Além de talento, os artistas precisam ter coragem

Além de talento, os artistas precisam ter coragem

Alexandre Santos

Todos sabem que os artistas são a voz do Povo. Esta afirmação inconteste tem repercussões importantes, pois, se, como diz o velho provérbio (nunca desmentido), a voz do Povo é a Voz de Deus, então os artistas são legítimos porta-vozes Daquele que dá origem, causa e objetivo às coisas, às pessoas e à própria vida. Aliás, a condição de dar 'voz ao Povo' (e, assim, nos termos do provérbio popular, dar 'voz à Deus', tornando pública a Sua vontade) tem muitas implicações objetivas e subjetivas, explicando parte das alegrias e, em contraponto, [explicando] também, [parte] das angústias experimentadas pelos escritores (e, claro, pelos artistas das demais linguagens).

De fato, ao descrever o mundo e expressar sentimentos e sonhos com padrões estéticos segundo o estilo e o talento carregados dentro de si por desígnio do Criador, ao tempo que alegram a vida (e se alegrarem com isto), os artistas despertam amores, saberes, quereres e vontades, estimulando, direta ou indiretamente, sentimentos e comportamentos que empurram a Humanidade para patamares superiores de convívio, levando-a ao desenvolvimento. Na ponta inversamente recíproca, como espécie de contrapartida compensatória, [os artistas] despertam sentimentos negativos como frustrações, aversões, dúvidas, questionamentos, medos e rancores, cujas consequências não são muito diferentes, pois (contrariando expectativas e confirmando que, ao lado da ciência e da tecnologia, qualquer que seja ela, a arte é elemento estratégico do desenvolvimento) tal como sua correspondente positiva antípoda, os sentimentos e comportamentos ditos 'negativos', talvez por precipitarem crises e, assim, promoverem mudanças, também estimulam o desenvolvimento e, igualmente, empurram a Humanidade para patamares superiores de convívio. Assim, toda arte tem certo potencial subversivo e revolucionário, inclusive aquelas ditas 'bem comportadas', pois, à despeito de muitos teimarem em aceitar, independentemente da vontade do autor, [as artes, todas elas] despertam sentimentos naturalmente associados ao desejo de mudança.

Esta é a razão de os artistas, de modo geral, e os escritores, de modo específico, imporem tanto medo aos status quo e aos governantes, especialmente àqueles que têm algo a esconder. Não é outro o porquê de a arte e os artistas estarem sempre na alça de mira dos poderosos, os quais, como prevenção ou vingança, os atacam e os perseguem com graus variados de malefício, desde os diversos tipos de censura até, mesmo, as afrontas físicas.

Os ataques aos artistas ocorrem de diversas formas. Algumas vezes, como na fábula da formiga e da cigarra, eles [os artistas] são satanizados com falsas acusações de preguiça e malandragem. Às vezes, [os artistas] são perseguidos através da limitação dos incentivos culturais, em processos seletivos viciados que, via de regra, sufocam artistas independentes e libertários, dando preferência aos submissos e subservientes. Às vezes, os truculentos censuram abertamente a arte, ceifando a criatividade como se fosse possível parar o tempo ou tapar o sol com peneira. As vezes, os perseguidores privam os artistas da liberdade e, mesmo, da vida, como se a sensibilidade e o talento fossem crimes. De toda forma, os truculentos sempre tentam cercear a atividade artística, admitindo-a apenas como entretenimento.

Por outro lado, como evoca sentimentos favoráveis ou desfavoráveis conforme a posição e índole dos afetados, a arte estabelece um tipo de interlocução contraditória, pois, ao tempo que consagra o artista, dá origem às suas alegrias e, também, às suas angústias. Nesta perspectiva, as alegrias e angústias dos artistas têm um pouco de matéria comum, permitindo-nos acreditar que, em certa medida, aplausos e vaias possuem algum parentesco, em substância presente apenas naqueles que se expõem ao público e, claro, ausente naqueles que se resguardam da opinião pública.

Assim, independentemente da área em que exerça o seu talento e criatividade, o artista desperta reações no público e nos poderosos. Ele [o artista] pode não saber a priori se vai arrancar palmas ou vaias, entusiasmo ou indiferença, mas, certamente, sempre saberá que vai despertar alguma reação da plateia, incluindo a aversão dos descontentes e a ira dos poderosos. Deste modo, além de sensibilidade e talento, os artistas precisam, mais do que quaisquer outros, ter coragem, muita coragem, para exercer a sua arte, pois são alvos naturais de todos aqueles que abominam o desenvolvimento e ojerizam tudo que possa levar a ele.

(*) Alexandre Santos é ex presidente da União Brasileira de Escritores (UBE) e coordenador nacional da Câmara Brasileira de Escritores