Bolsonaro, o Herdeiro Incompleto de Hermes da Fonseca

A tão célebre frase "A História se repete, a primeira vez como tragédia e a segunda vez como farsa" é uma daquelas que traduzem a trajetória do espírito político brasileiro ao longo do tempo. Se tem uma coisa que o país tem facilidade de fazer é repetir erros, ressuscitar traumas e nunca perder a oportunidade de perder uma oportunidade. Na atual crise democrática, existe um componente sem precedentes chamado Jair Bolsonaro. Por muitas vezes, sua figura é comparada aos generais do regime militar ou à outros ditadores históricos da América Latina. Neste pequeno ensaio, tento fazer uma comparação crítica do atual presidente com um personagem pouco lembrado da nossa história, o Marechal Hermes da Fonseca, 8º Presidente da República, e propor uma reflexão para os riscos do que pode estar por vir caso a história, sempre ela, resolva se repetir.

Os processos eleitorais que levaram Hermes da Fonseca ao Palácio do Catete e Jair Bolsonaro ao Palácio do Planalto guardam certas semelhanças. Nos dois, houve uma quebra na tradição histórica vigente de escolha do presidente do país. A ascensão do gaúcho Hermes simbolizou pela primeira vez uma ruptura entre os estados de São Paulo e Minas Gerais (que ficaram de lados opostos na eleição), e na aliança chamada de "política do café-com-leite", que vigorou durante todo período da República Oligárquica. Já a vitória do paulista Bolsonaro representou o fim do bipartidarismo informal entre PT e PSDB na disputa pela faixa presidencial. A onda da "nova política" tomou conta de vez do país e teve reflexo inclusive no âmbito do legislativo e dos executivos estaduais.

Em campanha, o então candidato Hermes da Fonseca firmou compromisso de fortalecer o Exército e aumentar os poderes do Executivo. Seu símbolo era uma vassoura, com a qual ele prometia varrer a corrupção e a roubalheira causada pelos civis. A candidatura do Marechal também materializava, em menor escala, um desejo do Exército de participar mais ativamente das decisões do país. Mesmo tendo sido o braço responsável pela derrubada de fato do Império, a tropa foi sentindo que estava sendo deixada de lado com o passar do tempo, especialmente após a consolidação da Política dos Estados, implementada pela presidência de Campos Sales. Nela, o Governo Federal apoiava os candidatos de situação nos Estados, e os Estados elegiam bancadas pró-Governo, perpetuando assim, os políticos de sempre no poder.

O caminho que levou Jair Bolsonaro à rampa do Planalto foi um pouco mais complexo. O atual presidente foi deputado federal por quase 30 anos. Durante esse tempo, Bolsonaro foi a fenda autoritária na institucionalidade do país, o "outsider" dentro da própria democracia. Sua trajetória legislativa pode ser resumida em promoção de pautas corporativas das Forças Armadas e dos agentes de segurança pública em geral, e uma defesa histórica do regime ditatorial que se iniciou em 1964 e durou 21 anos. Em junho de 2013, porém, a população tomou as ruas. Insatisfeitos com a corrupção sistemática e com os serviços públicos precários, os cidadãos gritaram "Fora Todos". Bolsonaro viu nisso, a oportunidade perfeita para se projetar politicamente. Ele, que era um ferrenho crítico dos frutos da Nova República e do presidencialismo de coalizão (o principal objeto de crítica daqueles que rejeitavam a política), passou a ganhar notoriedade quase que automaticamente. Era o homem certo, no lugar certo, na hora certa. Lançou-se candidato surfando no sentimento do antipetismo (aqui lido como o responsável pela perpetuação do sistema corrupto e corruptor), e prometendo combater a corrupção (aqui surfando também na onda da Lava Jato), enfrentar a criminalidade empoderando as forças de segurança e governar de maneira firme, sem conchavos, acordos ou "toma lá, dá cá". Fortalecimento do poder Executivo, combate à corrupção e um expresso sentimento militarista. Um discurso bem parecido com o de Hermes da Fonseca, não?

A vitória de ambos representou a volta dos militares ao centro do poder e, claro, o sentimento determinista do papel do Exército em promover a salvação nacional. Vale ressaltar, porém, que ainda que este ideário libertador seja o mesmo, ele foi personificado por figuras bem diferentes. O Marechal Hermes tinha um longo currículo de serviços prestados tanto ao Império quanto à República. Destacou-se principalmente nas Revoltas da Armada e da Vacina, o que o levou a ser Ministro da Guerra no governo de Afonso Pena. Neste cargo, trabalhou para modernizar o Exército, que vinha tendo a imagem desmoralizada, especialmente depois da Batalha de Canudos, na qual cerca de 20 mil camponeses paupérrimos do interior da Bahia conseguiram derrotar três expedições militares, até serem por fim, executados por um enorme contingente militar oriundo de dezessete estados do país.

O período de Jair Bolsonaro no Exército não foi nem tão extenso e nem tão glorioso. Cursou a Academia Militar dos Agulhas Negras e formou-se em 1977. Em seguida, cursou a Escola de Educação Física do Exército e a Escola de Aperfeiçoamento de Oficiais. Seus superiores o definiam como ambicioso e insubmisso. O então capitão da ativa chegou a escrever um artigo para a Revista Veja e a planejar uma operação que envolveria explodir bombas de baixa potência nos banheiros de quartéis militares, em protesto ao valor baixo dos soldos. Passou para a reserva em 1988 e no mesmo ano elegeu-se vereador. Dois anos depois, seria eleito pela primeira vez deputado federal.

As semelhanças retornam, já com os dois presidentes eleitos. O Marechal Hermes da Fonseca tão logo toma posse e implementa a chamada "Política das Salvações". A medida consistia em nomear interventores, militares ou civis apoiados pelo Exército, no Estados a fim de combater a corrupção e retirar os poderes das elites locais. No plano narrativo, o discurso ainda era o de usar a experiência militar para moralizar a administração pública no país. Mas o que aconteceu mesmo foi a substituição dos políticos de sempre, pelos políticos amigos do governo. As intervenções até deram certo nos estados do Norte e em alguns do Nordeste, mas foi um fracasso nos estados mais ricos do Sudeste, especialmente em São Paulo. O Governo foi ficando cada vez mais enfraquecido e o presidente Hermes decretou Estado de Sítio, o que rendeu ainda mais críticas do mundo político, visto que o país vivia sob a mais normal e perfeita vigência democrática, e da imprensa, que era controlada em boa parte pelos grupos oligárquicos. As finanças do governo, que encontravam-se no azul no início do mandato, pioraram à medida que a economia mundial foi se fechando e a Primeira Guerra Mundial explodiu em julho de 1914. Seu principal legado foi a atenção dada aos trabalhadores braçais e a construção de vilas operárias como a do subúrbio do Rio, Marechal Hermes. Além disso, modernizou o Exército e investiu na infraestrutura do país com construção de ferrovias e escolas técnicas/profissionalizantes.

O presidente Jair Bolsonaro, do mesmo jeito, iniciou seu governo concentrando ações e atacando a "velha política" do Congresso Nacional e dos governadores dos Estados, em especial os outrora aliados João Dória e Wilson Witzel. Com o surgimento da pandemia do COVID-19, este cenário ficou ainda mais flagrante. O presidente tentou interferir nos Estados a fim de evitar medidas, na visão dele, excessivamente restritivas e que iriam prejudicar a economia de maneira tal que o resultado final seria pior do que o próprio vírus. O STF, porém, garantiu a autonomia dos Estados e Munícipios para definir as providências emergenciais. O presidente, então, isentou-se da responsabilidade e transferiu qualquer tipo de culpa para os chefes dos Estados, ao mesmo tempo em que assina diversos decretos que sobrepõe as autoridades dos prefeitos e governadores. Um embate institucional incessante entre uma visão centralizadora e outra federalista. Ao mesmo tempo, o presidente começou a abarrotar os ministérios de militares de confiança e lotear cargos no Executivo para os aliados do chamado "centrão", muitos deles políticos próximos do tempo em que Bolsonaro era um parlamentar da Câmara dos Deputados, na tentativa de se consolidar na cadeira e evitar um processo de impeachment. O programa de ajuste fiscal que vinha sendo implementado para salvar as contas do país foi deixado de lado. A excepcionalidade da pandemia, algo que veio de fora, exige um novo programa de gastos públicos, e as previsões para os próximos anos são de déficits colossais. Mais uma vez, o presente parece repetir o passado.

Como Bolsonaro ainda é um presidente em exercício, ainda não sabemos qual será o exato desfecho de seu mandato e até que ponto a comparação que faço aqui se mostrará precisa. É razoável, talvez, esticar a comparação um pouco mais na linha cronológica, em especial ao período posterior do mandato do Marechal Hermes da Fonseca. Se a comparação funcionou até agora entre os dois personagens, talvez ela possa servir para mostrar o que podemos esperar no futuro.

O governo de Hermes da Fonseca, como foi exposto, tomou uma série de medidas que contrariou as elites de São Paulo e Minas Gerais. Em 1913, os governadores Cincinato Braga (SP) e Julio Brandão (MG) firmaram o Pacto de Ouro Fino, que restabelecia a famosa "política do café com leite" e articularia a manutenção de um presidente que guardasse os interesses das elites oligárquicas desses dois Estados. Nas eleições seguintes foram eleitos Venceslau Brás e novamente o ex-presidente Rodrigues Alves, que morreu de Gripe Espanhola antes de tomar posse. Com isso, seu vice, Delfim Moreira, assumiu interinamente até que novas eleições fossem realizadas. Em abril de 1919 é eleito Epitácio Pessoa para completar o mandato até 1922. O Marechal Hermes por outro lado, foi morar na Europa após a presidência e só retornou ao Brasil em 1920.

Nesse período, os militares voltaram ao centro da questão política. As baixas e médias patentes oficiais do Exército estavam descontentes com a situação política do país e com a maneira de governar das elites de São Paulo e Minas Gerais. Exigiam reformas profundas que incluíam propostas como: fim do voto de cabresto, instauração do voto secreto e reforma na educação pública. Naquela época, conseguir um diploma de ensino superior era algo muito caro. As principais faculdades do país como a Faculdade de Direito de São Paulo, berço intelectual de boa parte dos presidentes, eram instituições inalcançáveis para maioria esmagadora da população. Eram privilégios da elite. A única chance de um jovem das classes mais humildes, ou mesmo da classe média, conseguir adentrar em um curso superior era ingressando no Exército. Graças às reformas modernizadoras feitas no governo do Marechal Hermes, o Exército se tornou uma rara fresta de entrada da população trabalhadora e dos seus filhos aos círculos de intelectualidade. A partir deste momento, os jovens militares começam a ganhar voz e protagonismo no debate público. Além de, é claro, questionar o regime.

A crise estoura de vez quando, na campanha para as eleições de 1922, são publicadas supostas cartas de autoria do então candidato paulista Artur Bernardes nas quais ele chamava o ex-presidente Hermes de "sargentão sem compostura". O Marechal, que já havia retornado ao Brasil, era presidente do Clube Militar e o queridinho dos jovens tenentistas. Artur Bernardes é eleito presidente, mas a oposição acusa o processo eleitoral de ser fraudulento, como sempre foi na República Velha. O presidente Epitácio Pessoa, reprime os grupos insatisfeitos com a vitória de Bernardes e em uma dessas atitudes, manda prender o ex-presidente Hermes, que vinha fazendo manifestações públicas contrárias à posse de Bernardes. O Marechal é posto em liberdade logo em seguida devido à problemas de saúde, mas os tenentistas perdem a paciência de vez. É marcado para 5 de julho de 1922, um levante para derrubar a República.

A expectativa era que os militares iriam se rebelar por todo país e que os quartéis do Rio de Janeiro iriam marchar sob o comando de Hermes da Fonseca em direção ao Palácio do Catete e defenestrar do poder o então presidente Epitácio Pessoa. O alto oficialato das Forças Armadas consegue sufocar a rebelião e apenas o Forte de Copacabana e a Escola Militar conseguem se insurgir. A ênfase histórica ficou marcada nos 18 combatentes que depois de lutar por mais de 2 horas contra 3 mil homens das forças governamentais, marcharam do Forte em direção ao Leme até finalmente serem derrotados. Esta foi a primeira insurreição do movimento tenentista, que ainda faria a Revolta Paulista e a Coluna Prestes, preparando o caminho para a Revolução de 1930 que colocaria um final definitivo na República Velha.

Novamente, vale a pena fazer uma comparação entre os dois presidentes e os contextos históricos de suas atuações políticas. Dois presidentes que tem em comum suas bases eleitorais formadas por militares de baixa patente e pela classe média e média-baixa. Ambos grupos de apoiadores descontentes com a forma de governo do país e nutrindo anseios revolucionários, de quebra da ordem constitucional. Mais uma vez o Brasil se encontra num cenário em que as estruturas do país começam a rachar. Começa a ficar claro o fato de que a maneira de governar o país não é mais viável e que o pacto social que sustenta a República está acabando. A democracia não é apenas uma abstração, ela é um tratado social. As pessoas precisam estar convencidas de que é melhor viver na democracia do que viver na ditadura. Boa parte da população atual não está convencida disso. Vem revolução por aí? Ou um golpe de Estado? Bolsonaro vai ser o precursor deste processo? Só o tempo dirá.

A título de curiosidade, é possível fazer até uma comparação a respeito das características pessoais dos dois presidentes. O Marechal Hermes, na cadeira de presidente, tinha a fama de ser pau-mandado de um político bem famoso da época, o Senador Pinheiro de Machado, uma espécie de Eduardo Cunha do início do século XX. Bolsonaro, por sua vez, dizem ser muito influenciado pela ala ideológica do governo, em especial pelo guru Olavo de Carvalho.

Outro fator de aproximação entre os dois é o tratamento recebido pela imprensa. O Marechal Hermes era muito perseguido pelos jornais, com charges que debochavam do fato de ele ser careca e baixinho. Apesar das graças e críticas da imprensa, boa parte dela dominada pelas oligarquias, o presidente Hermes nunca tentou censurar a imprensa. Até agora podemos dizer o mesmo de Bolsonaro, que apesar de sofrer uma forte pressão da mídia, nunca tomou uma iniciativa na direção de censurar os meios de comunicação.

Na área cultural, o paralelo se dá especialmente no carnaval. Os dois presidentes foram vítimas dos foliões. Quando o Barão de Rio Branco morreu em fevereiro de 1912, o governo Hermes tentou adiar o carnaval para abril. A população do Rio de Janeiro não aceitou a ordem e pulou carnaval não só em fevereiro, como também em abril. Na época ficou famosa uma marchinha que dizia:

Com a morte do Barão

Tivemos dois carnavá.

Ai que bom, ai que gostoso

Se morresse o Marechá.

Na abertura do carnaval desse ano, na Marquês de Sapucaí, a escola Acadêmicos de Vigário Geral apresentou um carro que tinha uma escultura gigante de um palhaço com terno, faixa presidencial e fazendo "arminha" com a mão, numa clara referência ao presidente Jair Bolsonaro.

Os dois presidentes e seus respectivos contextos históricos guardam muitas semelhanças, tanto no aspecto concreto de suas atuações políticas, como no cotidiano informal da presidência. A crise atual é algo sem precedentes e a janela conjuntural aberta pode ter resultados imprevisíveis. Mas o país pode, como diversas vezes, escolher repetir o passado. Bolsonaro pode vir a ser o herdeiro piorado e medíocre do Marechal Hermes da Fonseca. As condições estão dadas. Resta saber como a História vai ser escrita.

Leonardo de Oliveira Gonçalves
Enviado por Leonardo de Oliveira Gonçalves em 22/05/2020
Reeditado em 27/05/2020
Código do texto: T6954783
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