NARRATIVA E CINEMA: A QUESTÃO DO DUPLO EM O ANFITRIÃO E O TALENTOSO RIPLEY

INTRODUÇÃO

O presente artigo busca refletir sobre a questão do duplo evidenciada no livro Anfitrião, de Antônio José da Silva e no filme O talentoso Ripley. Vale ressaltar que esse duplo aparece na forma de pequeno outro, configurando-se assim, como EU – instância psíquica organizada de forma coerente, ligada à consciência. A esse eu que a consciência se acha ligada, o eu controla as abordagens, as descargas de excitação para o mundo externo.

O texto-base para a elaboração deste trabalho mostra a relação entre o eu-ideal e o ideal-do-eu tomando como exemplo um bebê no reconhecimento da imagem através do espelho. A partir daí, em consonância aos conceitos apresentados, temos o sujeito que se constitui antes do eu na inscrição simbólica, ou seja, na linguagem e, o eu que se constitui justamente nesta fase do espelho onde há a formação da consciência, em contrapartida à formação do sujeito que está no campo do inconsciente.

Alicerçando-se nessas considerações, este trabalho procura inserir nos estudos do livro Anfitrião, de Antônio José da Silva e do filme O talentoso Ripley, esses conceitos referentes ao eu atrelados aos estudos do estranho e do duplo que se fazem presentes e aduzem provas de que o eu é o outro.

CAPÍTULO 1 – TEXTO: O ESTÁDIO DO ESPELHO

O texto trabalha com o momento de formação do eu citando como exemplo um bebê de seis meses de idade já reconhecendo sua imagem no espelho. Ele tem a palavra que dá sentido às coisas. Lacan faz uma comparação entre o bebê e o chimpanzé. Pela palavra, o bebê se desenvolve, sendo esta, o traço diferencial que os seres humanos têm dos macacos.

A imagem que o bebê tem de si, se dá por meio da fragmentação: pés, mãos, boca... A partir do espelho, ele vê que existe um bebê semelhante a ele, e reconhece esse outro. A experiência do eu em se colocar como o outro é muito marcada na fala da criança. No espelho há o domínio não só do seu corpo, mas do outro que é semelhante a ele. Chega um momento em que o bebê reconhece que aquele outro é na verdade ele mesmo. Segundo Lacan, o outro sou eu.

De acordo com essa estrutura, temos valores do eu como eu-ideal e ideal-do-eu. A relação entre o eu e o outro é sempre destrutiva porque há espaço somente para um.

(...) ideal do eu ou eu ideal, situa-se numa relação essencialmente imaginária em que predomina o reflexo no espelho mediado pela relação com o outro, cuja imagem tem valor cativante. É nesse sentido que o simbólico precede o imaginário, ordenando e organizando o regime das imagens e do sentido. Essas suas instâncias do eu como ideal correspondem aos dois narcisismos: primário (ideal do eu), no qual a identificação se realiza pela incorporação de alguns traços que estão no outro, e secundário (eu ideal), no qual o eu se constitui como objeto pela identificação com a imagem do outro, fazendo com que eu e outro se tornem equivalentes no transitivismo imaginário: o eu é o outro.

(FERREIRA, 2005, p. 33-34)

No eu-ideal o que está em jogo é a imagem que eu tenho sobre mim, que se constitui no estádio do espelho, traduzindo um narcisismo primário, uma dimensão imaginária, limitada e idealizada cuja relação é feita ao narcisismo dos pais, e que dá ao sujeito uma sensação de onipotência. O efeito desses investimentos narcisísticos dos pais na imagem do bebê é que ele mesmo com ela se identifica, passando a nela investir, permitindo que o sujeito ame a si mesmo.

Ao contrário do que se observa no ideal-do-eu: aquilo que eu imagino que o outro é; é quem eu gostaria de ser, gostaria de ter. Há o destaque do outro, isto é, escolho esse outro como o meu ideal-do-eu. Os pais da criança, contudo, não influem somente no lado narcísistico com também nas suas exigências, originando um comprometimento em ter de ser, fazer e cumprir determinadas demandas para ser amado e reconhecido.

CAPÍTULO 2 – LIVRO: ANFITRIÃO OU JÚPITER E ALCMENA, DE ANTÔNIO JOSÉ DA SILVA

O indício primeiro de que haverá uma troca de posições no campo das personagens é evidenciado logo no início do livro. “Mais impossível me parece a mim, Alcmena; pois sempre me pareceu impossível que me visse em teus braços”. (SILVA, 1736, p. 17). A conselho de Mercúrio, o criado, Júpiter resolve saciar seu desejo por Alcmena, transfigurando-se na imagem de Anfitrião, o esposo que se encontrava na guerra dos Telebanos. E, assim, é feita a transformação: Júpiter em Anfitrião e Mercúrio em Saramago, o criado de Anfitrião.

No entanto, o ponto chave deste trabalho é a questão do duplo, porque não foi uma simples troca que ocorreu com o eu de Júpiter e Mercúrio. O que estava em jogo ali, era o outro. A facilidade de Júpiter em se transformar em outra pessoa o fazia mais majestoso, afinal, um Deus podia tudo.

Só tu, Mercúrio, com as tuas subtilezas podias dar em tão subtil ideia, pois com elas já posso chamar-me venturoso; e para principiar a sê-lo, já me vou disfarçar na forma de Anfitrião, e depor a majestade de meus raios: oh quem dissera, que para eu alcançar a formosura de Alcmena, deixe os resplendores do Olimpo!

(SILVA, 1736, p. 13)

O primeiro encontro depois da troca aconteceu entre Saramago e Mercúrio (na forma de Saramago). Aí a questão do duplo torna-se clara. Temos um sujeito (Mercúrio e Júpiter) que se passa respectivamente por Saramago e Anfitrião (objeto).

Saramago – Ora sou criado de vossa mercê: como póde ser teu amo, se ele não tem outro criado, senão dize-me> como te chamas tu?

Mercúrio – Chamo-me Saramago.

Saramago – Saramago? Peor é essa? E eu então que sou, visto isso? (...)

Saramago – Devagar, que cuidarão que é verdade: o ladrão é vossa mercê, que me furtou o meu nome. (...)

Saramago – Pois a Deus, Senhor Saramago.

Mercúrio – A Deus, Senhor coisa nenhuma.

(SILVA, 1736, p. 26 a 28)

O tumulto está por acontecer no momento em que Anfitrião retorna a casa e deixa Alcmena confusa, pois se ele passou a noite em seus braços e cedo foi embora, como retornaria tão logo?

Anfitrião – Alcmena, minha bela esposa, dá-me os teus braços, enquanto mudamente o coração com suspiros explica o alvoroço de sua alegria.

Alcmena – Que é isso, Anfitrião? Tão depressa vieste?

Anfitrião – Estranho muito o modo com que me recebes; parece-te que vim depressa, depois de tão larga ausência? Oh que evidente indício do pouco que me amas!

Alcmena – Não te entendo: tu podes formar queixar contra o meu amor! Não viste esta madrugada em derretidos cristais naufragarem os meus olhos? Tu mesmo, admirando do meu extremo, não julgaste por excessiva a minha fineza? Pois como agora me criminas de pouco amante?

(SILVA, 1736 , p. 40)

A ponto crucial nesta peça é o tão esperado encontro entre aqueles que dividem a mesma mulher, que a desejam. O duplo é marcado pelo desejo de Júpiter em possuir Alcmena, ele quer ter aquilo que o outro tem. É nitidamente expresso ou eu como sendo o outro. A hora mais esperada se dá quando Anfitrião se aproxima de casa e vê Júpiter com sua imagem. “É caso fora da ordem natural, estar eu vendo outro Anfitrião tão semelhante a mim!” (SILVA, 1736, p. 80). Ambos caminham num labirinto onde apenas um pode encontrar a saída.

Segundo a definição lacaniana de que o eu é o outro, a definição do duplo é aqui representada entre Anfitrião e Júpiter. Assim, Todo ideário que as pessoas têm de si mesmas, seus valores, suas características, a psicanálise chama de eu. Sendo assim, o que predomina no eu é a dimensão imaginária do próprio corpo como se ele fosse outro.

CAPÍTULO 3 – FILME: O TALENTOSO RIPLEY

Sabemos que o conceito de estranho na psicanálise associa-se ao assustador e ao mesmo tempo ao familiar, aquilo que nos remete ao conhecido. O estranho é, pois, o retorno do recalcado, isto é, tudo o que o nosso eu, que está no campo do consciente, descarta. Esse tema diz respeito ao fenômeno do duplo.

Segundo Freud, o estranho advém do familiar, do recalcado, e é essa origem que explica a peso de angústia que segue situações e pessoas que transferem para o sujeito o sentimento do diferente, do estranho.

A palavra alemã ‘unheimlich’ é obviamente o oposto de ‘heimlich’ [‘doméstica’], ‘heimisch’ [‘nativo’] – o oposto do que é familiar; e somos tentados a concluir que aquilo que é ‘estranho’ é assustador precisamente porque não é conhecido e familiar. Naturalmente, contudo, nem tudo o que é novo e não familiar é assustador. (...) Algo tem de ser acrescentado ao que é novo e não familiar, para torná-lo estranho.

(FREUD, 1919, v. XVII, I)

O enredo do filme acontece na ida de Ripley à Itália, a pedido do pai de Dickie, no intuito de convencê-lo a voltar para os Estados Unidos. Ao chegar na Itália, Ripley se encanta com o estilo de vida de Dickie e fará tudo para ter uma vida igual à sua. Ripley não se detém diante de nada, nem mesmo do crime – pois ele mata Dickie e passa a viver com sua identidade –, para realizar seu sonho de se transformar em outra pessoa. É, na verdade, algo que se constrói na ilusão de que o outro tem o que lhe falta. No filme há um modo especial de tratamento em que o Outro ocupa e assinala o lugar do sujeito.

A relação marcada no filme O talentoso Ripley mostra a identificação que o personagem principal Tom Ripley tem com seu amigo Dickie. Tom Ripley quer e deseja ser rico e morar no Sul da Itália, isto é, o mesmo que Dickie possui.

Essa relação é acentuada por processos mentais que saltam de um para outro desses personagens - pelo que chamaríamos telepatia -. De modo que um possui conhecimento, sentimento e experiência em comum com o outro. Ou é marcada pelo fato de que o sujeito identifica-se com outra pessoa, de tal forma que fica em dúvida sobre quem é o seu eu (self), ou substitui o seu próprio eu (self) por um estranho.

(FREUD, 1919, v. XVII, II)

Freud confere ainda o caráter de estranho ao duplo, pois este se deve ao fato de ser uma formação psíquica primitiva. O fenômeno do duplo é, portanto, uma duplicação, uma divisão do eu e, nesse caso, há o retorno constante de uma mesma coisa a qual denomina-se retorno do recalcado.

Concluindo, este filme é um retrato caricato do fenômeno do duplo representado através da veracidade dos fatos que ocorrem a um sujeito destituído de qualquer medo e que precisa proporcionar a si mesmo a ilusória sensação de felicidade, baseada na suposição de que o outro a experimenta ou a tem. Ripley, agora se vendo cruelmente diante do desespero por apossar-se de uma identidade que não era sua, mata a única testemunha dos seus atos. Tal atitude parece necessária para garantir a vida desse sujeito que, para investir no eu, imitava sempre o outro.

CONCLUSÃO

Esta análise refletiu sobre o estranho e o duplo a partir das considerações freudianas e lacanianas a partir dos textos estudados em aula.

Procurou-se demonstrar como esses conceitos são abordados na obra O Anfitrião, de Antônio José da Silva e no filme O talentoso Ripley. No primeiro a questão do duplo ganha forma quando o Deus Júpiter transforma-se em Anfitrião, marido de Alcmena. Para saciar o seu desejo, ele resolve desfrutar de sua alta posição, deus, e passa uma noite com sua amada. Seu filho Mercúrio faz o mesmo e se passa por Saramago, criado de Anfitrião. O duplo é na verdade o eu como o outro – o que causa estranheza quando Saramago e Anfitrião se deparam com eles mesmos na transfiguração feita pelos deuses. A questão do estranho também é vista através daquilo que assusta. Num primeiro momento, Saramago se depara com o seu duplo e isso causa estranhamento, isto é, causa um certo medo, um certo horror.

Já no filme o duplo aparece sob o aspecto do ideal-do-eu, na presunção do que o outro possui. O personagem principal deseja obter e alcançar aquilo que o outro tem mesmo que para isso tenha de assassinar sua vítima. Ele se vê como o outro e toma sua identidade após sua morte. Assim, vivencia e experimenta tudo o que desejou, culminando em uma falsa felicidade, pois sua liberdade está em jogo. A identidade tomada sustenta a base teórica apresentada neste trabalho sob o conceito do duplo cujo eu é sempre o outro.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

FERREIRA, Nadiá Paulo. Amor, ódio & ignorância: literatura e psicanálise. Rio de Janeiro: Rios Ambiciosos Livraria e Editora/Contra Capa Livraria/Corpo Freudiano do Rio de Janeiro, 2005.

FREUD. Lo siniestro (1919). Madrid: Biblioteca Nueva, 1973.

LACAN, Jacques. O Estádio do Espelho como Formador da Função do Eu. In: Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.

O TALENTOSO RIPLEY. EUA, 1999

SILVA, Antônio José da. Anfitrião ou Júpiter e Alcmena e Guerras do Alecrim e Mangerona. Rio de Janeiro: A noite Editora S.A, 1736.

Gi Medeiros
Enviado por Gi Medeiros em 17/01/2019
Código do texto: T6553278
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