Mestre Marçal: Glória e Memória do Samba

O samba, na concepção clássica de compositor Nelson Sargento, “agoniza, mas não morre”. Essa capacidade paradoxal é fruto certamente de toda a longa história de resistência do povo negro no Brasil, que incluiu, além das armas de fogo e armas brancas, toda a metamorfoseante resistência cultural.

Em 1937, escrevia Arthur Ramos em seu estudo “Religiões Negras”: “São esses os instrumentos musicais dos negros na Bahia. Eles revelam, na sua variedade e na sua complexidade (ver o berimbau), a invencível tendência da raça para a música instrumental, - tendência que as diligências policiais têm procurado sistematicamente abafar por meios violentos...”. Na mesma década em que ainda era perseguido pela polícia, o samba, síntese, talvez, da musicalidade negra, tornava-se música nacional. A contribuição do samba na construção do que hoje em dia se conceitua como “música popular brasileira” é inestimável. Apesar disso, ainda hoje, meados da segunda década do século XXI, a memória da música popular, em que pese seu avanço substancial nas últimas décadas, ainda não contempla devidamente aqueles pioneiros, em especial os artistas negros, que continuam, de modo geral, principalmente ao se observar sua contribuição musical, contemplados com notas de roda pé.

Quantos mestres e bambas jazem na poeira do esquecimento? É o que acontece, incrivelmente, com o Mestre Marçal. Foi Diretor de bateria da Escola de Samba Portela durante vinte e cinco anos. Seu trabalho à frente da Escola de Samba azul e branco de Madureira foi uma síntese entre a tradição herdada de seu pai, Armando Marçal, um dos formatadores do samba, tal qual este seria reconhecido a partir dos anos 1930. E que fez parte do grupo de fundadores da Escola de Samba Deixa Falar, para muitos, a primeira escola de samba a ser criada. Mestre Marçal deu seguimento a essa herança, atuando à frente da bateria da Portela. Multiinstrumentista, dominava os segredos de todos os instrumentos de percussão. Aos 9 anos de idade, começou a participar ativamente do mundo do samba, tocando tamborim na Escola de Samba Recreio de Ramos, da qual seu pai era vice- presidente. Em data imprecisa, possivelmente após a morte do pai, em 1945, passou pela Escola de Samba Unidos da Capela, e, posteriormente, pelo Império Serrano, até fixar-se na Portela. Seu instrumento preferido era o surdo centrador, elemento central da sessão rítmica. Em 1987, gravou o LP “A Incrível Bateria de Mestre Marçal”, no qual apresentou um por um e depois todos juntos, os instrumentos que compões a bateria de uma Escola de Samba, além de interpretar 7 sambas-enredo que se tornaram clássicos.

Mestre Marçal fez também a difícil ponte entre o samba em suas mais profundas raízes e a chamada MPB, linha da música popular brasileira formada e consolidada na virada das décadas de 1960 e 1970. Tocou com quase todos os grandes astros: Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil, e outros.

Gravou diferentes discos nos quais cantava e estava à frente de sua “Incrível bateria”; também registrou diversos sambas-enredo clássicos, ao quais deu sua interpretação privilegiada, seja na força de sua voz, ou na cadência de sua bateria. Vinte e um anos depois de sua morte, já quase não se fala em Mestre Marçal e seus discos não foram reeditados. Para ter acesso a suas gravações é preciso uma atenta e dedicada pesquisa. Quando, na verdade, seus discos deveriam estar sendo tocados constantemente em emissoras de Rádio e Televisão, e seu nome reverenciado a cada carnaval, assim como os nomes de tantos outros sambistas relegados ao esquecimento. Mestre Marçal é uma lenda a ser contada e recontada por todos até o dia em que sua obra brilhe e seja cultuada na intensidade que merece.

Paulo Luna
Enviado por Paulo Luna em 02/06/2015
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