Democracia - farsa e esperança

Democracia - farsa e esperança

Alexandre Santos (*)

No curso do maniqueísmo que a sociedade é treinada a usar no trato das coisas, em contraponto às [coisas] que prontamente sataniza e responsabiliza por todo o mal ocorrido no mundo, a opinião pública endeusa outras [coisas], elevando-as à condição de panaceia. Assim, por razões óbvias, ao tempo que coisas satanizadas despertam repulsa, as [coisas] endeusadas costumam ser abraçadas por todos, inclusive por quem não as têm como preferência e referência. Veja, por exemplo, o caso das situações descritas como 'Democracia' - situações um tanto imprecisas da ambiência da política, que, endeusadas pela opinião pública, fazem o contraponto positivo a todas as outras [situações]. Na posição antípoda, ocupando lugar de destaque no vasto rol das situações satanizadas nesta ambiência, está a chamada 'Extrema direita' - um nicho ideológico que, direta ou indiretamente, evoca referências negativas, como ignorância, truculência, arrogância, misoginia e outras [referências] pouco lisonjeiras -, [a chamada 'Extrema direita'] cuja associação costuma ser rejeitada pela maioria das pessoas, inclusive por aquelas que a professam. Nesta perspectiva, todos querem ser 'democratas' e poucos querem ser associados à 'extrema-direita'. Na realidade, 'Democracia' não enfrenta resistência significativa porque, sendo termo mais ou menos vago, a depender dos interesses envolvidos, [a palavra 'Democracia'] pode assumir vários significados e conformidades, servindo, assim, para acomodar a todos, inclusive os antidemocratas.

Vale dizer que a condição maleável do termo 'Democracia' se deve à sucessivas manipulações do seu significado original, o qual, como diz a etimologia, significa 'governo do Povo', exemplarmente traduzido por Abraham Lincoln como "o governo do Povo, pelo Povo, para o Povo" - uma forma de governo pura, que difere positivamente de aristocracia (governo das elites), monarquia (governo dos reis), timocracia (governo dos ricos), cleptocracias (governo dos ladrões) e de todos os outros tipos [de cracias]. Acontece, no entanto, que - querendo ser reconhecidos como 'democratas' (e, lógico, desfrutar os benefícios decorrentes desta associação), mas sem querer (ou poder) mudar o seu jeito de ser - monarcas, aristocratas, plutocratas, cleptocratas, timocratas e todos os tipos de 'cratas' decidiram, então, mudar o significado da palavra 'Democracia', de modo a que nela [eles próprios] pudessem caber e cometeram, desta forma, um grave (e despercebido) estelionato linguístico. Assim, sujeita a sucessivas manipulações pelos salteadores da palavra, o termo 'Democracia' descolou do conceito original e passou a ter significados diferentes daqueles pensados na Grécia Antiga. A 'Democracia', então, foi perdendo essência e assimilando perfumarias até deixar de ser 'Democracia' e passar a ser aquilo que os salteadores quiseram que ela fosse, dando base, inclusive, a doutrinas de dominação.

Das diversas mudanças introduzidas no conceito original do termo 'Democracia', a mais difundida é aquela que a vincula [vincula a Democracia], não à forma como o governo é exercido (como dizia o conceito original), mas, sim, a um simples método de escolha de governo. Assim, nos termos desta corruptela, basta um regime político contemplar a escolha dos mandatários através de eleições que pode ser considerado uma 'Democracia'. Pronto! Estava aberta a possibilidade de não-democratas posarem de democratas, usufruir as vantagens inerentes ao termo 'Democracia' e, ao mesmo tempo, se livrarem do peso associado às suas próprias crenças e práticas.

Definir a 'Democracia' como um simples método de escolha muda tudo, pois a forma como o governo é exercido - autoritária ou participativa, conectada ou desconectada das necessidades do Povo, cumprindo ou desconsiderando as promessas eleitorais, etc. - deixa de ser quesito obrigatório para a sua classificação [como 'Democracia'] e consagra o processo eleitoral como episódio central da política. Assim, nos termos desta corruptela, fazendo a vontade dos não-democratas que se fazem passar por democratas, a eleição funciona como elemento certificador da 'Democracia' e, mais ainda, o momento no qual o 'eleito democraticamente' recebe um cheque em branco para, enquanto perdurar seu mandato, agir em nome da sociedade e fazer tudo o quê quiser (e a lei permitir).

Isto é Democracia? Claro que não. Mas este é o entendimento de 'Democracia' que, à luz das modificações introduzidas no conceito [de Democracia] pelas classes dominantes, vem prevalecendo. Nos termos da corruptela em vigor, das chamadas 'eleições democráticas', surgem mandatos-condão, aqueles que dão aos eleitos legitimidade para fazerem tudo aquilo que não for proibido em lei - uma condição extremamente cobiçada, especialmente pelos espertalhões, que dela se aproveitam para firmar posições de poder, construir ou consolidar fortunas. Assim, com este prêmio em vista, dispensados de qualquer compromisso com a forma de governar, democratas e não democratas se engalfinham nas eleições.

Embora grave, a manipulação conceitual não esgota o arsenal dos não-democratas contra a 'Democracia'. Aliás, se foram mal intencionados o suficiente para manipular o conceito original de 'Democracia' em proveito próprio, por que estes aproveitadores iriam parar nisso? De fato, não basta aos farsantes da Democracia a possibilidade de governar sem prestar contas ao Povo. Eles querem, também, condicionar o processo de escolha dos mandatários a seus próprios interesses, manipulando a vontade dos eleitores e o resultado das eleições. Assim, ávidos para alcançar o poder através das tais 'eleições democráticas', os espertalhões trataram de usar seu talento para criar fórmulas de manipular as eleições. E aí, valeu tudo. Desde a criação de leis para impedir a candidatura de concorrentes fortes (como fizeram com Lula em 2018), até a manipulação do imaginário popular através de campanhas publicitárias enganosas (como o uso da mentira como instrumento regular de campanha), passando pela fraude na contagem do votos para construir os resultados desejados (como costuma ocorrer nas eleições pelo sistema de cédulas que, agora, vem sendo denunciada pelo presidente Donald Trump) e pela criação e uso de sistemas de lawfare para controlar mandatos (como fizeram com Dilma Rousseff).

Vale dizer que, nos dias correntes, marcados, sobretudo, pela conectividade permitida pelas redes sociais e pelo alcance da grande mídia regular, dos métodos usados pelos farsantes para burlar o sistema de 'eleição democrática', se destaca o uso regular das fakenews - larga disseminação de mentiras, segundo planos formulados cientificamente com objetivo de desconstruir a imagem de adversários ou, inversamente, de construir a boa imagem de aliados -, como mostrado nos documentários 'Democracia hackeada', 'O dilema das redes' e 'Democracia em vertigem'. E, neste embalo, sob o olhar consciente e, ao mesmo tempo, submisso, condescendente, apático e inerte da sociedade, a Democracia vem sendo solapada o tempo todo, por toda a parte.

Burlar a Democracia não é certo. Na realidade, como unge pessoas indevidas aos círculos decisórios mais elevados, burlar a Democracia é o suprassumo dos golpes. Não é certo adulterar o conceito original de Democracia, reduzindo-a a um mero método de escolha; [não é certo] criar regras capazes de interferir no resultado das eleições para ungir candidatos menos votados; [não é certo] manipular o inconsciente das pessoas, levando-as a escolher opções que contrariam a sua vontade; [não é certo] inventar desculpas para justificar a destituição de mandatários eleitos pela vontade popular apenas porque são inconvenientes a certos interesses, [não é certo] aplicar qualquer golpe que deforme da forma de governo que, por ser como deveria ser, foi endeusada por todos. Aliás, como consagra o poder de mandatários cuja ação tanto pode promover o bem com o mal, as ofensas à 'Democracia' (qualquer que seja ela) não podem passar impunes. Devem ser consideradas crimes imprescritíveis e serem punidas com rigor semelhante aos assassinatos e às traições, tendo o Povo como vítima.

De qualquer modo, considerando que, de tão solapada ao longo da história, a 'Democracia' perdeu as características que a fizeram ser endeusada, passando a ser isto que vemos hoje - um arremedo deformado do regime pensado originalmente, cuja referência é usada por oligarcas, timocratas, autocratas, cleptocratas para encobrir mal feitos cometidos em seu âmbito -, é preciso restaurar o seu conceito original [conceito original da Democracia].

Ao contrário daquilo que muitos pensam, é possível reverter as deformações que foram impingidas à Democracia e restaurar o seu conceito original. Na realidade, com a evolução científica e tecnológica, a cada dia que passa a factibilidade de restaurar a Democracia fica maior.

De fato, deixando de atuar apenas no mundo real e passando a construir um mundo virtual, a Engenharia abriu um número ilimitado de possibilidades digitais. Entre estas possibilidades digitais, além das facilidades de comunicação, estão mecanismos que, devidamente protegidos por códigos de acesso e senhas pessoais, permitem a manifestação de vontades e comandos de importantes procedimentos na vida real. Assim, da mesma forma que criou um e-comércio, introduzindo nuances inéditas no funcionamento dos mercados, inclusive financeiros, os mecanismos digitais podem aperfeiçoar as relações sociais, inclusive a política, aumentando o nível de informação das massas eleitoras, agilizando processos de escolha, estreitando os laços entre governantes e governados, possibilitando transparência às administrações, facilitando o acompanhamento da gestão, fiscalização do governo e consultas regulares, enfim, restaurando valores originais da Democracia, inclusive com a ampliação das casas legislativas com aumento do número de parlamentares para formação de Assembleias digitais. Estão, portanto, colocadas pela Engenharia as condições para modernização de procedimentos e restauração da Democracia, restabelecendo o primado da participação e da vontade popular, condição que a torna o mais perfeito dos sistemas políticos já concebidos pelo homem.

Apesar das ofensas e deformações que recebeu ao longo dos tempos, a Democracia ainda é a melhor forma de governo e pode voltar a dar razão a quem a endeusou. Assim, a humanidade precisa manter a esperança de que as fraudes que deformam a Democracia possam ser revertidas e lutar pela adoção das medidas capazes de restaurar os seus fundamentos originais [da Democracia]. Um dia, talvez mais cedo do que as pessoas imaginam, a sociedade voltará a ser governada de forma verdadeiramente democrática.

Viva a Democracia!

(*) Alexandre Santos é ex-presidente da União Brasileira de Escritores, coordenador nacional da Câmara Brasileira de Desenvolvimento Cultural e presidente do Clube de Engenharia de Pernambuco