HOMOSSEXUALIDADE, RELIGIOSIDADE E POLÍTICA: O PODER POLÍTICO DOS GÊNEROS EXCLUÍDOS – UMA ANÁLISE HISTÓRICA A PARTIR DO FILME “MILK, A VOZ DA IGUALDADE”

HOMOSSEXUALIDADE, RELIGIOSIDADE E POLÍTICA: O PODER POLÍTICO DOS GÊNEROS EXCLUÍDOS – UMA ANÁLISE HISTÓRICA A PARTIR DO FILME “MILK, A VOZ DA IGUALDADE”

Gabriela Costa Faval

Resumo

O filme “Milk, a voz da igualdade” é ambientado na cidade de San Francisco, no ano de 1973 e relata os últimos anos do ativista gay Harvey Milk, seu início como lojista no bairro católico-irlandês do Castro, até a ocupação do cargo político de Supervisor da cidade, quando se confronta com o extremismo religioso e a truculência policial contra os homossexuais. Nesse período Nova York vivenciava o início de um processo de “limpeza moral” organizada por grupos religiosos com apoio político. Entre prisões arbitrárias, revoltas crescentes ocorridas diariamente em bares homossexuais e os acordos políticos que negociavam direitos civis essenciais, o movimento gay de San Francisco se constitui como força ativa de resistência, mobilizando outros estados da Califórnia. A partir do contexto histórico representado no filme e da análise das frentes surgidas em defesa e contrárias aos direitos homossexuais, objetiva-se, neste artigo, compreender a constituição dos gays e mulheres como partícipes e lideranças de ambos movimentos, os objetivos religiosos, culturais e sociais de ambos e a afirmação do poder político de cada um. Ao longo da história da humanidade, mulheres e homossexuais sempre foram considerados gêneros inferiores e, portanto, privados de direitos e com espaço social restrito, mas, antes mesmo do surgimento dos movimentos sociais que colocaram em pauta as questões femininas e homossexuais, ambos conseguiam criar estratégias sociais e políticas que lhes garantiram maior visibilidade e permitiram a luta por direitos civis.

Palavras-chave: Homossexualidade; Religiosidade; Política; Gênero;Sexualidade.

Abstract

The film "Milk, the voice of equality" is set in San Francisco in 1973 and recounts the last years of gay activist Harvey Milk, its beginning as a shopkeeper in Catholic-Irish neighborhood of Castro until the occupation of the function political city supervisor when confronted with religious extremism and police brutality against homosexuals. In this period New York was experiencing the beginning of a process of "moral cleansing" organized by religious groups with political support. Among arbitrary arrests, increasing daily riots in gay bars and political agreements dealing essential civil rights, the gay movement of San Francisco is constituted as an active force strength by mobilizing other states California. From the historical context represented in the film and the analysis of fronts emerged in defense and contrary to the rights homosexuals, objective, in this article, understand the constitution of gays and women as participants and leaders of both movements, religious, cultural and goals both social and the assertion of political power of each. Throughout history, women and homosexuals have always been considered inferior genres and thus deprived of rights and restricted social space but, even before the emergence of social movements that put on the agenda the female and gay issues, both could create social and political strategies that guaranteed them greater visibility and allowed the fight for civil rights.

Keywords: Homosexuality; Religiosity; Politics; Gender; Milk.

1. INTRODUÇÃO

Em 1933 inicia-se em Berlim uma “caça às bruxas” contra o homossexualismo. Instituições literárias tem seus livros recolhidos e queimados em represália ao “bolchevismo sexual” que afirmava ser a prática homossexual uma perversão facista. A sequencia de fatos resultou no assassinato de Ernst Röhm, um dos líderes da S.A (primeira milícia nazista) e conhecido por suas práticas homossexuais. Qualquer resquício de tolerância aos homossexuais alemães se encerrava com ele. A partir desse momento, os homossexuais alemães e tudo o que estivesse relacionado a eles, sofreria perseguições maiores e mais rígidas que os próprios judeus, durante o Terceiro Reich, como afirma Kurtz:

Enquanto os soldados alemães, com seus ‘belos cabelos’, suas ‘faces bronzeadas’ e seus ‘olhos de gelo’ ampliavam os domínios da Alemanha nazista, o desejo e a prática homossexual eram varridos do território ariano com a mesma truculência eficiente que condenaria os judeus europeus, os doentes mentais e os ciganos. A capital alemã fora, até a ascensão de Hitler, não apenas a ‘Berlim Imoral’ - título de um guia alternativo publicado em 1930: tratava-se da ‘Metrópole Gay’ da Europa e sede da primeira organização do mundo a combater a intolerância sexual. (KURTZ, s/d, p.1-2)

As leis anti-semíticas não foram derrubadas com o fim do regime nazista e muitos homossexuais presos no Terceiro Reich foram obrigados a concluir as penas impostas por Hitler, mesmo após o fim da Segunda Guerra. Saídos do holocausto, eles descobriram que estavam e permaneceriam sem direitos por tempo indeterminado. Isto fica claro na citação de Pierre Paolo Passolini por Kurtz (2001), do livro “As últimas palavras do Herege”, de Duflot (1983),

É claro que, em nossas sociedades, o extermínio dos homossexuais, como o dos judeus e dos ciganos, em nome da pureza racial, é, no momento, impensável; mas adesqualificação moral, por todos os meios, substitui a exclusão pelo triângulo rosa e o Lager. O homossexual continua a viver num universo concentracionário, sob o olhar dos mirantes da moral dominante. Farei notar que, depois da guerra, os sobreviventes do triângulo rosa foram os únicos a não ter benefícios das reparações que foram dadas aos outros deportados. É uma omissão terrivelmente significativa. (KURTZ, 2001, s/p. apud Pier Paolo Pasolini in As Últimas Palavras do Herege, DUFLOT, 1983. s/p)

Após a liberação dos prisioneiros da II Guerra, o Governo Militar Aliado Alemão revisou as leis e decretos nazistas, abolindo grande maioria deles, mas não modificou em nada o Parágrafo 175, que criminalizava qualquer ato indicativo de prática ou desejo homossexual, inclusive uma simples troca de olhares. Isto fez com que os homossexuais que se encontravam restritos aos campos de concentração, permanecessem detidos, cumprindo as penalidades impostas pelo nazismo.

A continuidade das proibições legais contra a homossexualidade na Alemanha escondeu o fato de que os homossexuais foram vítimas de perseguição Nazista. Em Junho de 1956, a Lei da Alemanha para Reparação de vítimas do Socialismo Nacional declarou que o internamento de um homossexual em um campo de concentração não qualifica a pessoa para receber indenização. (BALAN, 2012. s/p)

Em 1969 a homossexualidade foi permitida para maiores de 21 anos, mas a abolição definitiva do parágrafo 175 só se deu em Maio de 2002, quando, em fim, foi reconhecida a condição de vítimas de todos os homossexuais aprisionados durante o regime hitleriano. As primeiras manifestações da luta homossexual haviam surgido anteriormente ao nazismo, mas foram reprimidas drasticamente com ele.

Trinta e seis anos depois da perseguição alemã, a cidade de Nova York enfrentava pequenos conflitos entre a polícia e a comunidade gay que freqüentava os espaços noturnos dos bairros novaiorquinos. Nesse contexto, a cidade de São Francisco se destacava como “paraíso gay”, comportando 90% de moradores masculinos, muitos provenientes de dispensas militares sob a justificativa da homossexualidade, passando a residir no bairro Castro, onde abriram diversos pontos comerciais. Segundo Stearns (2010),

Com poucas mulheres nas cidades e menos ainda nas minas, os homens olharam uns para os outros para buscar todo tipo de conforto. Os poucos saloons, pensões e clubes ficavam lotados de homens, que viviam muito próximos uns dos outros e ainda tinham que dividir todo tipo de intimidade, do banheiro aos cobertores. A população gay de São Francisco sofreu impacto semelhante, mais tarde, outra vez, com a segunda Guerra. Na época, todo militar americano suspeito de ser homossexual era enviado para a cidade, para ser avaliado por uma junta que decidiria se ele continuaria ou não na carreira. Entre 1941 e 1945, quase 10 mil gays e lésbicas foram dispensados do serviço militar – e muitos ficaram por lá. Criaram assim, perto da baía, uma vizinhança gay friendly. Durante a década de 70, muitos gays abriram negócios no bairro de Castro. Foi quando despontou a imagem de Harvey Milk. (STEARNS, 2010. p, 274)

O fato que iniciou uma grande mudança para os homossexuais de Nova York, ocorreu em 28 de junho de 1969, quando policiais à paisana entraram ao bar gay Stonewall Inn e expulsaram 200 pessoas, mas foram recebidos na saída com pedras e garrafas. Essa reação deu início ao chamado “Gay Power” que desencadeou uma série de protestos, em diversos departamentos de Nova York, contra a discriminação de homossexuais. Entidades civis, Organizações Não Governamentais, jornais e revistas foram fundamentais para alavancar e fortalecer os protestos em vários estados norte-americanos.

A figura de Harvey Milk, um judeu nascido em Nova York que se muda para o Castro objetivando não esconder mais sua condição homossexual vem à tona contra a força policial excessiva e injustificada. Inicialmente ele segue o caminho dos demais, abrindo uma loja de fotografia, mas depois se depara com situações de perseguição policial direta aos bares e indivíduos gays e se insere diretamente na mobilização da luta em prol dos direitos homossexuais.

Harvey Milk percebeu na comunidade gay, um poder inicialmente comercial e posteriormente político, que exigia posicionamentos. A palavra de ordem era “assumir-se”, pois acreditava que para ter direitos civis reconhecidos era preciso ter visibilidade e iniciou uma campanha para mostrar ao resto do estado o que realmente era e como agia a comunidade gay que se restringia ao bairro Castro. Mas como os homossexuais se garantiram socialmente antes das primeras manifestações do movimento gay?

Por outro lado, por detrás dos movimentos religiosos surgidos na década de 60, são identificadas mulheres que respaldavam a “defesa da moral e da família”, em uma contrapartida ao movimento feminista que, também, ganhava notoriedade.

Em oposição às leis que impediam a discriminação dos homossexuais, surgiam nomes como Anita Bryant e John Briggs, fundamentalistas religiosos que se opunham à causa gay e à concessão a eles de direitos civis.

Anita Bryant era um personagem criado pela mídia local, surgida de concursos de beleza (muito relevantes na época) e de comerciais televisivos, que ganhou notoriedade ao fazer falas associando a prática homossexual à promiscuidade e o risco desta para as crianças norte-americanas. Defendia, assim, um conceito de família tradicional onde, ironicamente, o papel da mulher se restringia ao lar, no entanto, ocupava espaços e se destacava em meios onde a grande maioria das mulheres não se fazia presente. E a pergunta é: como e porque uma mulher atingiu tanta notoriedade em uma sociedade patriarcal? Em que momento estas mulheres surgiam? Como chegaram a essa liderança?

Para Hobsbawn (1998), “o que se manifesta como imutável e auto-reprodutor não é somente o resultado do enfrentamento do processo constante e complexo de tensões internas e externas, mas muitas vezes produto de transformação histórica”(p. 186), ou seja, não podemos analisar a homossexualidade e o feminismo como questões da atualidade, sem compreender as origens das transformações sociais que desencadearam tais processos.

Dessa forma, a partir das situações relatadas pelo filme “Milk, a voz da igualdade”, pretende-se analizar historicamente estas duas forças sociais de oposição e defesa aos direitos civis homossexuais, a constituição de ambas enquanto poderes políticos e culturais e os interesses individuais e coletivos dos homens e mulheres inseridos em ambas frentes.

2. Estado e Religião: a manutenção de poderes

As grandes religiões tiveram muito impacto sobre a sexualidade, principalmente no favorecimento a novas “justificativas e normas para padrões já estabelecidos”, como afirma Stearns (2010, p. 19), a exemplo disso está a visão sobre a homossexualidade.

O advento da agricultura traz consigo a primeira mudança para as mulheres. Há amplos indícios de que as primeiras sociedades tinham mulheres com um papel ativo de participação sexual e com próprio poder de barganha. A necessidade de regulação do prazer sexual surge a partir da, também, necessária manutenção da ordem social e da sobrevivência econômica. A agricultura trouxe a ideia da propriedade privada, da posse de terras que seriam passadas aos descendentes...mas quens eram os descendentes? Era necessário garantir o pertencimento dos filhos que nasciam e, para isso, restringiu-se a mulher ao papel doméstico e reforçou-se a prática da monogamia.

A agricultura trouxe a reboque alguns tipos de regras concernentes à propriedade. Nenhum grupo estava disposto a trabalhar para arar a terra, cavar poços ou instalar sistemas de irrigação sem ter garantias de propriedade. [...] Os historiadores já especularam que, com a propriedade, aumentou, por sua vez, a importância em se determinar a paternidade dos filhos. [...] O que está claro é que as sociedades agrícolas rapidamente começaram a adotar medidas que ajusdassem a asseverar a paternidade, por meio do desenvolvimento de novas regras para controlar a sexualidade feminina...(STEARN, 2010, p.31)

O controle da sexualidade feminina gerou os primeiros conflitos de desigualdade entre os gêneros, visto que as leis e normas aplicadas a elas não eram sequer semelhantes às aplicadas à reputação masculina. De forma geral, todas as normas impostas à sexualidade tinham relação direta ou indireta com as mudanças econômicas decorrentes da agricultura ou com questões religiosas relacionadas ao controle da natalidade. Ainda segundo Stearns,

Em termos mais básicos, a crescente especialização da economia, em última instância incluindo a introdução do dinheiro, estabeleceu condições em que mulheres (e ocasionalmente também homens, quando se tratava de propósitos homossexuais) podiam vender préstimos sexuais. As prostitutas talvez fossem as únicas mulheres independentes da dominação masculina, no controle da própria sexualidade. (ibdem, p.43)

A agricultura, através de guerras tribais e da prática da escravidão, ocasionada pela ampliação das sociedades agrícolas, deu surgimento à prostituição tanto masculina quanto feminina. A prostituição detinha características religiosas, em algumas comunidades, sendo relacionada a deuses e deusas, como é o caso do antigo Israel, onde evidências apontam para a existência de “prostitutas sagradas” (p.44). Na Grécia e em Roma a prostituição foi vista como uma forma de manutenção do casamento, evitando o adultério. O inegável era a liberdade sexual que estes indivíduos detinham, o que lhes permitia não submeter-se às regras morais da época e ainda negociar suas atividades e concessões sociais.

O comportamento das mulheres era item necessário de regulação para garantir a fidelidade e a geração dos próprios filhos, por parte dos maridos.

Posteriormente às comunidades agrícolas, a valorização da virgindade e, portanto, uma rigorosidade maior quanto ao confinamento das mulheres, se torna essencial para a realização de bons casamentos e a formação de famílias. Não havia necessidade de regular as práticas homossexuais, que eram consideradas, aparentemente, normais, mas possuiam um caráter instrutivo e político, restrito aos homens públicos da elite.

As mudanças em torno das regras morais parecem ter surgido ainda na antiga Roma que, de certo modo, fazia oposição a algumas práticas sexuais gregas.

Duas mudanças, contudo, são em particular dignas de nota: uma opinião ligeiramente mais elevada sobre as mulheres, embora ainda em um arcabouço patriarcal, e o resultante interesse no prazer sexual feminino, tanto quanto no masculino, além de uma desaprovação, amplamente difundida, mas não uniforme, do homossexualismo, por vezes tido como sintoma de depravação grega, que os robustos romanos não deveriam imitar. (STEARNS, 2010. p.64)

Mesmo após o declínio governamental, Roma continuava exercendo grande influência, desta forma a cultura erótica passou a seguir os ditames romanos. Assim, os deuses incorporam certos complementos às suas funções religiosas, como por exemplo Vênus, que passa a ser chamada de Afrodite, antes deusa do amor e da beleza e, agora, incluíndo a proteção ao casamento virtuoso e às prostitutas.

O registro das prostitutas e a aprovação de leis de família que incluiam medidas que visavam amenizar os abusos cometidos pelos maridos contra as esposas, foram o começo de algumas das principais mudanças no controle da sexualidade de homens e mulheres.

Paralelamente na Índia e na China o comércio sexual passou a ter destaque, surgindo a compra e venda de dançarinas, artistas e mesmo de concubinas. As maiores cidades da Índia contavam com bordéis supervisionados pelo governo regional e gerando coleta de impostos. Os líderes e homens mais importantes pagavam salários a prostitutas que os acompanhavam em suas viagens e, por sua vez, passavam a ser vistas como pessoas poderosas por sua força sexual, quase divindades. (fundamentar)

A queda dos grandes impérios e o incentivo à atividade missionária, espalharam pelo velho mundo o “catolicismo romano”, o budismo e o islamismo. As novas crenças em expansão buscaram minimizar e regular a sexualidade. Também foram aplicadas novas penalidades para os desvios sexuais, que passaram a ser considerados crimes contra Deus e uma grave perversão contra os desígnios humanos.

A ascenção dessas religiões favoreceu o Estado a fortalecer regras mais antigas, como por exemplo as leis contra o adultério ou o divórcio. A cultura e os costumes passam a ser compreendidos como leis e, muitas vezes, se concretizam na forma de leis por serem considerados imutáveis, como afirma Thompson:

Se, de um lado, o “costume” incorporava muitos dos sentidos que atribuímos hoje à “cultura”, de outro, apresentava muitas afinidades com o direito consuetudinário. Esse derivava dos costumes, dos usos habituais do país: usos que podiam ser reduzidos a regras e precedentes, que em certas circunstâncias eram codificados e podiam ter força de lei. (THOMPSON, 1998, p.15 – destaques do autor)

A principal via de transmissão desses valores e costumes era a oralidade, principalmente nas comunidades rurais, havendo uma variação muito leve de costumes entre elas. A partir do fortalecimento do comércio de produtos, as mulheres passam a ter preço atribuído e, em muitas comunidades, a “venda de esposas”, como cita o autor, passa a ser difundido. Embora fossem tolerados certos desvios de conduta, além do limite estipulado pela sociedade eram impostos castigos.

Essa evidência pode mostrar que, embora os desvios de conduta fossem toleráveis até certo ponto, além desse limite a comunidade impunha aos transgressores suas expectativas herdadas com respeito ao papel dos cônjuges e à conduta sexual. [...] As normas defendidas não eram as mesmas proclamadas pela Igreja ou pelas autoridades; eram defendidas dentro da própria cultura plebéia, e os mesmos rituais de desonra usados contra um notório transgressor das regras de conduta sexual podiam ser aplicados contra o fura-greve, contra o proprietário rural e seus couteiros, o inspetor de tributos, o juiz de paz. (Ibden, p.18)

Para Stearns (2010), o cristianismo veio com maiores restrições e com uma restrição maior ao sexo, mesmo no âmbito matrimonial. São Jerônimo orientava que as filhas fossem educadas para manter a virgindade até o casamento, mas dizia, também, que o excesso de sexo, mesmo entre marido e mulher, era um “erro espiritual” (p.84).

Os altos índices de doenças e mortandade deram ênfase à luta do cristianismo contra o “desperdício da semente” (destaque do autor), aqui entendida como sendo o esperma, já que não havia conhecimento sobre a existência dos gametas femininos, o que teve reflexos sobre a prática homossexual. As ideias difundidas pelo cristianismo tiveram ação direta sobre a prostituição, a cultura sexual e a homossexualidade, limitando as representações públicas do sexo, como a arte, que passou a ter orientação mais religiosa.

A prostituição, inicialmente criticada e condenada pelo cristianismo, passou a ser aceita em algumas cidades, tendo sido, inclusive, abertos bordéis municipais. Já a homossexualidade teve uma oposição muito mais dura por parte do cristianismo e, também, do Estado, que passou a estabelecer punições para os casos de atividade homossexual. O advento da peste negra, no século XIV, aumentou os esforços de associação do sexo à procriação, causando maior rigor contra a homossexualidade. Aqui é preciso ressaltar as afirmações de Thompson (1998) quanto às regras legitimadas pelo povo. Para o autor, “o povo retorna com frequência às regras paternalistas de uma sociedade mais autoritária, selecionando as que melhor defendam seus interesses” (p.19), ou seja, a cultura popular geralmente resiste às inovações impostas pela elite comercial, mas quando a inovação ameaça os seus interesses, ela se aferra às normas do passado, tornando-se rebelde em defesa de suas tradições.

Para John Thompson (2011), “essas regras, códigos, convenções são, geralmente, aplicados em uma situação prática, isto é, como esquemas implícitos ou indiscutíveis para a geração e interpretação de formas simbólicas” (p.186). Elas fazem parte de um cotidiano e, portanto, são compartilhadas por outros, estando sempre abertas a correções e sanções por parte de outros indivíduos.

Em 1400 o Sacro Império Romano incorporou a pena de morte para as lésbicas ao seu código penal em 1532 e, apesar de todas as regras e normas morais estabelecidas e reforçadas pelo cristianismo, a sociedade permanecia, clandestinamente, com suas práticas. (autor)

No século XVI, emerge na Europa um novo padrão familiar com o propósito de proteger a propriedade campesina controlando o número excessivo de filhos gerados. O homem passou a se casar por volta dos 27 anos e as mulheres um pouco mais jovens. Com isso, a quantidade de filhos diminuia, além disso, como afirma Stearns (2010), “uma substancial minoria das pessoas mais pobres, 20% da população, jamais se casava, porque não tinha acesso à terra e dependia, a vida toda, do trabalho assalariado” (p.113). Esse era o real objetivo do controle da sexualidade, garantir a ordem econômica e a manutenção das novas divisões sociais emergentes.

Dentre as questões que motivavam um olhar restritivo às questões sexuais, cita-se o fato de médicos e porta-vozes da classe médica, darem apoio aos grupos mais conservadores, defendendo a ideia de que muitas práticas atingiam a saúde e igualando a importância de sua função à dos padres e sacerdotes.

Muitos doutores, ávidos por um novo status e fonte de renda, buscaram claramente se beneficiar da reivindicação de um novo papel em questões sexuais. O resultado foi uma crucial inovação nos tipos de práticas sexuais colocados sob os holofotes para escrutínio. (STEARNS, 2010. p.158)

O Estado vitoriano trouxe consigo uma nova moralidade, muito mais restritiva às práticas sexuais, substituindo as igrejas, cujo poder estava em declínio. O vitorianismo atacou o aborto, a prostituição, o adultério e modificou as características do casamento. O papel da mulher exigia a castidade absoluta e uma submissão total, inclusive no âmbito privado do matrimônio, onde o prazer sexual lhe era negado. A retidão moral imposta pelo vitorianismo fundamentou-se em uma nítida divisão de classes baseada em padrões sexuais, onde os pobres e as minorias raciais passaram a ser mal vistos devido à sua frouxidão moral e grande número de filhos. Essa divisão de classes perdurou e se intensificou, mesmo após o século XIX, quando o vitorianismo passou a enfrentar as pressões por transformações sexuais.

A “polícia do sexo”, implantada em 1920 por John Edgard Hoover, então chefe do FBI, foi uma das mãos de ferro do Estado sobre as questões da sexualidade. Segundo a jornalista Thereza Pires (2012), Hoover era especializado em dissolver movimento de liberação homossexual e, apesar de racista e homofóbico, era negro e homossexual.

Hoover iniciou suas atividades perseguindo comunistas e estrangeiros ilegais, mas teve destaque maior na luta contra as relações interraciais (e lideranças do movimento negro, como Martin Luther King) e na perseguição a homossexuais, contra os quais empenhou todas as suas forças. Comissões de inquérito eram instauradas a seu pedido e carreiras eram arruinadas sob sua investigação, principalmente se o investigado estivesse envolvido em escândalos sexuais.

A base de seu poder repousava nos arquivos secretos que detalhavam a vida de todos os personagens da política americana. Para manter-se à frente do FBI no governo de John Kennedy, usou a informação de que o presidente se encontrava regularmente com a amante do mafioso Sam Giancana. O prontuário de Martin Luther King estava repleto de nomes, endereços e até o preço de prostitutas - Jacqueline Kennedy, a primeira dama, foi informada disso. (Eduardo Graça – Aventuras na História, 2012)

Hoover guardava um acervo impressionante de escutas, fotografias e documentos considerados eróticos e pornográficos, de autoridades públicas, políticos e artistas que eram chantageados por ele em troca do abandono das funções e cargos públicos. Hoover e a “polícia do sexo” permaneceram à frente do FBI por 48 anos, apoiados por 6 presidentes e sendo considerados “a cara da América”.

Os anos 50 trouxeram à tona outra personalidade combatente da “obscenidade”. Charles Keating, um campeão de natação dos anos 40 que se torna ativista anti-pornografia entre as décadas de 50 e 70, veio a ser o precurssor dos movimentos religiosos. Keating fundou a Comissão dos Cidadãos por uma Literatura Decente e começou a palestrar para pais e outros grupos contra os perigos da pornografia. Para ele, a pornografia tinha origens comunistas e estava diretamente ligada à delinquência juvenil. Por seus discursos e tendo a aprovação de 80% da população, Keating assumiu a Comissão Presidencial sobre Obscenidade e Pornografia pelo presidente Nixon.

Em sua campanha pela moralidade da sociedade, Keating foi responsável pela apreensão e destruição de diversos livros e filmes e por boicotar um relatório de sua própria comissão que concluia que a pornografia não se relacionava à criminalidade e à delinquência.

Keating teria apresentado sua oposição dizendo:

Numa altura em que a disseminação da pornografia atingiu proporções de epidemia em nosso país e quando a fibra moral de nossa nação parece estar desfazendo rapidamente, a necessidade desesperada é para iluminação e controle inteligente dos venenos que nos ameaçam -. não à declaração de falência moral inerente à revogação das leis que têm sido a defesa de pessoas decentes contra o pornógrafo para o lucro. Pode-se consultar todos os especialistas que ele escolhe, pode escrever relatórios , fazer estudos, etc., mas o fato de que corrompe obscenidade se encontra dentro do senso comum, a razão ea lógica de cada homem. (Como o Sexo mudou o mundo – documentário. Canal History 2. Episódio 2)

A partir desses conceitos defendidos por Keating, não demorou muito para que os homossexuais se tornassem seu alvo central. Keating atribuia aos homossexuais uma perversão de comportamento sob a qual ele concluía objetivar uma “sedução dos inocentes” infinita. As ações de Keating tinham amplo apoio político devido a altas doações feitas aos que apoiassem sua causa e só foram contidas quando ele foi investigado e condenado por fraude, extorsão e conspiração, em 1992.

Anita Bryant surge, no final dos anos 60, com um discurso contrário aos direitos civis homossexuais e duras críticas à prática e ganha a adesão popular, espaço midiático e apoio político da bancada tradicionalista de Miami. Uma mulher defendendo o papel amoroso e dócil das mulheres, restrito ao meio doméstico e em um casamento sagrado e indissolúvel, como sendo a prática correta para Deus era, no mínimo, contraditório para um contexto onde os direitos de igualdade entre mulheres e homens começavam a ser discutidos. Mas não podemos pensar em Anita Bryant como uma voz isolada. Segundo Thompson (2011),

[...] a maneira como um discurso é interpretado por indivíduos particulares, sua percepção como um “discurso” e o peso a ele atribuido estão condicionadas ao fato de que essas palavras foram expressas por esse indivíduo, nessa ocasião, nesse ambiente, e de que são transmitidas por esse meio (um microfone, uma câmera de televisão, um satélite); mudando os elementos deste ambiente – suponhamos, por exemplo, que as mesmas palavras sejam expressas por uma criança para um grupo de pais admirados – as mesmas palavras adquirirão um sentido e um valor diferentes para aqueles que as recebem (p. 192)

Porquê a compreensão desses fatos se faz necessária e não apenas a análise atual do movimento homossexual? Todos os aspectos citados pelo autor, não são aspectos que podem ser compreendidos como traços estruturais e sistêmicos, pelo contrário, devem ser compreendidos a partir do processo, das instituições e contextos sociais dentro dos quais os discursos são proferidos, transmitidos e recebidos, sem omitir-se a “análise das relações de poder, formas de autoridade, tipos de recursos” (p.192). Assim,

Em grande medida, as regras e convenções que dirigem muitas das ações e interações na vida social são implícitas, não formuladas, informais, imprecisas. [...] Assim, a aplicação de regras e esquemas não pode ser entendida como uma operação mecânica, como se as ações estivessem rigidamente determinadas por elas. Ao contrário, a aplicação de regras e esquemas é um processo criativo que, frequentemente, envolve um certo grau de seletividade e julgamento, e no qual as regras e esquemas podem ser modificados e transformados no processo mesmo de sua aplicação. [...] As instituições sociais podem ser entendidas como conjuntos específicos e relativamente estáveis de regras e recursos, juntamente com as relações sociais que são estabelecidas por elas e dentro delas. (THOMPSON, 2011, p.196)

O que se percebe é que, se não houvesse um interesse das autoridades e das religiões, em delimitar a divisão de classes dentro das sociedades, em uma real disputa de poderes e demarcação de autoridades, muitas regras e normas sociais não seriam reforçadas pelos discursos e apoiadas pela população.

Aqui entra uma problemática que se encontra presente desde as mais remotas civilizações: a diversidade. Pensar em uma sociedade, predispõe, desde a antiguidade, pensar uma homogeneidade inexistente, mas imposta como real e necessária para que a almejada igualdade seja concreta. Nisto nos remetemos a Dayrell (1996) quando pergunta “por que (e sobretudo para quem) a diversidade cultural é um problema” (p.40), tendo-se em conta que elas emergem como problemas sempre que grupos ou instituições se empenham em equiparar as diferenças existentes em determinado espaço, sejam elas de hábitos, visões de mundo ou valores.

Segundo Candau,

As relações culturais não saõ relações idílicas, não são relações românticas, eslas estão construídas na história e, portanto, estão atravessadas por questões de poder, por relações fortemente hierarquizadas, marcadas pelo preconceito e discriminação de determinados grupos. (CANDAU, 2011, p.23)

Uns são bons, os verdadeiros, os autênticos, os civilizados, os cultos, os defensores da liberdade e da paz. Os “outros” são maus, falsos, bárbaros, ignorantes e terroristas. [...] Caso nos sintamos representados como integrantes do polo oposto, ou internalizamos a nossa maldade e nos deixamos salvar, passando para o lado dos bons, ou nos confrontamos violentamente com estes. (Ibden, p.29)

Para Moreira & Câmara (2008), negros, mulheres e homossexuais estão entre os grupos sociais alvos de “inaceitáveis discriminações” e que, ao longo do tempo, vem se dando a compreensão, através das conquistas e lutas travadas por estes, que “as diferenças que os apartam dos ‘superiores’, ‘normais’, ‘inteligentes’, ‘capazes’, ‘fortes’ ou ‘poderosos’ são, na verdade, construções sociais e culturais que buscam legitimar e preservar privilégios” (p.39). desta forma, os discursos negativos contra os homossexuais, além de igualá-los à condição feminina de inferioridade, tornava-se positivo para a construção da masculinidade, aspecto supervalorizado nas sociedades antigas e perpetuado pelos conceitos religiosos.

3. Os homossexuais nas sociedades: estratégias de resistência

Segundo Stearns (2010), por volta de 500 a.C., surgiu na região de Mileto uma indústria de manufatura de “consolos” (pênis de madeira revestidos com couro almofadado) usados com azeite de oliva. Era então, umas das primeiras formas de confrontar o que seria um comportamento respeitável para a sociedade da época.

Na história da homossexualidade, uma das sociedades mais comentadas no tocante a esta prática é a antiga Grécia. Como afirma Stearns (2010), a arte e a literatura gregas frequentemente faziam “alusões a desejos e relacionamentos homossexuais, às vezes citados como aspectos importantes na boa educação de cidadãos do sexo masculino” (p.58).

A educação grega baseava-se na “tutoria e no apadrinhamento”, quando um mestre mais velho se tornava tutor de um rapaz da elite, por meio de acordos com os próprios pais. O objetivo para o mestre era usar a prática como válvula de escape para as restrições sociais impostas na mulher, já para o menor era receber a instrução necessária em filosofia e política que lhe permitiriam, futuramente, ocupar seu posto como cidadão grego e senador. Ainda segundo o autor, esta prática não excluía o casamento, a geração de filhos e a heterossexualidade exigidas socialmente:

As relações daí provenientes eram complicadas, envolvendo tutoria e apadrinhamento, bem como sexo. E não havia a noção de que os resultados eram exclusivos ou definitivos: normalmente os homens mais velhos eram casados e suas atividades com os jovens aprendizes eram outra válvula de escape. Por sua vez, supostamente os rapazes, mais tarde, se voltariam ao casamento e às atividades heterossexuais. (STEARNS, 2010, p.59)

Percebe-se que a homossexualidade era vista como uma forma de transmissão de conhecimentos entre os homens, excluindo as mulheres, ideia esta reforçada por Stearns ao afirmar as preocupações do filósofo Aristóteles com a existência de homens passivos – homens estes, claramente rotulados de homossexuais – mas que via, na homossexualidade ocasional “uma boa maneira de garantir que as mulheres não tivessem nas mãos poder em demasia” (ibden, p.60).

Roma não apresentava uma freqüência tão significativa nas práticas homossexuais, quanto Grécia. Esta se restringia mais à relação senhor e escravo, como forma de dominação. Porém, ela passou a ser usada como arma política, com o intuito de desacreditar politicamente os adversários, como ocorreu com Cícero em relação à Marco Antonio.

É importante ressaltar que a condição homossexual, tanto na Grécia quanto em Roma e em outras cidades da antiguedade, significava estar em uma condição de inferioridade social. Desta forma, o papel “passivo” da sexualidade era atribuído a mulheres, escravos e jovens, estes até seus 25 anos de idade, quando se tornavam adultos, como afirmam Moreira Filho & Madri,

Nesta sociedade também existia uma repulsa com relação ao homem romano que adotava a condição de passivo, ou seja, mantinha-se a mesma concepção que o gregos tinham a respeito a passividade, que esta só deveria ser típica de mulheres, jovens e escravos. (MOREIRA FILHO & MADRI, s/d, p.5)

Em outras sociedades também se verifica a presença de práticas homossexuais com significativa relevância social, como na China, onde o imperador tinha direito a vários “favoritos” e a disputa por ser o principal era grande na corte, visto que tal posto rendia riquezas e prestígio ao escolhido.

Ainda na China, durante o período Han, existiam cerca de 5 mil eunucos, espalhados na corte e nos arredores “sua ocupação mais óbvia era servir como guardas do harém imperial” (p.53), mas muitos acabavam se tornando conselheiros confidentes do imperador, chegando a acumular influência e poder. Na Turquia do século XIV a.C., durante o Império Assírio, alguns eunucos assumiram altos cargos do governo, pois acreditava-se que o fato de não poderem gerar herdeiros os tornava menos corruptos. A Europa do século XVI trazia os “castrati” – rapazes castrados aos 10 anos para servir como cantores de ópera – em substituição às mulheres, que eram proibidas de representar. Desta forma, embora os eunucos não fossem propriamente caracterizados como homossexuais, muitos homens se predispunham à castração em busca de ascenção social e política, desempenhando, muitas vezes, o papel de mulheres.

Durante os muitos anos que antecederam o cristianismo, principal opositor à prática homossexual, as relações entre pessoas do mesmo sexo foram expressas de diversas formas. A cidade de Pompéia era referência para todo tipo de prática sexual, apesar de pouco se falar nela historicamente ou nos livros religiosos. Os principais bordéis saunas e casas de massagem estavam localizados em Pompéia, que contava com mulheres e homens na prestação de todo tipo de serviços que se desejasse

O Cristianismo trouxe a perseguição e condena à prática homossexual, porém, a primeira religião a condenar o sexo sem fins reprodutivos (e consequentemente a prática homossexual) foi o judaísmo. Alguns historiadores, como Julià (2006) defendem a idéia de que o clero teria sido inicialmente benevolente com a homossexualidade por objetivos políticos, aceitando a prática entre membros da realeza (de onde ela se beneficiava) e do próprio clero, e condenando tal prática entre os plebeus e cita como exemplo o romance secreto de Ricardo I, da Inglaterra e Filipe II da França. Já Spencer (1999) apud Moreira Filho & Madrid, entendia esta questão política como uma estratégia da igreja para livrar-se dos opositores:

O historiador da corte de Justiniano, Procópio, alegava que a motivação dessa legislação (impopular e que pouco fez para deter o comportamento homossexual) era política e não religiosa, já que prisões sob essa acusação eram um método conveniente para afastar pessoas indesejáveis. (SPENCER, 1999, p.74 apud MOREIRA FILHO & MADRI, s/d, p.7)

A partir de tais afirmações, entende-se haver uma ligação direta entre as práticas homossexuais e as elites das sociedades antigas, o que representava um instrumento de risco para o poder exercido pelo clero e a influência deste nas decisões governamentais de reis e imperadores. Conforme afirma Soares (2011, s/p) “entre a nobreza, que costumava ditar moda, a homossexualidade sempre correu solta. E, o mais importante, sem censura alguma ficaram notórios os casos homossexuais de monarcas”.

A homossexualidade feminina também ocorria nas sociedades antigas, principalmente em virtude das longas ausências masculinas ocasionadas pelas guerras e treinamentos, mas o fato de a geração da vida não ser atribuída à mulher, fazia com que esta prática fosse ignorada por muito tempo e a mulher relegada a segundo plano na formação dos filhos homens, sob os quais se centralizava a sociedade. Isto foi consequência da implantação de uma sociedade patriarcal que atribuia à mulher o papel de fragilidade e submissão, restringindo-lhe, também, a importância histórica.

Segundo Cano (s/a),

embora a mulheres quase sempre continuassem participando da historia, suas ações ficaram restritas ao âmbito doméstico. Somando o fato de que os historiadores eram, em sua maioria, homens, o papel feminino foi extinto dos relatos históricos (CANO, s/d/p)

Para Ferreira (2010), os relatos e documentos omitem a presença feminina, como se toda nossa construção social e política tivesse sido obra exclusiva dos homens. Segundo a autora “é marcante o perfil masculino no movimento construído pela historiografia. As mulheres estão subsumidas no desenrolar dos combates e dos conflitos” (p.1).

Indiretamente, todas as representações artísitcas também davam visibilidade aos homossexuais e às mulheres, retratando as atividades realizadas por eles no cotidiano social e, como afirma Stearns (2010, p. 62), de um modo geral “a expressão grega do sexo, na arte pública e autorizada, era bem mais vigorosa e picante do que a própria sexualidade grega”, confirmando o uso das expressões artísticas como válvula de escape para as restrições sociais.

Estátuas, pinturas, desenhos, poesias, o teatro e a música representaram a realidade das práticas sexuais das sociedades antigas e se tornaram os principais registros dessa realidade.

As estátuas detinham um enorme poder erótico em suas representações do masculino e feminino ideais. Muitos rapazes freqüentavam as exposições de arte para se masturbar, assim, ao mesmo tempo em que podiam dar vazão às necessidades sexuais, as estátuas gregas estimulavam um interesse que a vida real não satisfazia totalmente.

Na arte scênica, ações que variavam desde uma simples fala subjetiva em uma obra cinematográfica – como é o caso do clássico “Spartacus” (1960) onde os personagens Crassus e Antonius discutem a preferência por ostras ou caracóis (uma referência indireta às preferências sexuais), até obras gregas que retratavam práticas sexuais diretas, como nas que falavam da vida dos deuses e deusas gregos. Afrodite era retratada muitas vezes, diretamente, em pleno êxtase sexual. Os sátiros, embora não fossem deuses, eram retratados quase sempre com pênis enormes e permanentemente eretos, como símbolos de uma devoção incotrolável à bebida e ao sexo. Stearns afirma ainda que, “a representação dos sátiros incluíam masturbação, sexo com animais e perseguição a mulheres inocentes” (ibden).

O cinema, a literatura e a música deram surgimento a simbologias que substituíram uma sexualidade explícita, como o uso da rosa para representar a vagina, e foram de grande importância para o surgimento de uma identidade homossexual e como instrumentos de resistência. Em 1919 era lançado o filme “Diferente dos Outros” (Anders AL die Anders) e em 1931 “Senhoritas de Uniforme” (Mädchen in uniform), filmes que, segundo Kurtz (s/d) mostraram “uma enorme simpatia pela causa homoafetiva”, sendo pioneiros na ruptura com a ‘solução trágica’ para ‘resolver a problemática homossexual’ (destaque do autor).

Anders als die Andern (1919) e Mädchen in Uniform (1931) são, respectivamente, os primeiros filmes gay e lesbiano produzidos pelo cinema mundial.[...] Differente dos Outros é, conforme a expressão de Dyer (1990) “arqueologia”. [...] A época de seu lançamento, o filme ocupou umdos maiores cinemas de Berlim; mereceu ampla cobertura da imprensa, com críticas em geral favoráveis e foi um sucesso de público. [...]O Dr. Hirschfeld, ‘consultor médico’ oficial da obra (provável co-roteirista) e um dos personagens da história (representando a si próprio) faria, em 1927, uma segunda versão de Anders, intitulada Gesetze der Liebe ou The Laws of Love, cujas cópias foram destruídas durante o ataque nazista ao Instituto (Murray:1996:385). O relato criado para defender a causa do ‘Terceiro Sexo’ e a supressão do famigerado Parágrafo 175 era, de fato, uma ousadia para a época28, ainda que também tenha repisado alguns estereótipos e preconceitos em torno ligados à homossexualidade masculina.(KURTZ, s/d, s/p – grifos do autor)

Se as obras e expressões artísticas ao longo dos anos que antecederam a década de 60 – marco das primeiras manifestações da luta homossexual – não iniciaram o movimento homossexual, no entanto, elas colocaram em discussão socialmente a causa, fazendo com que a existência dos indivíduos gays, homens e mulheres, se tornasse visível e marcante.

A partir de 1960 se configura um movimento homossexual efetivo, resultante da insatisfação com as constantes perseguições policiais, a marginalização imposta pela sociedade e as conseqüências do pós-guerra da Alemanha e desencadeado por uma ação policial arbitrária no bar Stonewall Inn, em Nova York, no dia 28 de junho de 69. No ano seguinte, 10.000 homossexuais, provenientes de diversos estados norte-americanos, marcharam pelas ruas de Nova York. A este fato se somaram cinco dias de protestos e confrontos violentos com a polícia, sob os gritos de “Gay Power” (Poder gay). A comunidade gay norte-americana começava a se organizar, impulsionada por fatos locais, mas, também, contagiada por uma revolta proveniente do continente europeu.

O bairro Castro, em São Francisco, era considerado o “paraíso gay”, um lugar onde os homossexuais vivenciavam relativa liberdade. Mas a liberdade que lhes garantia o direito de assumirem sua condição e se relacionarem com pessoas do mesmo sexo, não os liberava de sofrer injustiças e perseguições por parte da polícia. Diariamente homossexuais eram detidos, espancados e mortos nas ruas do Castro, sem justificativas ou investigações.

Harvey Milk surge nesse contexto como comerciante iniciante e que enfrenta, inicialmente, a oposição da Associação Comercial local à abertura de sua loja. Como retratado no filme, a cada ação discriminativa Milk respondia com um beijo em seu namorado e, a partir de então, passa a mobilizar a comunidade gay do Castro em uma demonstração de poder e resistência.

Lojas e marcas que se opunham à causa gay eram boicotados e terminavam falindo ou perdendo mercado. Em contrapartida, as que apoiavam e recebiam gays como clientes, prosperavam. Era o primeiro indício do poder econômico exercido pela comunidade gay do Castro, em prol da causa. Mas, para Milk, era necessário que houvesse uma visibilidade maior. Lutar pelos direitos homossexuais e pela igualdade não poderia permanecer restrito ao Castro, era preciso expandir fronteiras agregando homossexuais de outros departamentos e estados, e ocupando espaços, principalmente os espaços públicos responsáveis pela proposição e aprovação de leis. Assim, Harvey Milk se candidata a Supervisor da cidade e, após três eleições perdidas, consegue se eleger. Durante seu mandato foi aprovada a lei de igualdade que garantia os direitos civis básicos (moradia, educação e alimentação) aos homossexuais.

Em oposição às leis que impediam a discriminação dos homossexuais, surgiam nomes como Anita Bryant e John Briggs, fundamentalistas religiosos que se opunham à causa gay e à concessão a eles de direitos civis. Esta “força” de oposição surge, respectivamente, no condado de Dade, na Flórida e no Condado de Orange, sendo este último o palco de uma das propostas mais discriminativas contra homossexuais: a Proposição 6 ou “Iniciativa Briggs”.

A Proposição 6 defendia a demissão de gays e lésbicas, e concomitante de qualquer um que apoiasse os direitos LGBT, das escolas públicas de Nova York e foi a primeira derrota de uma campanha muito bem sucedida, que iniciou com as ações do grupo “Salvem nossas crianças”, criado por Anita Bryant em Miami. Quando Milk consegue aprovar, em São Francisco, a lei de não-discriminação, fez com que Anita e Briggs voltassem seus objetivos para a implantação da Proposição 6 nesse estado. Mas a ideia era justamente trazer para São Francisco o debate e tentar vetar a Proposição 6, de forma a provocar sua derrota nas demais localidades.

Harvey Milk consegue derrotar Anita e Briggs vetando a Proposição 6 e garantindo a lei, já aprovada, de igualdade civil, mas isso resultaria em sua morte, assassinado por um ex-supervisor. Sua morte levaria às ruas mais de 30.000 pessoas e o consagraria como ícone do movimento gay.

Já Anita Bryant só saiu de cena quando a notícia de sua separaçãose tornou oficial e pública. A opinião popular a criticou duramente, alegando que ela não cumpria com as determinações divinas do casamento indissolúvel e assim, marcas relacionadas a seu nome, bem como a instituição criada por ela, entraram em descrédito.

Apesar disso, outros nomes surgiram e seguem surgindo, repetindo ideias similares e ocupando espaços políticos, onde os discursos de antigamente são reprisados, reforçados e legalizados.

Somente a partir da organização dos movimentos feministas, o papel da mulher começa a receber atenção e destaque, principalmente o papel de “bastidores” geralmente ocupado por elas e omitido dos relatos históricos. Isso é um fato relevante também no movimento homossexual. Antes das mobilizações promovidas por Milk, homossexuais homens e homossexuais mulheres não se viam como integrantes de um mesmo grupo. Milk foi o primeiro a reunir gays do sexo feminino e masculino em prol da causa homossexual, o que permitiria, posteriormente, a constituição identitária da sigla GLBT.

A equipe montada por Milk prosseguiu com as atividades políticas após sua morte, alguns deles diretamente inseridos nos movimentos e lutas, sendo responsáveis pela eleição dos candidatos mais progressistas dos Estados Unidos, ao longo dos 20 anos seguintes à sua morte.

Considerações Finais

O movimento homossexual se inicia ao final dos anos 60 e início de 1970, após uma série de manifestações e protestos ocasionados, em anos anteriores, por ações policiais ilegais, tanto na Europa do pós-guerra, quanto nos Estados Unidos. Harvey Milk foi um dos personagens ícone desse movimento, por ter sido o primeiro homossexual assumido a ocupar um cargo público e garantir direitos civis básicos aos homossexuais norte-americanos. À sua causa se opuseram os representantes do movimento religiosos extremista, representado por Anita Bryant e John Briggs. A compreensão da constituição dessas duas frentes (favorável e de oposição), nos leva a investigar e compreender como elas surgiram e como suas lideranças foram construidas.

As leis e normas sociais que incidiram sobre os homossexuais foram sendo estabelecidas com objetivos políticos de controle da sexualidade feminina e da natalidade e, portanto, ao serem pensadas contra as mulheres, tinham reflexos diretos sobre as práticas homossexuais. Elas não eram provenientes apenas de um poder Estatal, mas também encontraram bases concretas nas grandes religiões que, se por um lado se valeram das praticas homossexuais a ponto de serem omissos a elas, por outro lado as utilizaram como forma de livrar-se de inimigos políticos por meio da acusação de sodomia.

No tocante às mulheres, temos como objetos de análise dois posicionamentos: um que defendia aspectos opressores, apoiando a restrição da mulher à vida doméstica e sua submissão aos homens e, portanto, se opondo, também, ao movimento feminista que apontava nesse mesmo período; outro que se aliava aos homossexuais por compartilhar da mesma condição sexual, dando surgimento à formação identitária do movimento gay. Vale ressaltar que o primeiro não surge por acaso. É, mais bem, um elemento midiático apoiado por uma consciência popular arraigada a valores tradicionais que beneficiam os interesses de controle das massas. Ambos, são resultantes de transformações sociais e processos históricos que constituem as culturas sociais.

É impotante destacar que os discursos entorno da homossexualidade se repetem, apesar de vivenciarmos contextos históricos, sociais e culturais bastante diversos dos que originaram o movimento gay. O que confirma a ideia de que os povos, para garantir seus interesses atuais, se vale de discursos e regras tradicionais, assumindo uma postura absolutista e opressora.

O debate entorno das questões de gênero e sexualidade é imprescindível na atualidade, compreender e analisanar, a partir da historicidade, que as relações de poder sempre estiveram presentes nas sociedades em todos os tempos e lugares, uns em prol à conquista de direitos e contra a opressão, ‘ outros pela manutenção do mando e do poder. A organização do Movimento Homossexual é um marco na luta por uma sociedade mais justa e igualitária, na qual a cidadania sai do discurso e se constrói na prática através da conquista, consolidação, ampliação dos direitos e respeito à diversidade.

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Gaby Faval
Enviado por Gaby Faval em 03/10/2015
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