LITERATURA E ARTES AFRO-BRASILEIRAS: REFLEXÕES SOBRE A PRODUÇÃO CULTURAL NEGRA NO BRASIL E SUA POSIÇÃO POLÍTICA

LITERATURA E ARTES AFRO-BRASILEIRAS: REFLEXÕES SOBRE A PRODUÇÃO CULTURAL NEGRA NO BRASIL E SUA POSIÇÃO POLÍTICA

LITERATURA Y ARTES AFRO-BRASILEÑAS: REFLEXIONES SOBRE LA PRODUCCIÓN CULTURAL NEGRA EN BRASIL Y SU POSICIÓN POLÍTICA

Resumo: O presente trabalho é um estudo analítico-bibliográfico e tem como objetivo refletir sobre a condição do negro nas produções das artes literárias, sonoras e visuais dos séculos XIX aos dias atuais com intenção de apresentar os deslizes históricos e socioculturais, mas também constatar que o cenário é transformado a cada nova geração em prol a dias melhores, ressignificação e visibilidade da população afrodescente, com especial atenção a brasileira. Para tanto, buscou-se sustentação teórica em DUARTE (2017), OLIVEIRA FILHO (2013) OLIVEIRA & FORENTINA SOUZA (2006), PROENÇA FILHO (1997) entre outros. O método consistiu em uma revisão bibliográfica acerca dos afro-brasileiros e suas intervenções culturais nas mais diversas formas artísticas no cenário atual e acredita-se que, tal iniciativa reproduzirá novas atitudes e iniciativas positivas de valorização e reconhecimento da importância desse grupo étnicorracial em favor da cultura brasileira.

Palavras-chave: Literatura afro-brasileira; Cultura étnicorracial; Artes contemporâneas; Cultura e história africana e brasileira.

Resumen: El presente trabajo es un estudio analítico-bibliográfico y tiene como objetivo reflexionar sobre la condición del negro en la producción de artes literarias, sonoras y visuales desde el siglo XIX hasta la actualidad con la intención de presentar los resbalones históricos y socioculturales, pero también verificar que El escenario se transforma con cada nueva generación a favor de mejores días, reformulación y visibilidad de la población afrodescendiente, con especial atención al brasileño. Por lo tanto, se buscó apoyo teórico en DUARTE (2017), OLIVEIRA FILHO (2013) OLIVEIRA & FORENTINA SOUZA (2006), PROENÇA FILHO (1997) entre otros. El método consistió en una revisión bibliográfica sobre los afrobrasileños y sus intervenciones culturales en las formas artísticas más diversas en el escenario actual y se cree que dicha iniciativa reproducirá nuevas actitudes e iniciativas positivas para valorar y reconocer la importancia de este grupo étnico-racial en favor de cultura brasileña.

Palabras clave: literatura afrobrasileña; Cultura étnico-racial; Arte contemporâneo; Cultura e historia africana y brasileña.

INTRODUÇÃO

As expressões “literatura negra”, “literatura afro-brasileira”, apesar de bastante utilizadas no meio acadêmico, nem sempre são suficientes para responder às questões propostas por pessoas cujas atividades estão relacionadas com a literatura, a crítica, a educação. Quando discutimos os vários sentidos contidos nessas expressões, utilizamos argumentos construídos a partir da literatura produzida em outros lugares, geralmente Estados Unidos, Antilhas negras e África.

Em relação, por exemplo, à chamada literatura negra africana, as pessoas quase nunca questionam a expressão, pois a consideram adequada, embora desconheçam as implicações que ela traz.

No entanto, quando anunciamos a expressão “literatura negra” ou “literatura afro-brasileira” em referência à produção artístico-literária no Brasil, várias questões são suscitadas, e, para melhor compreensão dos sentidos dessa terminologia, é necessário que nos reportemos a certos acontecimentos relevantes.

A expressão “literatura negra”, presente em antologias literárias publicadas em vários países, está ligada a discussões no interior de movimentos que surgiram nos Estados Unidos e no Caribe, espalharam-se por outros espaços e incentivaram um tipo de literatura que assumia as questões relativas à identidade e às culturas dos povos africanos e afrodescendentes. Através do reconhecimento e revalorização da herança cultural africana e da cultura popular, a escrita literária é assumida e utilizada para expressar um novo modo de se conceber o mundo.

Para muitos teóricos e escritores do Brasil, das Antilhas, do Caribe e dos Estados Unidos, a utilização do prefixo “afro” não consegue evitar os mesmos problemas já verificados no uso da expressão “literatura negra”. Segundo eles, tanto o termo “negro(a)” como a expressão “afro-brasileiro(a)” são utilizados para caracterizar uma particularidade artística e literária ou mesmo uma cultura em especial.

Diante disso, tanto a denominação “negro(a)” como “afro-brasileiro(a)” são vistos como excludentes, porque particularizam questões que deveriam ser discutidas levando-se em consideração a cultura do povo de um modo geral e não apenas as suas particularidades.

No caso do Brasil, por exemplo, se deveria levar em conta a cultura brasileira e não apenas a cultura negra.

Em oposição, outros teóricos reconhecem que a particularização é necessária, pois quando se adota o uso de termos abrangentes, os complexos conflitos de uma dada cultura ficam aparentemente nivelados e acabam sendo minimizados.

Diante dessa perspectiva, o uso da expressão “literatura brasileira” para designar todas as formas literárias produzidas no Brasil não conseguiria responder à questão: por que grande parte dos escritores negros ou afrodescendentes não é conhecida dos leitores e os seus textos não fazem parte da rotina escolar?

Neste sentido, deve-se destacar que o poder de escolha está nas mãos de grupos sociais privilegiados e/ou especialistas — os críticos, os gestores, os políticos etc. São eles que acabam por decidir que autores devem ser lidos e que textos devem fazer parte dos programas escolares de literatura. Por isso, é importante aprofundar um pouco mais a discussão sobre a dificuldade de nomeação da arte e da literatura produzida por autores não “eleitos” pelos sujeitos aqui citados.

É salutar destacar ainda, que mesmo entre os escritores, compositores, cantores, poetas e outros artistas que se assumem como negros, alguns deles muito sensíveis à exclusão dos descendentes de escravos na sociedade brasileira, existe resistência quanto ao uso de expressões como “escritor negro”, “literatura negra” ou “literatura afro-brasileira” etc. Para eles, essas expressões particularizadas acabam por rotular e aprisionar a sua produção literária.

Por sua vez, outros, ao contrário, consideram que essas expressões permitem destacar sentidos ocultados pela generalização do termo “literatura” e outras artes. E tais sentidos dizem respeito aos valores de um segmento social que luta contra a exclusão imposta pela sociedade.

Essas discussões são importantes para que possamos compreender os mecanismos de exclusão legitimados pela sociedade, pois, quando nos referimos à literatura ou outras artes brasileiras, não precisamos usar a expressão “literatura branca”, “música branca”, “poesia branca” e outras adjetivações do tipo porém, é fácil perceber que, entre os textos consagrados pelo “cânone literário”, o autor e autora negra aparecem muito pouco, e, quando aparecem, são quase sempre caracterizados pelos modos inferiorizastes como a sociedade os percebe.

Logo, os escritores de pele negra, mestiços ou aqueles que, deliberadamente, assumem as tradições africanas em suas obras, são sempre minoria na tradição literária do país.

As expressões “literatura negra”, “poesia negra”, “música negra”, “artes negras” e “cultura negra” circularam com maior intensidade na nossa sociedade a partir do momento em que tivemos de enfrentar a questão da nossa identidade cultural.

Acrescenta-se também, o fato de assumirmos as contradições acirradas pelo fato de o Brasil não querer se ver como “um País de uma cultura mestiça e variada” por intervenções culturais inumeráveis, uma verdadeira ausência prática e vivencial de “uma democracia racial”.

Quando as contradições afloraram de forma mais constante, os preconceitos contra os descendentes de africanos tornaram-se mais evidentes, embora tais preconceitos quase nunca sejam realmente contestados, sendo até assumidos como não ofensivos.

2. O CENÁRIO ATUAL E AS TRANSFORMAÇÕES POSSÍVEIS

O homem vive em constante transformação cultural e histórica devido ao modo de vida da sociedade em que estamos inseridos. O autoconhecimento envolve o domínio da afetividade a partir da sua conscientização, pois muitas vezes a falta de percepção e sensibilidade bloqueia o pensamento e ação deixando-nos incapazes de entender o outro em sua singularidade, olhando por este viés é perceptível que o estudo da história e da cultura africana, afro-brasileira e seus descendentes tem refletido em muito no movimento negro, que com toda sua luta, busca sempre modos e ações que possam fazer valer os direitos que estão previstos em leis e constituições.

Podemos compreender como ações afirmativas todo instrumento que fomenta a equidade social proporcionadas aos indivíduos sem exceção, direitos igualitários bem como a proteção legal desses direitos. Falar sobre “literatura negra”, “cultura negra”, “música negra” e outras que carreguem esta adjetivação é também falar sobre a condição social do afrodescendente dentro da sociedade brasileira.

Pode-se traçar um paralelo entre a forma como o negro era mostrado na história e na literatura brasileira desde os primórdios e a maneira como essa figuração foi se transformando, na medida em que os movimentos pela igualdade étnicorracial e social foram se fortalecendo e o afrodescendente pôde assumir a narração de sua própria história.

Frente aos estudos realizados e as trocas de leitura sobre o assunto, percebeu-se que a África é um continente produtor de muitas riquezas artístico-culturais, extensa e variadas, com destaque para a oralidade em geral e, particularmente, a música, a pintura, artes, literatura dentre outros, sendo representada por numeráveis etnias, grupos tribais cada um com sua cultura, diferenciadas dentre elas, a religião que é um dos maiores destaques. E no Brasil, isto se refletiu de maneira exponencial, quando identificamos a entrada desses povos no território brasileiro, trazido pela Coroa Lusitana, a partir de 1539.

No intuito de que haja uma maior e melhor propagação é que em muito se procura mostrar o processo de construção e reconstrução da imagem do negro na literatura brasileira, constantemente retratado como servil e digno de pena, “necessitado” de outra voz que fale por ele, e que a partir da ascensão dos movimentos negros no Brasil, passa a ter sua própria voz.

Obviamente, não se podem ignorar autores, que certamente confirmam que desde o século XVIII já existia uma literatura que soasse a vez desse grupo étnico, conforme afirma Eduardo de Assis Duarte: “não só existe como se faz presente nos tempos e espaços históricos de nossa constituição enquanto povo; não só existe como é múltipla e diversa”. (DUARTE, 2004 p. 01).

Todavia, somente, a partir da década de 50, inspirada pelos movimentos negros dos Estados Unidos e da França, a “literatura negra” no Brasil passa a ter maior visibilidade na sociedade, sendo usada também como instrumento de denúncia contra o desrespeito aos direitos sociais dos afro descendentes. A humilhação e a depreciação da cultura de um povo sempre foi o instrumento mais eficiente de dominação de um povo, muito mais que a violência, que não raro acaba por instigar o oprimido à resistência. No Brasil esse recurso foi amplamente utilizado.

A ridicularização das características físicas, sociais e intelectuais dos escravos negros servia para demonstrar uma suposta inferioridade do negro em relação ao branco, justificando assim a escravidão. Os longos anos de escravidão e as muitas tentativas de apagamento da cultura africana em território brasileiro não conseguiram destrui-la, pois como toda manifestação cultural, especialmente aquelas cujas bases de transmissão são orais, passou por vários processos de ressignificação, mesclou-se a outras influências culturais, resistiu, transformou-se, sobreviveu. Ainda que essas estratégias de dominação tenham deixado graves sequelas nas relações sociais do País, que ainda na atualidade são enormemente visíveis nas várias formas de preconceito.

Não deveria, mas frequentemente, o negro é retratado como incapaz, pobre, feio, ou quando considerado belo, tem forte apelo sexual. São casos constantes na literatura, na música e nos diversos filmes surgidos nos séculos XIX e XX, onde a figura da mulata ou mulato é usada como objeto sexual, a saber, apenas como ilustração:

Na literatura encontramos o “Bom-Crioulo”, romance de Adolfo Caminha publicado em 1895, também considerado como um dos primeiros romances homoeróticos da história da literatura ocidental e tem “Amaro” como o personagem principal. Ele é um escravo foragido em busca do seu reconhecimento e independência frente as adversidades que o destino lhe impôs. Será identificado como o "Bom Crioulo" pelos feitos que a trama lhe submete. “Aleixo”, um adolescente louro e de olhos azuis, será o personagem por quem Amaro se apaixona.

Amaro é descrito como um ex-escravo, extremamente forte, grande e com força sobre-humana, habilidoso, valente e aparenta uns tinta anos de idade, enquanto, Aleixo, aproxima-se dos quinze anos idade, de pele clara, lábios rosados, olhos azuis e um semblante cativante que trairá Amaro com a ex-prostituta, a Dona Carolina, de 38 anos de idade, dona da pensão onde Amaro e Aleixo se hospedam.

O resultado dessa narrativa é o fim trágico de Amaro e Aleixo, o amor impossível por questões de gênero e, possivelmente de cor e o sentimento de rejeição de Amaro são marcas que nos chamam a atenção.

Na música, a marcha carnavalesca, “O teu cabelo não nega”, que teve como título original “Mulata”, composta pelos irmãos pernambucanos, João e Raul Valença, em 1929 e lançada no carnaval de 1932, pelo cantor popular carioca, Lamartine Babo. Embora seja um dos maiores sucessos da história do carnaval brasileiro, também é objeto de controvérsias autorais e de incitação ao preconceito étnicorracial em tempos de iniciativas politicamente correto e combate ao racismo.

O Teu Cabelo Não Nega

O teu cabelo não nega, mulata

Porque és mulata na cor

Mas como a cor não pega, mulata

Mulata, eu quero o teu amor

O teu cabelo não nega, mulata

Porque és mulata na cor

Mas como a cor não pega, mulata

Mulata, eu quero o teu amor

Tens um sabor bem do Brasil

Tens a alma cor de anil

Mulata, mulatinha, meu amor

Fui nomeado teu tenente interventor

O teu cabelo não nega, mulata

Porque és mulata na cor

Mas como a cor não pega, mulata

Mulata, eu quero o teu amor

Quem te inventou, meu pancadão

Teve uma consagração

A lua te invejando faz careta

Porque, mulata, tu não és deste planeta

Quando, meu bem, vieste à Terra

Portugal declarou guerra

A concorrência, então, foi colossal

Vasco da Gama contra o batalhão naval

Lamartine Babo e Irmãos Valença (1932).

O que se quer é o amor da mulata, mas não a sua cor, e podemos apreender que a sua cor também não pode ser passada aos seus descendentes, o que a reafirma apenas como objeto de prazer, mas não de união.

No cinema, os títulos desses filmes não deixam dúvidas quanto à sua conotação de humilhação à mulher, como vemos em filmes como “Uma mulata para todos”, lançado em 1976, no Rio de Janeiro, de gênero comeco-erótico, produzido por Roberto Machado Produção Cinematográfica e dirigido por Ênio Coimbra, onde a personagem

Rosa abandona a cidadezinha em que mora para tentar vida nova no Rio. Trabalhando como manicure, é explorada pelo trapaceiro Juca e o contraventor Arlindão, que a empregam como vedete numa boate. Arlindo, disputando-a com Juca, embebeda-se e oferece Rosa à plateia. Juca o agride e salva a moça, que, embora conservando a ingenuidade trazida do interior, consegue escapar dos malandros cariocas." (Guia de Filmes, 58 In: AB/FIBRA, 2020)

Outra referência é “A mulata que queria pecar”, comédia, lançada em 1977, na cidade de Palmeiras de Goiás-GO, uma produção de Di Mello Distribuidora e Produtora de Filmes, produção de Victor di Mello e Amilton de Freitas e direção de Nelson do Carmo Soares. O enredo envolve

Três casais se encontram em situações diferentes: Bibi e Jonas dão entrada num processo de desquite, por incompatibilidade de gênios; Renato e Márcia levam a vida como podem, adiando o inevitável desfecho de uma separação; Serginho e a noiva estão apaixonados e se preparam para o casamento. Seis meses depois, Serginho convida os amigos Jonas e Renato para sua despedida de solteiro. Após as comemorações, os três amigos se dirigem à casa de Bibi, a fim de apanharem as malas de Jonas, já desquitado. Mas Bibi comemora seu desquite com uma grande festa e Serginho e Renato acabam entrando na orgia. Jonas, que ainda ama Bibi, consegue tirá-la da festa para se reconciliarem poeticamente, de madrugada, na praia. A polícia acaba com a festa e prende todos os participantes. Serginho desiste do casamento e Renato e Márcia se separam, sob os aplausos histéricos da sogra." (ALSN/DFB-LM. In: AB/FIBRA, 2020)

Somente após a década de 70, ou seja, quando o movimento negro já havia se fortalecido no Brasil, uma atriz negra interpreta uma personagem não mais sexual, mas sensual e poderosa, com Zezé Motta no papel de “Chica da Silva”, no filme de mesmo nome.

As próprias heroínas de Jorge Amado, que em um primeiro momento parecem ser exaltadas como mulheres fortes e voluntariosas, sob uma observação mais atenta revelam-se também objetos de luxúria, mulheres noturnas feitas para o prazer, porém estéreis e que nunca são retratadas com filhos ou família.

Reconhece-se que, há bem pouco tempo, tanto na literatura, na poesia, na música, na televisão, no cinema e na mídia em geral, as imagens de negro e de negrura eram sempre modeladas através de vários preconceitos e estereótipos negativos.

Muitos desses preconceitos e estereótipos contra negros e mestiços ainda circulam em nossa sociedade, sendo mascarados ou camuflados. E, de alguma forma, eles incorporam-se à violência explícita contra a população de afrodescendentes, pelo uso de termos pejorativos, de brincadeiras usadas aparentemente sem maldade ou da rejeição explícita a traços do corpo negro.

Essas várias formas de violência demonstram o quanto é difícil para a cultura brasileira lidar de maneira menos problemática com a cor de sua população mais pobre, muito diferente da camada social mais rica, que é predominantemente “não negra”.

Não podemos esquecer da mulher negra idosa, que no “Sítio do Pica-pau Amarelo”, de Monteiro Lobato surge como o estereótipo do atraso, da velha negra ignorante, que acredita nas lendas de sacis e lobisomens e é vencida pela sapiência da serena Dona Benta, detentora do conhecimento empírico, das ciências exatas, que encanta os netos com suas estórias. À Tia Nastácia resta o território da cozinha, onde ela prepara os quitutes que deleitam os jovens sinhozinhos, único local onde é considerada realmente boa no que faz.

Além do escravo melancólico, encontramos também um outro tipo de poesia, em que o escravo é retratado como satisfeito com sua vida em razão de ter algumas “regalias”. Um exemplo desta condição é o poema “A mucama”, do livro “Flores Silvestres”, de Francisco Leite Bittencourt Sampaio, publicado em 1860:

Eu gosto bem desta vida,

Por que não hei de gostar?

A minha branca querida

Não hei de nunca deixar.

Eu gosto bem desta vida,

Por que não hei de gostar?

É sinhô-moço! Que agrado!

É sinhô como não há!

Fiz-me sempre: “Tem cuidado!

Não contes nada à sinhá!

Já nem tenho mais saudade

Da minha terra gentil!

Sou escrava da amizade,

Quero morrer no Brasil.

(SAMPAIO,1860 p.141-148 )

No entanto é importante relembrar que, a despeito do que se tentou incutir na memória do povo, o negro brasileiro nunca aceitou passivamente a situação de desrespeito e violência a que foi submetido. Uma vez que, as revoltas que quase sempre a História relegou ao esquecimento, como a do Malês, a formação de quilombos, e os movimentos sociais em uma história mais recente. A própria perpetuação da cultura e da religião africanas já é exemplo incontestável dessa resistência.

3. MÚSICA, DANÇA, TEATRO E OUTRAS ARTES LITERÁRIAS E SONORO-VISUAIS

Durante o processo da abolição da escravatura, muitas tragédias foram escondidas para que fossem esquecidas por quem teve membros de suas famílias surrados e mortos.

A não aceitação do modo de vida dos negros escravos recém-chegados ao Brasil era motivo para violências de todas as formas. Homens, mulheres, idosos e crianças eram submetidos a castigos físicos, jejuns e perseguições desumanas, fazendo com que se tornassem fortes, capazes de suportar muito mais do que podiam imaginar.

Após a abolição da escravatura, ato realizado sem a menor condição para os negros, pois foram libertos e jogados nas ruas sem a mínima condição para conseguirem sua subsistência, alguns foram obrigados a retornar a trabalhar para seus patrões e os outros tiveram que se virar, aprendendo profissões que não eram bem vistas pelos brancos e que diante disso passaram a ser consideradas de menor importância.

Ainda assim, homens e mulheres negras foram se inseridos em todos os espaços possíveis e imagináveis:

[...] aguadeiro, alfaiate, calafate, campeiro, cangueiro, carteiro, carniceiro, carpinteiro, carreteiro, chapeleiro, charqueador, confeiteiro, copeiro, costureiro, cozinheiro, despenseiro, engomador, ferreiro, jornaleiro, lavadeira, leiteiro, marceneiro, marítimo, padeiro, pedreiro, pescador, pintor, quitandeiro, roceiro, sapateiro, tamanqueiro, tintureiro, torneiro, capataz, capitão do mato, serviços relacionados a livreiros, a possuidores de bibliotecas ou a senhores de engenho incentivadores de certa espécie de artistas”.

(OLIVEIRA, Silvio. Literatura afro-brasileira, p. 45)

Como se pode perceber há inúmeras profissões relacionadas às artes, mas pouco valorizadas na época. Vários escritores e poetas eram descendentes de africanos, mas preferiram esconder suas origens com o intuito de não serem excluídos das confrarias, visto que existia muito preconceito racial naquela época. Logo, era mais viável se calar a enfrentar seus algozes, mas muitos não aceitaram tais condições e se assumiram como negros, mostrando a sua arte, mesmo com a possibilidade de retaliações por parte de brancos, mostrando a força e luta desse povo guerreiro.

O grande mestre da literatura brasileira, Machado de Assis, considerado um dos mais célebres escritores mundiais era descendente de africanos e mostrou que suas origens só lhe trouxeram bons requisitos para abrilhantar suas histórias. Ele é um caso típico de brasileiros que por muito tempo não foi considerado negro, pois um negro não teria a genialidade apresentada por ele.

Outros célebres escritores brasileiros também eram negros e nem por isso deixaram de se tornar clássicos: Cruz e Sousa e Lima Barreto são exemplos de gênios das letras que souberam tão bem escrever sobre o seu povo e, em muitos casos, pedirem justiça para eles. Aos que não se apresentavam como negros era preciso muitos artifícios para driblar o preconceito e muita coragem para se assumir como artista negro

No século XIX, como vimos, mesmo já morando e trabalhando, como escravo ou livre, o negro não era visto e tratado como um brasileiro, ainda era visto como um estranho ou perigoso. O homem negro precisou de muita força para viver longe de seus irmãos e familiares. Mesmo assim, homens e mulheres negros, escravos, ex-escravos ou livres conseguiram contar histórias, cantar versos, escritos ou orais. (OLIVEIRA, Silvio. Literatura afro-brasileira, p. 52)

Essa necessidade de embranquecimento da raça negra, para que a mesma seja aceita acontece ainda nos dias atuais, em pleno século XXI.

Um caso recente foi a peça de teatro em homenagem a grande cantora de samba Ivone Lara que selecionou uma cantora para representá-la no palco, mas ela não tinha o tom de pele nem próximo ao da estrela, sendo preciso uma grande campanha nas redes sociais para que preservassem a alma da cantora. O apelo foi atendido e uma cantora e atriz, parecida com a homenageada foi escalada e está brilhando nos palcos homenageando a grande dama dos sambas de rodas do Brasil.

É importante ressaltar a força da união desse grupo étnicorracial que sempre se fez representar em suas canções, histórias, cantigas e tradições orais. Mesmo com pouca representatividade nas mídias ou em guetos eles souberam se exaltar, principalmente em grandes músicas que representam suas origens, como a letra da música do cantor e compositor Nenéo, “Meu ébano”, que foi tão bem interpretada pela maior intérprete de samba da atualidade, Alcione:

Meu Ébano

É!

Você um negão

De tirar o chapéu

Não posso dar mole

Senão você créu!

Me ganha na manha e baubau

Leva meu coração…

É!

Você é um ébano

Lábios de mel

Um príncipe negro

Feito a pincel

É só melanina

Cheirando à paixão…

É!

Será que eu caí

Na sua rede

Ainda não sei!

Sei não!

Mas tô achando

Que já dancei!

Na tentação da sua cor…

Pois é!

Me pego toda hora

Querendo te ver

Olhando pras estrelas

Pensando em você

Negão, eu tô com medo

Que isso seja amor….

Moleque levado

Sabor de pecado

Menino danado

Fiquei balançada

Confesso

Quase perco a fala

Com seu jeito

De me cortejar

Que nem mestre-sala…

Meu preto retinto

Malandro distinto

Será que é instinto

Mas quando te vejo

Enfeito meu beijo

Retoco o batom

A sensualidade

Da raça é um dom

É você, meu ébano

É tudo de bom!…

(repetir a letra)

Moleque levado

Sabor de pecado

Menino danado

Fiquei balançada

Confesso

Quase perco a fala

Com seu jeito

De me cortejar

Que nem mestre-sala…

Meu preto retinto

Malandro distinto

Será que é instinto

Mas quando te vejo

Enfeito meu beijo

Retoco o batom

A sensualidade

Da raça é um dom

É você, meu ébano

É tudo de bom!…

Importante salientar a importância e influência dos elementos culturais trazidos pelos africanos e que, aos poucos foram incorporados ao nosso cotidiano. Como se esquecer da criatividade deles ao relacionarem seus deuses aos santos da igreja católica para poderem continuar seguindo sua religião, bem como a capoeira, que em forma de dança podiam se defender das agruras que sofriam. E ainda, a culinária em suas iguarias deliciosas que são tão representativas no Brasil.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante do exposto, podemos concluir que os africanos foram de extrema importância para a formação do povo brasileiro e, a partir deles, constituem-se novas formas artísticas e socioculturais associadas à nação brasileira. Impossível de não se registrar, os sambas de roda, maculelês e afoxés, cantigas de rodas que atravessaram o oceano e junto com eles trouxeram a história desses povos guerreiros que resistiram e ainda lutam para ser representado e ouvido.

Precisamos reconhecer que na contemporaneidade ainda há muito preconceito e ele só acabará quando a população e os governantes derem vez e voz a todos os povos e suas culturas, sem distinção da cor da pele, origem, religião, gênero e orientação sexual ou classe socioeconômica, mas pela qualidade e comprometimento de cada um em prol do avanço coletivo. Nisto se constitui uma grande nação, visto que a democracia é oriunda do respeito as diferenças e não nos faz calar, enquanto a ditadura é um processo contrário, o qual nenhum de nós merece viver.

Quantos talentos musicais, atores/atrizes, poetas, escritores/escritoras, enfim, artistas estão escondidos nesse rincão brasileiro? Até quando se mostrará apenas a pele branca como a vitoriosa e suprem? Não seríamos todos seres humanos?

Os negros e as negras podem e devem chegar onde quiserem, mas para isso é preciso que gerem oportunidades. Talentos possuem, faltam chances para se tornarem visíveis.

Desse modo, a literatura, a poesia, o cinema, as mídias etc., independente da sua adjetivação, são meios importantíssimos para a conquista definitiva do respeito de uma sociedade que, por não admitir ser preconceituosa, atrasa ainda mais o longo processo de igualdade de direitos.

Referencias

CB/FIBRA. A mulata que queria pecar. cinemateca brasileira. Base de dados da Filmografia Brasileira, Disponível em: http://bases.cinemateca.gov.br/cgi-bin/wxis.exe/iah/?IsisScript=iah/iah.xis&base=FILMOGRAFIA&lang=p&nextAction=lnk&exprSearch=ID=024883&format=detailed.pft. Acesso em: 12 abr.2020.

_____________. Uma mulata para todos. Base de dados da Filmografia Brasileira, Disponível em: http://bases.cinemateca.gov.br/cgi-bin/wxis.exe/iah/?IsisScript=iah/iah.xis&base=FILMOGRAFIA&lang=p&nextAction=lnk&exprSearch=ID=024814&format=detailed.pft. Acesso em: 12 abr.2020.

DUARTE, Eduardo de Assis. Úrsula e a desconstrução da razão negra ocidental (Posfácio). In: REIS, Maria Firmina dos. Úrsula: romance; “A escrava”: conto. 6 ed. Belo Horizonte: Editora PUC Minas, 2017

OLIVEIRA FILHO, Pedro de. A justificação da desigualdade em discursos sobre a posição social do negro (1990-2000). São Paulo. Psicologia Política, ‎2013

OLIVEIRA, Sílvio. Séculos de arte e literatura negra. In: Forentina Souza, Maria Nazaré Lima(orga.) Literatura afro-brasileira. Salvador: Centro de Estudos Afro-Orientais; Brasília: Fundação Cultural Palmares, 2006.

PROENÇA FILHO, Domício. A trajetória do negro na literatura brasileira. In: Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – Negro brasileiro negro, nº 25, 1997, pp. 159-77.

SAMPAIO, Francisco Bittencourt. Flores Silvestres. Rio de Janeiro: Garnier Livreiro-Editor, 1860.