UNDERGROUND GOSPEL

Underground crente prova que o rock in roll também é de Deus e bandas buscam espaço no disputado mercado fonográfico evangélico

A década de 1980 foi uma época de divisor de águas para a música brasileira. Se antes, o tropicalismo das composições de Caetano, Gil e Os Mutantes – ainda ritmado por resquícios da bossa nova – era considerado o suprassumo das emissoras de rádios e cuja verve artística já estava bem enraizada no ritmo e gosto popular, a explosão do rock in roll com um jeitão bem brasileiro, impulsionada pelo surgimento de bandas como Legião Urbana, Titãs, Paralamas do Sucesso e Barão Vermelho, criou uma nova tendência musical para o país e fez a cabeça de milhões de adolescentes e até mesmo dos mais crescidinhos.

Três décadas mais tarde, o rock ainda continua bastante popular e, apesar da grande variedade de estilos e gêneros que diversificam e enriquecem a música contemporânea, muitos desses roqueiros ainda permanecem em plena atividade e bem fiéis ao estilo que os consagraram. Contudo, engana-se quem pensa que foram somente as raízes do rock secular que começaram a germinar na música brasileira. De carona com a nova tendência musical que fascinava a chamada geração coca-cola, poucos anos mais tarde músicos munidos de guitarras e bíblias começaram a entrar em cena com uma proposta alternativa, tão inovadora quanto inusitada para a efervescência juvenil daqueles tempos, mas bem mais edificante. A ideia era fazer rock in roll sim mas, sobretudo, usando a música para falar do amor de Deus. Foi essa a aposta de bandas como Fruto Sagrado, Resgate e Katsbarnea, além do Oficina G3, que com o tempo conseguiu até mesmo romper a então intransponível barreira existente entre o meio gospel e o secular. “Nossa maior motivação em montar o Oficina G3 foi a própria igreja, pois praticamente vivíamos dentro de um ministério – a Igreja Cristo Salva, do pastor Tio Cássio –, que tinha a visão de utilizar a música como ferramenta evangelística”, recorda o guitarrista Juninho Afram, que não esconde de ninguém ter buscado inspiração em bandas de rock internacional, inclusive seculares. “Além de cantores e grupos gospel como Petra, Stryper, Phill Keaggy e Michael Smith, musicalmente também fomos influenciados por Deep Purple, Van Halen, Pink Floyd, Yes, entre outras”, complementa o músico.

Considerada uma das precursoras do rock cristão, até hoje o Oficina G3 se mantém na sua estrada evangelística, embora alguns percalços e mudanças, como a saída do vocalista PG há cinco anos, tenham ocorrido ao longo dessa trajetória de sucesso. Mas se por um lado a banda é quase que uma unanimidade para a galera evangélica que curte um agito, o caminho para se chegar a esse reconhecimento não foi nada fácil, e tem sido o mesmo trilhado – na maioria das vezes sem sucesso – por uma infinidade de grupos de garagem que também almejam, profissionalmente o reconhecimento como músicos de talento, e espiritualmente uma transformação no coração de milhares de jovens.

Apesar de ser apenas um bebê quando Juninho Afram e companhia deram os ares da graça, o paulistano Rafael Leandro Martins cresceu ouvindo Oficina G3 e Katsbarnea, e analisa com uma maturidade não tão condizente com sua pouca idade – ele tem apenas 23 anos – a situação atual do mercado fonográfico e afirma que a realidade da música evangélica é bem diferente de um passado assim não tão distante. “Durante a explosão do rock nacional, não havia tantos grupos cristãos e o mercado não era tão saturado. O Oficina G3 foi uma das pioneiras do gênero, e com isso abriu caminho para outros grupos”, comenta ele que, há cerca de sete anos, reuniu alguns amigos e montou a banda JMV (Jovens Mais que Vencedores), com o propósito de unir duas paixões que julga essenciais para sua vida pessoal: a música e a fé. E é essa mesma fé que move o compositor e vocalista na árdua batalha de encontrar uma gravadora evangélica que acredite na veracidade de seus princípios cristãos e aposte na qualidade e potencial no grupo. “Estou ciente que é muito difícil, principalmente porque a gente não tem nenhum ‘padrinho’ para dar aquele empurrãozinho; além disso, ultimamente tem surgido excelentes bandas e não há espaço para todas nas gravadoras”, lamenta o músico, que afirma que suas influências musicais provêm de uma mescla entre a música gospel – como as do próprio Oficina, Resgate e Katsbarnea – com outras seculares, como as do Capital Inicial e Jota Quest.

É nessa fusão que se concentra o ponto de equilíbrio musical dos jovens roqueiros, cujo trabalho evangelístico ainda é de formiguinha, mas que um dia pode – e por que não? – trilhar o mesmo caminho percorrido por outros músicos com a já carreira consolidada perante o público cristão. Enquanto a tão aguardada oportunidade não chega, o JMV continua ensaiando na Igreja Palavra Fiel de Vila Formosa, zona leste de São Paulo, e se apresentando por aqui e ali. No repertório não podem faltar canções como Jesus vai Voltar, O Amor do Pai e Prosseguir, compostas pelo próprio Rafael e que, ao menos para os irmãos que congregam na mesma igreja e que costumam acompanhá-los, já se tornaram sucessos consagrados.

Embora não falte dedicação e aptidão musical ao JMV, assim como para muitos grupos que se encontram nas mesmas circunstâncias, na opinião do produtor musical carioca Rogério Vieira, o talento é importante mas não é o diferencial que as gravadoras evangélicas procuram. “Em primeiro lugar todos devem ter uma direção clara e um chamado de Deus, o que já representa meio caminho andado. Depois que vem o talento, a graça, a determinação”, afirma ele, que se ainda não é membro, diz ter um carinho enorme pela Comunidade Internacional da Zona Sul, do Rio de Janeiro, e que curte muito acompanhar o surgimento e o desenvolvimento do trabalho de bandas novas, inclusive internacionais. “Os Nazarenos fizeram um grande trabalho na época em que apareceram; e fora do Brasil há diversos grupos com raízes cristãs, como P.O.D, Mute Math, Family Force 5, e até mesmo o Evanescence”, enumera.

“Não tenho muita ciência dos trâmites do meio secular, mas posso dizer que, entre todas as dificuldades, a falta de recursos é a que se sobressai no meio gospel, desde a inacessibilidade de equipamentos de maior qualidade até a falta do incentivo financeiro. Basicamente não se investe em alguém que não seja suficientemente conhecido a ponto de garantir uma boa vendagem”, opina o cantor, compositor e também produtor musical Paulo César Baruk.

Rock itinerante – Embora os sete membros – quatro homens e três mulheres – da banda Ungidos sejam estudantes e assembleianos, essas não são características preponderantes para se fazer parte do grupo, que lá da longínqua Santa Izabel do Pará, cidade localizada nas proximidades da capital Belém, também sonha em conquistar espaço e reconhecimento no disputado meio fonográfico evangélico. Para os paraenses, o que importa mesmo é que todos sejam fiéis e se sintam preparados e engajados em proclamar o nome de Jesus por onde quer que se estejam. Por enquanto, até que possam fazer do trabalho evangelístico local um ministério itinerante, a banda tem se apresentado nos cultos e eventos promovidos pela própria Assembleia de Deus, além de aniversários e festas voltadas para os evangélicos da região. “A princípio tivemos a ideia de formar uma banda só por parentes, incluindo uma vocal da própria família. Depois, por necessidade de um melhor suporte musical convidamos mais um guitarrista e duas backing vocais (vocais de apoio), que não deixam de ser nossos irmãos em Cristo”, conta Jadiel Nascimento, baixista e responsável pela divulgação virtual da Ungidos; além de músico, o jovem de 20 anos também estuda Tecnologia em Redes de Computadores. Com apenas um ano de existência, a batalha agora é afinar bem a equipe. Para isso, eles passam horas e horas ensaiando no quarto do baterista que, apesar de bem espaçoso, não chega a ser muito apropriado para acomodar todos os integrantes.

Influenciado pelo estilo musical do Oficina G3 e seu ex-vocalista PG, além do carioca Quatro Por Um, a banda paraense diz que procura não se envolver muito com composições seculares, embora admita que, neste caso, a música instrumental também tem colaborado bastante para a formação do gosto e estilo musical de cada um dos membros e, consequentemente, do grupo como um todo. Se para atingir a qualidade musical apropriada é imprescindível, além da técnica, muito esforço e total entrosamento entre os envolvidos, para eles há alguns aspectos a serem considerados que ainda distanciam uma banda gospel de uma secular, sobretudo em relação aos princípios. “Uma banda verdadeiramente gospel deve ter a nítida preocupação de manter uma ética cristã, às vezes até em detrimento da questão harmônica”, continua Jadiel, que iniciou seu aprendizado musical há cerca de três anos ao se mudar com a família para o Rio de Janeiro. Desviado espiritualmente na época, foi na capital carioca que ele diz ter feito novamente as pazes com Cristo, para a satisfação dos pais que também são evangélicos. Agora, de volta à sua terra natal, aquela acepção evangelística que une vocação musical com aprendizado cristão parece estar bem enraizada no baixista e nos demais integrantes da Ungidos. “Não há meio melhor do que a música para se falar do amor de Deus e das maravilhas que ele tem realizado conosco”, complementa.

Jesus underground – Apesar do acentuado aumento da população evangélica no país, crescimento que também contribui para aquecer o comércio de produtos cristãos, é inegável que os investimentos aplicados no mercado fonográfico convencional ainda estão muito equidistantes do que é investido na produção de música gospel. Também é de conhecimento geral que, vez por outra, um ou outro cantor ou até mesmo grupo, acaba-se migrando para o gênero evangélico, seja pela vivência de uma verdadeira transformação espiritual ou até mesmo movido por meros interesses comerciais ou pessoais.

Para Paulo Baruk, talvez o único demérito das bandas cristãs em relação às seculares seja mesmo a disparidade de investimentos de empresários e gravadoras entre esses dois universos fonográficos. Contudo, ele se mostra completamente satisfeito pelo caminho trilhado por ele próprio como músico cristão, e pela qualidade musical alcançada por uma grande gama de profissionais que também professam a fé em Deus por meio da música. “Na maioria das vezes, as dificuldades são compensadas pelo talento que é abundante e totalmente perceptível nos músicos cristãos. Arrisco dizer que em muitos estilos musicais, nem toda a diferença de recursos aplicados às bandas populares conseguem torná-las melhores do que as bandas de músicos evangélicos espalhados pelo país”, emenda.

Já, na opinião de Rogério Vieira, o crescimento do mercado fonográfico cristão nem sempre é sinônimo de qualidade, tanto que ele qualifica a música evangélica produzida no Brasil atualmente como regular para boa, embora concorde que muita coisa evoluiu nos últimos anos. “Eu digo regular para boa por conta das composições. Quanto à parte técnica e sonoridade, avançamos muito e às vezes até mais do que o meio secular”, compara. Para os grupos que ainda engatinham na música cristã, como o paulista JMV e o paraense Ungidos – citados nesta reportagem, e que hasteiam a bandeira de tantas outras bandas que ainda permanecem nas garagens –, o produtor musical deixa um recado: “Não abram mão de seus princípios, sigam sempre aquilo para que foram chamados, pois os que começam na obra hão sempre de terminá-la”. Afinal, para ele os undergrounds conseguem chegar em lugares onde também existem almas e ninguém mais é capaz de alcançar, exceto, é claro, Jesus Cristo. “O Mestre sempre foi underground”, finaliza.

Agradeço se puder deixar um comentário.

JDM

José Donizetti Morbidelli
Enviado por José Donizetti Morbidelli em 03/08/2009
Reeditado em 04/10/2022
Código do texto: T1734695
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2009. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.