos expor uma opinião do nada, ela é precisamente uma produção de sentidos e de identidade com algo já estudado, lido ou vivenciado, é fruto de tudo aquilo que conhecemos e vivemos. A leitura é, portanto, uma estratégia de estabelecimento de relações entre o que já se sabe e o que se deseja saber e expressar.

3 ANÁLISE DOS TEXTOS: O CONTO E UMA (RE)LEITURA

Neste tópico tratar-se-á de analisar a partir dos pressupostos descritos na Análise do Discurso Francesa (ADF), dois contos dos autores brasileiros: Joaquim Maria Machado de Assis (1839-1908) e Julieta de Godoy Ladeira (1927-1997); aquele, homem do século XIX e esta uma mulher do século XX, ambos discutindo uma mesma temática, porém com perspectivas distintas.

Para iniciar esta análise, faz-se necessário uma descrição da materialidade dos objetos escolhidos. O primeiro conto foi escrito por Machado de Assis e publicado em 1889 no livro “Páginas Recolhidas”, o segundo conto é uma reescrita de Julieta Ladeira, a qual foi publicada na obra “Missa do galo: variações sobre o mesmo tema”, organizada pelo escritor Osman Lins e publicada no ano de 1977.

Os contos, em sua maioria são centrados em acontecimentos, sejam eles vivenciados ou não pelo sujeito autor/escritor. Porém, é válido pontuar que para se narrar é preciso ter conhecimento dos elementos que compõem os discursos narrativos. Ao narrar uma história, o autor utiliza-se intuitivamente, de todos os elementos que compõem a narrativa, mesmo não sabendo dos efeitos que estes produzem. Embora cada escritor tenha suas particularidades, isso não impede, pois, a análise individual da produção literária, seus traços distintivos, suas influências, seus destinatários, como também sua interação do eu no discurso com o outro no discurso. Sendo assim, nota-se que tanto um quanto outro traz as suas marcas ideológicas que foram construídas levando em consideração não só o contexto de escrita da narrativa, mas também o tempo em que a história foi produzida.

Nessa perspectiva, Orlandi (2002, p.73) afirma que “há na base de todo discurso um projeto totalizante do sujeito, projeto que o converte em autor. O autor é o lugar em que se realiza esse projeto totalizante, o lugar em que se constrói a unidade do sujeito”. Sendo assim, como o texto é uma unidade de sentido, com toda a sua completude o sujeito se constitui autor ao constituir-se nesta unidade.

Nesse sentido, no conto “Missa do Galo” escrito pelo autor brasileiro Machado de Assis, percebe-se que a narrativa se dá a partir da perspectiva de Nogueira, um jovem rapaz que se hospedara na casa de Menezes e Conceição. Tal personagem além de ser um dos protagonistas do enredo também é o narrador da história. Já no conto reescrito por Julieta Ladeira a narrativa se faz a partir da perspectiva de Conceição, mulher mais velha, esposa e dona de casa. Esta, além de ser personagem protagonista, também é a narradora do enredo. Logo, existe uma disparidade entre os textos supracitados.

Para compreender a narrativa dos textos, toma-se como base inicial a compreensão da Formação Discursiva descrita na Análise do Discurso. Orlandi (2002, p. 42) pontua que “As palavras mudam de sentido segundo as posições daqueles que as empregam”, ou seja, pode-se dizer que dentro de um determinado discurso os sentidos são configurados de forma diferente a depender de quem o está utilizando. Nos textos em análise, por exemplo, observamos que existe uma divergência, pois a narrativa parte de perspectivas particulares. Orlandi (2002) ainda declara que a formação discursiva se dá levando em consideração a formação ideológica dentro de uma dada posição sócio-histórica, a qual define o que deve ou não ser dito. Além da “Formação Discursiva”, considera-se também o conceito de “Ideologia e Sujeito”. Orlandi (2002) pontua que a ideologia cria evidências e coloca o homem na relação imaginária com suas condições materiais de existência. Com isso, pode-se considerar que a ideologia é a condição para a constituição do sujeito e dos sentidos.

Apesar desta análise se centrar na maneira como o narrador constitui a representação da mulher, para atribuir sentidos aos textos analisados, considera-se também não só o narrador e a constituição da narrativa, mas também o tempo em que o texto foi publicado, pois este fato traz maiores possibilidades para compreender a narrativa. Todo escritor, no ato da criação, sofre influências de fatores externos ao ato da escrita. Os sentimentos, pensamentos, conhecimentos, ideias e experiências estão relacionados de forma que as referências pessoais são refletidas em cada criação. No entanto, nenhuma obra é definitiva, pois o processo de criação é ininterrupto, já que o criador sempre está passando por novas experiências e vivências.

Observando o processo de criação dos autores literários, pode-se considerar que a literatura além de ser uma reunião de diversos aspectos estruturais, sociais e culturais dentro de uma manifestação textual verbal, pode ser considerada também, uma manifestação artística, cuja interpretação varia de acordo com o momento histórico e as condições de recepção. Verifica-se que o texto literário além de representar a realidade vista pelos olhos do artista, é um veículo de divulgação de ideias e, independente de seu tema, pode causar determinados impactos e sensações no imaginário de seus leitores.

Para Coutinho (1978, p. 09). “A literatura, como toda arte, é uma transfiguração do real, é a realidade recriada através do espírito do artista e retransmitida para as formas, que são os gêneros, e com os quais ela toma corpo e nova realidade.” Coutinho afirma, justamente, essa ideia de representação que o artista faz mediante a sua visão e a realidade na qual está inserido. Logo, ele procura descrever e organizar seu texto, para que produza um efeito que vá além da sua significação objetiva, podendo assim, conquistar novos espaços e permitir novas possibilidades de perceber o mundo. Sendo assim, no conto escrito por Machado, nota-se que Nogueira é um jovem de 17 anos do interior que vai morar no Rio de Janeiro com o objetivo de terminar seus estudos. Observando este trecho: “Nunca pude entender a conversação que tive com uma senhora, há muitos anos, contava eu dezessete, ela trinta. Era noite de Natal” (ASSIS, 1985).

É nítido que o rapaz é o narrador da história, o qual narra o enredo a partir da visão de um jovem, que aos 17 anos fica encantado com uma mulher mais velha e sente-se atraído por esta, porém, apesar de sentir atração, neste encontro dos dois ainda não se deu conta desse jogo de sedução provocado por Conceição.

A partir da descrição que Nogueira faz sobre os cuidados que Conceição tem com o marido e com a casa, bem como o comportamento desta em relação àquele, pode-se notar as características do contexto sócio histórico no qual estão inseridos. Observa-se a representatividade de uma mulher submissa ao homem, que mesmo infeliz se conforma com a situação, pois não poderia ser diferente, visto que a sociedade daquela época (séc. XIX) era muito preconceituosa em relação à imagem feminina, e como tal, não aceitaria uma mulher dependente das ações do marido e que tivesse suas próprias vontades. Deveria ser uma mulher boa para o marido e prendada nos afazeres domésticos. “Boa Conceição! Chamavam-lhe "a santa", e fazia jus ao título, tão facilmente suportava os esquecimentos do marido. Em verdade, era um temperamento moderado, sem extremos, nem grandes lágrimas, nem grandes risos” (ASSIS, 1985).

A imagem da mulher do século XIX foi criada dentro de um modelo de subordinação ao pai e quando casasse deveria tornar-se dependente do marido. Desde pequena era ensinada a ser mãe, esposa, e sua educação se baseava em ensinamentos domésticos, ou seja, aprendia-se a cozinhar, lavar, bordar, pintar etc. Contudo, dentro de um contexto de transformações a mulher viu na educação uma forma de escapar deste “molde” criado pela sociedade. Segundo (Oliveira, 2008), nos anos de 1981, alguns grupos do Movimento Metodismo vieram dos Estados Unidos e se instalaram no Brasil. Estes tinham como um dos objetivos fazer movimentos de reforma social e religiosa. Assim, através de Miss. Martha Watts, educadora e missionária, implanta-se o ideal de abrir escolas para moças. Com isso, “A mulher que ora, não tinha nenhum acesso à educação, e consequentemente aos espaços públicos, agora encontra a porta aberta pela educação e religião para tal espaço, através do acesso à escola” (Oliveira, 2008, p. 02).

Machado foi considerado o escritor das mulheres, pois retratava em suas obras a situação em que viviam. A mulher no conto Missa do galo é totalmente desprovida de desejos femininos, vive uma vida de mentiras apenas para mostrar à sociedade que naquela casa existia uma família que mantinha uma tradição, como se observa neste trecho: “A família era pequena, o escrivão, a mulher, a sogra e duas escravas. Costumes velhos. Às dez horas da noite toda a gente estava nos quartos; às dez e meia a casa dormia” (ASSIS, 1985).

No encontro da saleta, Nogueira começa a perceber a sensualidade de Conceição, porém em nenhum momento o jovem revela que os seus gestos foram propositais a fim de seduzi-lo, ao contrário, ele a descreve como se estas qualidades fossem naturais dela, as quais estavam escondidas atrás da imagem de uma mulher submissa e infeliz. O marido de Conceição não tinha tempo para dar-lhe atenção, quando Nogueira a elogia, esta se sente viva, notada e feliz:

“Conceição ouvia-me com a cabeça reclinada, enfiando os olhos por entre as pálpebras meio cerradas, sem os tirar de mim. De vez em quando, passava a língua pelos beiços, para umedecê-los (...) Tal foi o calor da minha palavra que a fez sorrir. De costume tinha os gestos demorados e as atitudes tranqüilas; agora, porém, ergueu-se rapidamente, passou para o outro lado da sala e deu alguns passos, entre a janela da rua e a porta do gabinete do marido. Assim, como desalinho honesto que trazia, dava-me uma impressão singular. Magra embora, tinha não sei que balanço no andar, como quem lhe custa levar o corpo; essa feição nunca me pareceu tão distinta como naquela noite” (ASSIS, 1985).

Apesar de Nogueira mostrar através das palavras todas as ações de Conceição em relação a ele, em nenhum momento deixa claro que só o faz por vontade, prazer, por querer se libertar daquela vida de aparências. Orlandi (2002) pontua que todo discurso é composto por sentidos, os quais são determinados pelas posições ideológicas que as palavras são produzidas. Sendo assim, nota-se que as palavras de Nogueira são construídas dentro de um contexto do século XIX, onde as mulheres não tinham nenhum poder sobre a casa, era o homem quem tomava todas as decisões. Mesmo não tendo um casamento feliz, Conceição não poderia se sentir desejada ou até mesmo sentir vontades de se relacionar com outro homem, este não era o papel da mulher. O homem, por ser o dono da casa podia tudo, inclusive ter outros amores na rua, o que era tido como normal, “(...) Meneses trazia amores com uma senhora, separada do marido, e dormia fora de casa uma vez por semana. Conceição padecera, a princípio, com a existência da comborça; mas afinal, resignara-se, acostumara-se, e acabou achando que era muito direito” (ASSIS, 1985).

Encantado com tamanha sensualidade, Nogueira ressalta a todo instante as impressões que tem sobre Conceição, como não havia percebido suas qualidades antes, e como esta mulher o seduz em seus pequenos gestos:

Pouco a pouco, tinha-se reclinado; fincara os cotovelos no mármore da mesa e metera o rosto entre as mãos espalmadas. Não estando abotoadas as mangas, caíram naturalmente, e eu vi-lhe metade dos braços, muito claros, e menos magros do que se poderiam supor. A vista não era nova para mim, posto também não fosse comum; naquele momento, porém, a impressão que tive foi grande. As veias eram tão azuis, que apesar da pouca claridade, podia, contá-las do meu lugar (ASSIS, 1985).

Nogueira vai descrevendo as insinuações de Conceição, contudo, esclarece que ao passo que seduz, esconde-se ligeiramente por trás da imagem da mulher tímida e triste. Tal imagem faz com que se sinta presa às regras comportamentais impostas a uma senhora daquela época e, por isso, não poderia agir daquela maneira: feliz e livre. O fim do encontro se dá tão ligeiro quanto a descoberta de uma Conceição, “Linda, lindíssima”. Chegada a hora de ir à Missa do Galo, Nogueira se despede de Conceição, entretanto, durante a missa, o reconhecimento da imagem de uma mulher sensual, contrapondo a mulher dona de casa se refaz em sua memória:

E com o mesmo balanço do corpo, Conceição enfiou pelo corredor dentro, pisando mansinho. Saí à rua e achei o vizinho que esperava. Guiamos dali para a igreja. Durante a missa, a figura de Conceição interpôs-se mais de uma vez, entre mim e o padre; fique isto à conta dos meus dezessete anos. Na manhã seguinte, ao almoço falei da missa do galo e da gente que estava na igreja sem excitar a curiosidade de Conceição. Durante o dia, achei-a como sempre, natural, benigna, sem nada que fizesse lembrar a conversação da véspera (ASSIS, 1985).

Pode-se notar no conto machadiano que não é a mulher que se insinua para o jovem, há uma descrição a partir desse jovem- de 17 anos- que no auge da juventude se ver preso a sua imaginação. Descreve o jogo de sedução, o qual retrata as histórias que ele lia nos livros de literatura e, a partir disso destaca o poder de sedução da mulher do século XIX, e como esta contagia o homem com os seus atributos femininos. Assim, verifica-se, que mesmo sendo homem, o narrador de Machado mostra que a apesar da mulher do século XIX ter seus atributos sexuais e o desejo de mostrar seus sentimentos e vontades para a sociedade, precisava seguir o modelo de conduta de uma senhora dessa época, que como tal não podia sentir desejos, pois precisava manter uma imagem de “santa do lar” e submissa ao marido.

Diante do que foi apresentado no conto machadiano, nota-se que a imagem da mulher foi construída, ao longo da história, como submissa às vontades masculinas e por ser inferior era tida como objeto de poder do homem. Até os finais do século XIX, a mulher esteve reprimida e não conseguia medir forças contra o poder que imperava na sociedade: o poder masculino. Contudo, no início do século XX, depois de algumas lutas travadas, o pensamento feminista ganha força e, a partir disso, muda-se a maneira de se ver e considerar a mulher socialmente. Através da educação, a mulher agora tem vez e voz, ganha espaço dentro de uma sociedade machista e preconceituosa. Como nos afirma Oliveira (2008):

Ao longo da história da emancipação feminina é possível pensar que a educação e a religião são fatores importantes que contribuíram para evolução e progresso da mulher brasileira na busca do seu espaço social. A educação, neste contexto, é vista como uma missão, uma vocação religiosa, como no caso da missionária Martha Watts, este ideal de mãe educadora permeava os debates em torno da emancipação feminina no final do XIX e início do XX. A feminização do magistério como um ponto de partida para a emancipação da mulher, traz consigo no processo de conformação, a negação do prazer e do casamento. Se antes a possibilidade de futuro estava no casamento, tendo o homem como provedor e protetor, nesta nova configuração, mulheres que adotavam a profissão de professoras, quase sempre ficavam solteiras (OLIVEIRA, 2008, p. 03-04).

Tendo em vista estas inovações ocorridas no campo da educação, tendo a representação da mulher modificada na sociedade, na reescrita de Ladeira, pode-se destacar algumas questões que divergem da escrita machadiana. Tal texto foi publicado em meados do XX, por isso, apresenta algumas diferenças, as quais trazem marcas ideológicas apresentadas pelo narrador da história. Orlandi (2002) pontua que o trabalho da ideologia é produzir evidências que coloque o homem na relação imaginária com suas condições materiais de existências. Sendo assim, “são essas evidências que dão aos sujeitos a realidade como sistema de significações percebidas, experimentadas” Orlandi (2002, p. 47).

Nessa perspectiva, inicialmente, nota-se que a narradora de Ladeira é uma personagem feminina- Conceição- a qual traz relatos distantes ao tempo da narrativa, fato este, parecido com o narrador de machado. Percebe-se pelos trechos iniciais nos quais a narradora não tem muita certeza dos detalhes, pois as lembranças são vagas, “Aquela noite às vezes reaparece, e flutua em minha lembrança com suas luzes e frases. Esquecida talvez de muitas palavras, olhares, mas certa da ansiedade, ainda recordo as pausas, alguns gestos” (LADEIRA, 1977, p. 55).

Conceição tinha uma relação matrimonial infeliz, tendo em vista que seu esposo mantinha outras histórias fora de casa e não a respeitava como mulher. A narradora, a todo o instante, tenta justificar seus sentimentos a partir de argumentos caracterizadores. Esta justifica sua intenção com Nogueira quando detalha a vida da personagem; onde morava e como vivia, o que sentia; o que fazia; como era tratada dentro de casa, ou seja, quem realmente era a Conceição. A caracterização não só revela os traços, as qualidades e características que cada personagem apresenta dentro da intriga como também contribuem para a construção das sequências da narrativa.

Assim, ao descrever o encontro que teve com Nogueira, deixa em evidência o sentimento que ele despertou nela. Desde que o jovem se hospedara em sua casa, Conceição o observava, procurando uma oportunidade para tê-lo perto, como está posto no trecho: “Afastando a cadeira, dera alguns passos pela sala. Era como se o visse. Há muito esperava uma aproximação maior, agora possível, embora ameaçada, o ângulo verde se abria, luminoso, lento mas preciso. Tinha que descer” (LADEIRA,1977, p. 57).

A narrativa se dá a partir da visão de uma mulher casada e traída em pleno século XIX. Uma mulher que sentia desejos, sentimentos e, ao ver Nogueira, sente-se motivada a lutar a favor desses desejos. Constata-se que a narradora ainda apresenta Conceição como uma mulher triste que vivia submissa ao marido, mal saia de casa, vivia sua vida fazendo os afazeres domésticos, como uma boa dona de casa e esposa prendada, pois esta era a imagem da mulher configurada no contexto da época. No momento em que Conceição descreve suas atividades domésticas, por exemplo, nota-se toda a exaustão e insatisfação da personagem: “Hábitos sempre iguais... No quintal eu molhava as plantas, lentamente, encontrando prazer nessa momentânea solidão” (LADEIRA, 1977, p. 6). Contudo, a narradora deixa nítida que não está mais disposta a ficar nesta “posição” social em que ocupa.

Durante o desenrolar dos acontecimentos da narrativa, a narradora aponta algumas dicas, as quais fazem com que o leitor suponha algumas questões dentro do enredo, como por exemplo, em alguns momentos pode-se pensar que a personagem principal está interessada em seduzir o jovem que se hospedara em sua casa, tendo em vista que esta reflete maneiras para impressionar o jovem, assim, procura expor as suas afinidades de acordo com os gostos dele: “Precisava retrair-me, citar leituras românticas, deixa-lo à vontade. Pressentia a transposição fácil, bastaria adotar uma determinada postura, dizer uma frase de certa maneira, para que instintivamente passasse a ver mim Maria Eduarda, e outras associações ocorressem” (LADEIRA,1977, p 59).

Tal sentimento se constrói tendo em vista que Conceição se deixa seduzir pelo rapaz, com seu jeito de tratá-la e principalmente pelas afinidades que tinham. Ela vê em Nogueira uma forma para extravasar as suas vontades. Nesta narrativa, observa-se também a maneira como a narradora utiliza-se de argumentos que definem suas ações diante do rapaz. Quando a mesma revela as características pessoais da personagem, ela só o faz para tentar justificar os motivos que a levaram ter intenções com Nogueira, ou seja, é notório a sua insatisfação no casamento e como as mulheres eram tratadas pela sociedade daquela época, fato este bem representado neste trecho:

“Quando o Menezes saía eu aproveitava para costurar até mais tarde, conversar com a vizinha (...) A época não era a de hoje, minha mãe aconselhou-me a ter paciência. Não havia ciúme, não houvera amor. Entretanto, humilhada, eu sofria. Deixou de voltar pela madrugada, passando a somente aparecer no dia seguinte. Salvava as aparências com desculpas” (LADEIRA, 1977, p.56).

Na noite do encontro, os dois conversam sobre vários assuntos. Conceição sempre o admira e sua vontade era surpreendê-lo. Em muitos momentos, a personagem tem vontade de ir além de seus pensamentos, mas a sua situação não lhe permitia seguir adiante, pois ela vivia em uma época em que a mulher não podia ter privilégios na sociedade. O seu papel era a de ser dona de casa e esposa, cuidar e zelar do lar e da família. No entanto, Conceição não era feliz, pois até seus gostos e as suas vontades não eram permitidos. Nesse trecho nota-se que a personagem segue, fielmente, as vontades do marido, já que este não gosta de música clássica, aquela não deve ouvir. “Quase não se abria aquele armário, os álbuns estavam empoeirados. Ao Menezes aborrecia a música fina. Vinham do meu tempo de solteira. Mas sem companhia se perde o gosto para ouvir” (LADEIRA, 1977, p. 59).

Apesar de fiel ao marido e aos costumes daquela época, a narradora destaca a grande evolução da mulher, ao mostrar uma Conceição que tem desejos pelo jovem Nogueira e que o seduz de diversas maneiras. Apreensiva de alguém aparecer, Conceição continua o jogo de sedução; sabe do seu poder e certa de ter conseguido seduzir o jovem, procura seguir adiante:

“(...)-Que isso, dona Conceição! Imagine. – Não me acha velha? A resposta provocada descia por meu corpo, e eu renascia junto a seu rosto. Muito próximos. Ficaria a noite toda olhando-o assim, fixamente (...)” (p.60).

“Agora meu corpo, ereto, parecia uma coisa a mais, crescida na planície como um fenômeno que o chão quisesse de volta. Ele em seu hermético silêncio, a poucos metros, tornando desconcertante aquela fuga” (...) (p. 61)

Diante de toda a descrição das sensações que Conceição sentiu durante o encontro é notável que a narradora quer transmitir o sentimento da personagem em relação ao jovem e mostrar que mesmo diante de uma sociedade preconceituosa e machista ela não se deixa retrair. Seu sentimento é de vingança queria muito que todos a vissem e notassem o seu poder de sedução, pois dessa forma talvez pudesse se libertar: “A mágoa do recuo, a vergonha, a raiva, o peso da honra, minha casa e as toalhas de crochê, as plantas, a paciência e os anos, uma mulher e sua vingança, queria o Menezes ali atrás das cortinas, todos os homens me vendo, rostos sérios, punhos cerrados, à espera” (LADEIRA, 1977, p. 61).

Todo o encantamento foge às pressas quando os amigos chegam e Nogueira precisa ir à Missa do galo. Durante toda a conversa, Conceição fica no impasse de seguir a conduta que a sociedade lhe impusera ou seguir a sua vontade de se libertar daquela situação:

Fechei os olhos, aguardando, e então o que via, a se debruçar sobre meu peito, eram as paredes do quarto, familiares (...) Não sei quanto tempo ficamos assim, lado a lado. Levantei-me, impedindo que se movesse, as mãos em seus ombros. O pano do paletó não tirava a impressão de meus dedos apertando sua pele, queria dizer as palavras exatas, mas achava que todas, mesmo as capazes de conduzir, quebrariam aquele encanto, para sempre uma entrega”(...) (LADEIRA, 1977, p.62).

Queria entregar-se ao rapaz e sentia vontade de que todos pudessem vê-la, no ímpeto de se libertar dessa vida à qual, até então, julgavam-na acomodada. Apesar de não extrapolar neste encontro, este momento serviu para abrir os olhos de Conceição. Depois de ver como sua feminilidade tinha poder, depois do encontro com o rapaz, ela não foi mais a mesma. Nogueira retorna a sua casa e nunca mais ela o vê. Contudo, Conceição começa a admirar outro rapaz, com quem se casaria após a morte de Menezes.

Considerando toda essa explanação, confirma-se que ambos os textos contam a mesma história, porém o conto de Machado tem como narrador o personagem Nogueira, e a reescrita de Ladeira apresenta a narradora Conceição. Nogueira descreve todos os acontecimentos mostrando que as ações de Conceição condizem com o período em que viviam os personagens. No século XIX a mulher não tinha nenhuma liberdade, era o homem quem dominava. A mulher era criada para ser uma boa esposa, mãe e dona de casa. Dentro deste contexto social, não poderia lutar contra este papel imposto pela sociedade, só lhe restaria o conformismo. Nogueira descreve, segundo sua imaginação de jovem, que em todos os momentos que Conceição avançava, voltava atrás, parece que lembrava qual era a sua posição.

Já no conto de Ladeira, a narradora apresenta Conceição como uma mulher forte, dona de si e de suas ações. A personagem queria encontrar o jovem para seduzi-lo e mostrar para a sociedade que ela era uma mulher interessante, capaz de despertar o interesse de qualquer homem que não fosse o do seu marido. Seu desejo era de vingança. Vingar-se do marido que a traía a todo esse tempo e de toda a sociedade, que mesmo sabendo da sua real condição, ainda a achava acomodada a situação. Em Machado quem detém o poder é o homem, a mulher não tem privilégios, diferente de Ladeira. Nesta, a mulher ganha força e mostra seu poder de sedução e conquista, quebrando assim, a representação da mulher criada no século XIX.

CONSIDERAÇÕES PARCIAIS

Ao longo desta pesquisa, constata-se que a análise de uma obra, seja ela verbal ou não verbal é um trabalho bastante motivador, pois permite ao homem uma oportunidade de abrir novas possibilidades de significações e, ao mesmo tempo, contribui para os estudos acerca dos autores, considerando as épocas em que estejam inseridos e todo o contexto de produção. E com isso, pode-se observar por meio dos textos (verbais ou não verbais) as diferentes formas de tratar uma mesma temática, sem perder de vista o caráter significativo presentes em sua criação.

A partir do que foi descrito ao longo desse trabalho, nota-se que Machado de Assis, através da representação da mulher, apresenta no conto uma brilhante análise acerca do comportamento da sociedade do século XIX. Utilizando-se de uma voz masculina para narrar todo o momento, Machado deixa nítida a situação da mulher, quais eram as suas atribuições na sociedade e como esta se sentia caso tomasse a iniciativa de ultrapassar a conduta até então construída naquela época.

Em Godoy Ladeira, percebe-se que a reescrita traz novos sentidos à representação feminina. A mulher ainda sofre com toda a imposição da sociedade, porém não quer mais continuar neste mesmo lugar. Utiliza-se de uma voz feminina para descrever as suas próprias emoções e as descreve de maneira diferente, além de mostrar toda a sua insatisfação com o modelo de mulher construído naquele período, deixa claro que seu desejo era de vingança contra todo o imperialismo masculino que a forçava viver naquele conformismo, e por estar insatisfeita lutava com as “armas” que lhe restara. Sabendo do seu jogo de sedução, tentava a partir disso, conseguir sua liberdade. Contudo, o jovem Nogueira, por ser ainda um menino, não percebe tamanha sensualidade de Conceição e o seu desejo em avançar.

Desta forma, constata-se que todo texto traz novos sentidos e estes variam a depender do contexto e época em que estejam inseridos. Sendo assim, a partir das descrições dos textos de Machado de Assis e Godoy Ladeira, conclui-se que através do estudo da Análise do Discurso, o homem pode não só colocar em prática a sua interpretação acerca dos textos lidos como também compreender como estes sentidos colaboram para a constituição da mulher entre os séculos XIX e XX.

REFERÊNCIAS

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SOUSA, Ana Caroline Luiza. Análise do discurso aplicada em charges e cartuns políticos. Crátilo: Revista de Estudos Linguísticos e Literários. Patos de Minas: UNIPAM, (1): 39-48, ano 1, 2008.

TELES, Gilberto Mendonça. A escrituração da escrita: Teoria e prática do texto literário. Petrópolis, RJ: Vozes, 1996.

Didimari Santana
Enviado por Didimari Santana em 04/07/2018
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