Análise da música Realidade Virtual (Eng. Hawaii)

A música Realidade Virtual está no álbum Filmes de Guerra, Canções de Amor da banda Engenheiros do Hawaii. A letra e a música são de autoria de Humberto Gessinger. Geralmente, associamos realidade virtual à ambiente virtual, que é uma simulação do mundo real num sistema informatizado. Na canção, realidade virtual assume uma conotação um pouco diferente. Isso fica mais claro quando se observa que a expressão traz, em si, um paradoxo. Realidade alude àquilo que realmente existe; virtual, por sua vez, segundo o dicionário Hoauiss, é aquilo que existe apenas em potência ou como faculdade, não como realidade ou com efeito real.

Realidade virtual, na canção, considerando que seu tema principal é a fé, pode ser definida como a realidade criada, interpretada, deduzida a partir de nossos sentidos, valores e crenças. Com efeito, a partir de nossas crenças, o que existe no mundo real passa a ter um significado diferente ou significado nenhum. A realidade passa a ser interpretada a partir do filtro de nossas crenças, criando o que a canção chama de realidade virtual. O problema é que essa realidade interpretada pode ser ficta, e as ilusões de ótica estão aí para provar que nem sempre podemos confiar no que vemos. Essa realidade deduzida pode ser múltipla, contraditória e, não raro, excludente. Para um homem-bomba, explodir a si mesmo, matando quem estiver ao seu redor e que não compartilha sua visão de mundo, é um ato de fé, consentâneo com sua realidade virtual; para a maioria de nós, felizmente, é um ato desprezível e que desborda das margens da racionalidade.

Como dito, o tema da canção cinge-se às crenças, precisamente àquilo que constitui, na maioria das vezes, sua característica inelutável, mas nem sempre percebida; àquilo que George Orwell, no clássico 1984, nominou duplipensamento: aceitação simultânea de duas ideias contraditórias. Fé cega e pé atrás é uma atitude que os que professam determinada crença costumam adotar para si: fé cega: acreditar, sem questionar, em tudo o que respeita à fé que aceitaram; pé atrás: duvidar e negar tudo o que não respeita à fé que professam ou que se refere à outra crença. Humberto sintetiza esse pensamento com maestria no verso “é preciso saber de tudo [fé cega] e esquecer de tudo [pé atrás]”.

Vejamos trechos da canção em que esse binômio aparece:

“é preciso saber de tudo”: quem tem fé cega acredita que toda a verdade lhe foi revelada;

“e esquecer de tudo”: tudo o que contradiz ou não se coaduna com essa verdade deve ser posto de lado;

“tá legal, eu desisto: tudo já foi visto/ olhos atentos a qualquer momento: é preciso acreditar”: fé cega; tudo já nos foi revelado; a verdade é o que professamos; olhos atentos é uma atitude de vigilância, que pode ou não remeter a estados teocráticos nos quais aqueles que não se alinham à verdade são perseguidos;

“tudo bem, eu acredito: tudo já foi dito/ olhos atentos a todo movimento: é preciso duvidar”: no início, fé cega; no final, pé atrás em relação às outras crenças;

“viver não é preciso e nem sempre faz sentido”: para quem tem fé cega, até o valor da vida é relativizado (vide os homens-bomba); ademais, enquanto viver é incerto, contingente (ninguém sabe o que vai acontecer no próximo minuto) e nem sempre faz sentido, a fé cega traz segurança, paz, certeza do que aconteceu e do que está por vir.

Um momento interessante da canção é o trecho referente às duas janelas. Na primeira, uma paisagem real é detalhada: “a neblina encobre o Cristo e a lagoa se ilumina/ com edifícios de cabeça pra baixo e refletores do Jockey Club”. Nesta paisagem real, note que a lagoa se ilumina com luzes artificais, e o Cristo, que segundo a crença cristã é a luz do mundo, está encoberto pela neblina. A luz não vem do Cristo.

“Na outra janela, o sol sempre brilha/ o risco é calculado: videoguerra, videoreinodoscéus, videoguerra, videoreinodoscéus”. Nessa janela, a paisagem é virtual: o sol sempre brilha. Isso remete à realidade deduzida a partir da crença em que prevalece a imutabilidade. O risco é calculado refere-se à ideia de que, sob o manto da fé, tudo está sob controle.

Essa outra janela refere-se também à televisão que, assim como a obra "Isto não é um cachimbo", de René Magritte, não é a realidade, mas uma reprodução desta. Videoguerra é uma referência aos filmes de guerra, daí afirmar-se que o risco é calculado: trata-se de uma realidade ficta. A expressão filmes de guerra, inclusive, nomina o próprio álbum em que contida a música analisada. Videoreinodoscéus se reporta à presença, cada vez maior, dos programas religiosos na tv e pode significar tanto vídeo reino como vide (do latim, veja) o reino dos céus.

Por último, o destaque é a melodia da canção. É que Humberto Gessinger, genial como sempre, fez um arranjo que remete à música sacra, o que acaba se constituindo num paradoxo sonoro com a letra da canção que trata não de apologia, mas de uma crítica sagaz à fé. O Humberto é o cara.

Walter Schel Raposo
Enviado por Walter Schel Raposo em 16/05/2015
Código do texto: T5243470
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