DUAS VIDAS

É sábado. Manhã de sábado. Dez horas, talvez. O relógio está há poucos metros de mim, em algum lugar deste apartamento, e não o procuro para não ter certeza das horas. Isso não é importante, pelo menos neste instante. Estou aqui para matar o tempo... não que eu realmente queira que ele passe depressa.

Olho pelas vidraças transparentes e límpidas deste terceiro andar silencioso. Mais silencioso ainda parece ser lá fora. Aqui dentro pelo menos há algum quebrador do silêncio. O rádio toca uma melodia antiga, capaz de criar uma estação de lembranças em mim. Agora vejo pessoas lá fora a caminho de alguma mercearia, vão comprar o café da manhã, talvez, ou contar para transeuntes, a última dos vizinhos. Sábado é meio preguiçoso mesmo. Para alguns, para outros não. Não perdi o sono nessa noite, mas adiantei nas horas. Um dos vizinhos também. Já andamos por estradas de poeiras, carniças, pós e urubus. A motocicleta nem reclamou de nada. O ser humano é mesmo reclamão e se não o fosse, não seria humano, só acho. A reclamação parece uma inerência aos seres com vida, mas o humano é mais reclamão.

Já tomei um café forte hoje, logo pela manhã, enquanto assistia as notícias na televisão, no meu lar oficial. Qual é meu lar oficial? Este ou o outro? Não importa. Sei que neste momento estou sozinho – não por necessidade – mas por opção momentânea. Sei que vivo um digladiar entre o escrever e o fazer um café...

“Por Deus eu preciso encontrar minha paz”. Diz a letra da canção antiga que toca no som de última geração. Chega! Preciso mesmo de um café...

Pronto. Eu precisava mesmo de um café. Meu único vício, talvez.

Agora lá fora o sol está feliz, intrépido. Trêmulo. O ar está trêmulo.

A terra vermelha lá fora. Contrasta com um verde preguiçoso e empoeirado das árvores castigadas pelo sol árduo. O clima é de verão, mas é primavera, eu sei. As flores denunciam a estação. Agosto morre para deixar setembro triunfar. Os ipês mostram toda a força de uma estação antecipada, o branco, o roxo e o amarelo dos ipês se juntam para descolorir o vermelho da terra. O sol faz tudo reluzir. O canto dos pássaros lá fora se junta ao som da melodia aqui dentro. Tudo é festa. Dentro de mim há uma festa, uma festa de lembranças. O gosto bom do café, um doce amargo desejado ainda está na boca, e, me alimento de um misto de lembranças e saudades. Mas não estou necessariamente triste. Pensativo... seria a definição correta do meu estado de ser, neste momento. Já estive aqui um silhão de vezes, mas é a primeira vez que delineio neste lugar, antes, no máximo, algumas poucas assinaturas para entregadores e prestadores de serviços diversos. Só.

Agora percebo um céu azul esbranquiçado, forrado por nuvens quadriculadamente navalhadas. O sol tenta invadir a janela, mas a penumbra da parede me protege e as cortinas não. Estão abertas. Brancas como a alma de um ser sem pecados, diferentemente de mim. Uma criança, talvez. Gosto daqui. As janelas se abrem para o infinito. Olhar daqui de dentro para o universo lá fora me traz muitas recordações de antes e me aguça um desejo de ir de encontro à natureza, ao passado, às lembranças de tudo outrora vivido. Quero, não posso. Não é um posso, mas não quero. Não, não estou preso a uma cadeira de rodas, tampouco trancafiado na cela de uma prisão, feito um condenado. Sou livre, por opção, porém, aprisionado dentro de mim mesmo, dentro de meu próprio ser, pelo egoísmo.

Gilson Vasco
Enviado por Gilson Vasco em 03/11/2018
Reeditado em 02/12/2019
Código do texto: T6493567
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