Inezita Barroso: A Incomparável

O Brasil, como já dizia Caetano Veloso, tem ouvido musical que não é normal. Por isso tem produzido ao longo do tempo um sem número de gênios musicais que, somente não entram na galeria de gênios mundiais por serem brasileiros e não norte americanos ou europeus. Nossa música popular constituiu, de fato, a música brasileira suplantando e impondo-se diante de tentativas, quase sempre frustradas, independentemente de suas qualidades, de uma música ao estilo erudita, de linhagem europeia. Entre nossos muitos gênios musicais estão algumas brilhantes cantoras, capazes de ombrear-se em estilo, colocação de voz, afinação, entoação, timbre e interpretação com as melhores do mundo.

E dentre essas inúmeras cantoras que nosso país tem gerado, destaca-se de forma soberana e bem menos louvada, ouvida e saudada como merecia, a nossa Inezita Barroso. Cantora de voz possante e inebriante, contralto capaz de dar vida e identidade própria a qualquer composição que interprete. Além disso, é também instrumentista, violeira, em terra na qual a viola é “coisa de homem”, ou pelo menos era, na época em que iniciou sua carreira nos idos da década de 1940, muito embora já aos sete anos estivesse cantando. Não se pode esquecer que é também eminente pesquisadora e atilada folclorista, muito embora, o mais correto fosse dizer que ela é uma antropóloga, uma etnóloga da música brasileira, ao modelo de um Mário de Andrade, a quem desde os nove anos ela esperava passar enquanto andava de patins, já que o mestre do modernismo era seu vizinho. Inezita não limitou-se a cantar músicas e gravar discos. Ela devotou-se a um estilo, à construção de um registro, na verdade, mais que um registro um monumento: a música do povo do Brasil.

Sua atuação artística estendeu-se também para o cinema onde atuou em vários filmes recebendo por duas vezes o troféu de Melhor Atriz do Ano. Também recebeu por duas vezes o Troféu de Melhor Cantora do Ano. Mas, nunca foi eleita ou reverenciada como “Rainha do Rádio”. Passada a época áurea do Rádio, esse fato fez com que suas gravações fossem ficando em segundo plano, e ela, com aquela voz de beleza tal, que nos remete aos píncaros do assombro, começou a ter dificuldades para gravar discos a partir de 1962, momento em que a música popular brasileira sofria mais e mais a invasão de ritmos estrangeiros, especialmente norte americanos, que acabariam por impor novos rumos à nossa música, modernizada à fórcepes, pela estilização do jazz, via Bossa Nova, e, pela adaptação do rock and roll, via Jovem Guarda. E Inezita, A Incomparável, que não cedeu aos apelos da comercialização mais fácil, e assim, acusada de intransigente, foi perdendo espaço no palco principal, ocupado mais e mais por vozes fáceis e de repertório repetido e esvaziado, ainda que nesse período de sua atuação, tenha convivido com cantoras também de alto quilate, passando por Angela Maria, Dalva de Oliveira, Marlene, Bibi Ferreira, Emilinha Borba, Elizeth Cardoso, Elis Regina, Maria Bethânia, Gal Costa, Wanderléa, e outras mais ou menos votadas.

Todas elas, contudo, num ou noutro momento, tiveram seus maravilhosos cantos atrelados ao interesse comercial. Isso muito contribuiu para dificultar a avaliação crítica de uma Diva como Angela Maria, embora tenha rendido bons frutos para outras como Emilinha Borba, Gal Costa, Wanderléa e Elis Regina, por exemplo.

Inezita foi às entranhas desse estranho país a que conhecemos como Brasil. Procurou registrar a alma dele, transmutada em cantigas, aboios, cateretês, toadas, baiões, tiranas, sambas e modas de viola, entre outros ritmos, alguns já infelizmente sepultados pela voracidade do progresso. São ritmos que, se ouvidos, não serão computados como sendo ritmos argentinos, norte americanos, espanhóis, africanos ou portugueses, mas sim, brasileiros, embora em muitos deles durmam influências de múltiplos lugares.

Inezita cantou sempre o rio de seu lugar, naquilo que de mais claro, belo, puro, rítmico e singelo. Cantou seu país, terra de múltiplos cantares, ao qual emprestou sua voz possuída pela fúria da beleza em obras como: o cantar amazônico, de “Minha terra”, de Waldemar Henrique, o caipira, como na “Moda da pinga”, de Cunha Júnior, entre outros que se dizem autores dela, ou na “Moda da onça”, tema tradicional por ela recolhido. Em cantares seresteiros e saudosistas, como na valsa “Lampião de gás”, de Zica Bergami. Ou na “Congada”, de Inara Simões de Irajá, ou no “Nhapopê”, do folclore gaúcho, ou na valsa “Ismália”, poema de Alphonsus de Guimarães musicado por Capiba. Os exemplos são muitos e se estendem por sua carreira afora. Inezita é essencialmente a cantora do que é nosso. Sim, nosso, por mais paradoxal que possa parecer uma afirmação dessas em tempos de globalização. Seu trabalho artístico é o mais fiel retrato de um Brasil em fase final de liquidação, vencido pelo progresso e pela globalização. É por isso que sua arte, lamentavelmente, só encontra espaço em canais de TV específicos. Talvez se seus discos tivessem sido mais divulgados, e tivesse sido ela para cantar e ser ouvida mais e mais através de canais de ampla penetração como as grandes redes de TV comerciais, talvez fôssemos hoje outro país, mais consciente de si mesmo e de sua identidade, certamente bem mais próximas do canto de nossa terra, do que do canto com cheiro de plástico e hambúrguer. Há mais de trinta anos apresentando na TV Cultura o programa “Viola, minha viola”, tornou-se referência na música sertaneja tradicional e madrinha de muitos artistas e duplas sertanejas tornando-se a ida a seu programa dominical um verdadeiro troféu para os artistas.

Além de tudo, Inezita tem sido a “Artista” no sentido mais amplo dessa palavra, pois atuou como atriz, cantora e violeira. Seu canto é da mesma essência do canto do uirapuru, ou do iambu chitão, ou do sabiá. É essencial. É da substância pura que permite ao Ser Humano transformar a realidade em arte, por mais difícil que seja, como, aliás, já percebera o escritor Mário de Andrade, definir “O que é arte”.

É urgente que Inezita Barroso tenha sua obra tocada nas escolas públicas, nas Universidades, nas Rádios e nas TVs, para que o povo brasileiro olhando-se num espelho veja o retrato do que já foi e muito do que ainda é, mesmo sem saber.

Seus mais de trinta discos, entre LPs e Cds deveriam obrigatoriamente ser remasterizados em CDs e distribuídos à população nas estações de trens, nas filas das barcas e dos ônibus, ou no desacerto do metrô. Suas gravações deveriam estar presente em MP 3 e todas as novas possibilidades de veiculação de música. Era o mínimo que o país precisava para se conhecer um pouco mais. Coisa que ela mesma tentou, ao viajar pelo país com recursos próprios e dirigindo um jeep, recolhendo danças e cantigas. Somos felizes de termos nascido e viver em um país que possibilitou o surgimento de uma cantora, ou melhor, de uma Artista, como Inezita Barroso, “A Incomparável”.

Paulo Luna
Enviado por Paulo Luna em 06/10/2014
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