Luto e melancolia em Sigmund Freud

Luto e melancolia em Sigmund Freud

Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

Sigmund Freud (1856-1939) foi também um exuberante escritor e um leitor compulsivo. Suas concepções e ideias foram ilustradas por vários exemplos colhidos na literatura. Édipo (da peça de Sófocles) é o mais emblemático de todos. Ilustrou também suas teorias com Lady Macbeth, com Hamlet, e com tantos outros. Por outro lado, categorias freudianas são de recorrente uso literário, até por autores que desconheciam os textos do médico de almas de Viena.

É o caso de Machado de Assis, que no conto O Espelho da Alma tratou, objetivamente, de categorias freudianas, a exemplo dos sonhos, enquanto manifestações de desejos. A tristeza também é recorrente tema literário. Nesse sentido, no presente ensaio lembro algumas passagens de um importante texto freudiano, que problematizam a tristeza, sob o ângulo do luto e da melancolia.

Luto e Melancolia é um texto de Sigmund Freud provavelmente redigido em 1915 e efetivamente publicado em 1917. Neste fragmento Freud explicitou e diferenciou essas duas instâncias, luto e melancolia, identificando a natureza patológica desta última.. Em linhas gerais, o luto é circunstância que acompanha a perda de um ente querido. De acordo com Freud o luto não é condição patológica e também não exige tratamento médico. O luto é circunstância superável, após algum tempo. Freud julgava inútil ou mesmo prejudicial qualquer interferência em relação a esse sentimento.

De tal modo, o luto é fato — creio — na maior parte dos entornos culturais que há. Significativamente seria — creio também — como regra, simbolizado pela cor negra. Há convergência entre o substantivo melanos, que em grego nos remete a negro, e a expressão melancolia, que marcaria um estado soturno da alma.

No luto há a perda de um objeto (ainda que seja um sujeito, uma pessoa), enquanto que na melancolia tem-se, segundo Freud, a perda do próprio eu do sujeito. A melancolia tem natureza patológica, fraciona-se em diversas formas clínicas, inclusive no que se refere à mania, que seria seu polo oposto, de onde a bipolaridade, isto é, a oscilação entre a depressão e a euforia.

Substancialmente, no luto a perda é consciente; na melancolia, a perda se processa no inconsciente; em outras palavras, no luto se sabe por quem e por que se chora, na melancolia, queixa-se da perda de não se sabe exatamente o que, e nem de quem. Os traços mentais distintivos da melancolia seriam, para Freud “um desânimo profundamente penoso, a cessação do interesse pelo mundo externo, a perda da capacidade de amar, a inibição de toda e qualquer atividade, e uma diminuição dos sentimentos de autoestima”.

Por outro lado, pode-se encontrar no luto tudo o que se encontra na melancolia, com exceção do abalo de autoestima, que se verifica nos quadros melancólicos. Na melancolia, afirma, Freud, constata-se a diminuição da autoestima; “há um empobrecimento em grande escala do ego”.

E porque o luto permite ampla explicação, vinculando-se objetivamente causa e efeito, é que se afastaria sua natureza patológica. Além do que, o luto é marcado por um caminho, pelo qual o sujeito transcende à dor original. Ainda, outro traço definidor, no luto o mundo se torna pobre e vazio, na melancolia é o próprio eu que vive a mais absoluta miserabilidade.

Freud observou que não há como convencer ao melancólico; o acometido de melancolia não pode ser contraditado. Em outras palavras, não há como se convencer ao deprimido de que não há razões para o sofrimento. A questão é qualitativa, e não quantitativa, ao contrário do que ocorre nos casos de luto.

O melancólico transcende da autocrítica para a auto difamação. É implacável. Há perda total do amor-próprio e, segundo Freud, deve ter havido boas razões para tanto. No entanto, pode haver, nas entrelinhas, uma reclamação contra outra pessoa, que se disfarça na auto difamação. Para Freud, a “mulher que lamenta em altos brados o fato de o marido estar preso a uma esposa incapaz como ela, na verdade está acusando o marido de ser incapaz, não importando o sentido que ela possa atribuir a isso.”

Luto e melancolia guardam relação de similaridade na medida em que desaparecem com o tempo, inclusive sem deixar vestígios. No entanto, a melancolia guarda em si aptidão para se transformar em mania, vingando em espécie de incontida euforia, o que não ocorre com o luto. Entre a melancolia e a mania fixa-se uma instância circular, especialmente marcada pelo fato de que a mania é estado exatamente oposto à melancolia, no que se refere ao quadro de sintomas. O melancólico chora. O maníaco ri compulsivamente.

A melancolia, contemporaneamente traduzida nos chamados estados depressivos é causa importantíssima no absenteísmo. A melancolia é classificada no código internacional de doenças, em todas as suas formas hoje reconhecidas: F.32.0 (episódio depressivo leve), F.32.1 (episódio depressivo moderado), F.32.2 (episódio depressivo grave sem sintomas psicóticos), F.32.2 (episódio depressivo grave com sintomas psicóticos), F. 34.1 (distimia- rebaixamento crônico do humor), entre outros.

Espécie de patologia de nossos tempos, como a histeria o foi no início do século XX, a par das neuroses de guerra, a melancolia é, na essência, o rotulado no quadro proposto por Freud, especialmente em suas constantes comparativas com o luto. Persistem também os episódios de mania, sintetizados por muito euforia, disfarce sintomático do desespero e do desamparo.

E porque o luto e a melancolia são tratados normativamente no espaço relativo às relações de trabalho, com mais frequência, pode-se comprovar a hipótese de certo filósofo francês (Michel Foucault) para quem as patologias da alma justificam-se nos regimes de reclusão e de exclusão humanas.

Categorias freudianas de consciente e de inconsciente, de ego e de id, podem auxiliar na compreensão das ações e omissões volitivas, no quadro geral da responsabilização por nossas ações ou omissões. Mais. Auxiliam na busca da compreensão humana, fazendo de cada um de nós um vigilante seguidor do aviso da entrada do oráculo de Delfos, no sentido de que devemos, antes de qualquer outra coisa, conhecermos a nós mesmos.

Arnaldo Godoy
Enviado por Arnaldo Godoy em 30/11/2019
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