POST IT - O RESPEITO À DESCRENÇA
“Nenhuma explicação é suficiente.” (Karl Popper)
É da natureza humana a busca pelas explicações. Indagar, duvidar, é exercício primitivo de pessoas ativamente interessadas. A desconfiança do que não se compreende é visceral; portanto, inerente à existência. Quando não há esclarecimentos consolidados é instintivo elaborar teorias de ocasião, provisórias, para que a alma fique menos atormentada. Daí o surgimento das divindades, construídas para deslindar a origem das coisas, o formidável do universo, o intrincado de nós mesmos.
Integra o cotidiano cuidar-se para apaziguar o espírito inquieto, demandante na busca do inalterável e permanente que a Filosofia denominou Verdade; o caminhar sem fim a vasculhar no garimpo dos elementos para extrair da fantástica e surreal alquimia a poção que desvendaria o inexplicável.
Com a evolução das ciências matemáticas, deparamo-nos com a severa e por vezes surpreendente frieza das revelações científicas a explorar desde o infinito das extremas dimensões do incomensurável, que afastam continuamente as réguas limitadoras das grandezas, que continuam a ultrapassar as fronteiras insondáveis do dia anterior como rotina.
Porém, é no terreno das crenças que se constroem os individuais e personalizados juízos de valor, de mérito: as convicções. E nesse espaço cabem as crenças (i) suportadas pelas indiscutíveis(?) equações matemáticas; (ii) as oriundas dos divinos; (ii) as que povoam o imaginário; (iv) as que foram apreendidas; (v) as inatas; (vi) aquelas eivadas pelos íntimos mistérios dos desejos, dos medos, dos traumas e das experimentações. Todas são verdades.
“Ao contrário do que geralmente se crê, por muito que se tente convencer-nos do contrário, as verdades únicas não existem: as verdades são múltiplas.” (José Saramago)
Faz-me lembrar de Dona Theotista Lopes Cançado, querida mestra de vida, professora de Ciências no Ginásio de Pitangui, que ensinava: “Não acreditem sempre em tudo que lhes dizem. Nem nos melhores livros. Desconfiem. Raciocinem por vocês mesmos. Duvidem. A ciência vive de dúvidas e de incertezas!”
As manifestações a cada dia mais fervorosas e dicotômicas em torno do voto auditável é um caso que se enquadra no ambiente desse fenômeno. Há certezas quanto à higidez do sistema e desconfianças impregnadas quanto às possibilidades de manipulações. Ambas são percepções legítimas e se enquadram nos leitos generosos da “realidade temporária” e das “crenças definitivas”.
Minha fundamentada convicção é que o sistema de votação brasileiro é substantivamente confiável. Contudo, há quem não o considere assim. Existem razões que se podem comprovar no reino das matemáticas, mas as encontramos também nos domínios das crenças. Vivemos segundo os mandamentos das realidades, sobrevivemos com o suporte das esperanças e nas desconfianças justificadas em crenças.
A fortaleza do inexplicável é frágil castelo em areia movediça!
Esse espetáculo de combatentes torcidas em torno do assunto não serve ao encontro de meios para pacificar percepções contraditórias, que geram problemas cuja solução está ao alcance das mãos e na generosidade das mentes. Seria melhor se os partidários de cada um dos lados antagônicos se dispusessem ir além do próprio olhar, aceitassem desarmar-se das opiniões que abraçaram, convergindo na direção do propósito de serenar entendimentos em torno da causa comum que interessa a todos: eleições livres com resultados indiscutíveis.
Embates e enfrentamentos de variados interesses e percepções em tema tão relevante são naturais. Constituem manifestações bem-vindas, peculiares nas Democracias. É salutar que existam os contrapontos como indutores de crescimento do processo civilizatório, que neste momento está a reclamar por mútuo gesto de cessar fogo.
Não se trata, como se argumenta e apregoa, tema que ameace as Instituições. O que as fragiliza é a ausência de respostas convincentes às indagações. O questionamento é próprio da dinâmica social, basilar sintoma de liberdade. O culto à independência de crenças direito à opinião.
Também não configuram impertinências as manifestações de inconformidade com o Sistema Eleitoral, ainda que sejam desprovidas de suporte fático. Se esclarecimentos são insuficientes para grande parte dos eleitores, e as reclamadas intervenções de melhoria possíveis, conquanto desnecessárias, nada deve se opor à introdução da camada extra de proteção.
É tempo de reduzir tensões.
Tornar o voto impresso auditável é facilidade adicional ao hígido processo de votação eletrônica, implementado com reconhecida competência e sucesso. É caminho que servirá a todos, trazendo equilíbrio ao conjunto dos clientes deste processo: o Eleitor. Não é um ceder à descrença alheia, mas reconhecê-la e respeitar o direito a ela, algo como praticar a laicidade religiosa em nome da harmonia neste reino multicultural que reclama colaboração compartilhada para alcançar o objetivo de homologar, sem as nódoas da suspeita, as manifestações de vontade do eleitor.
“Houve tempo em que o gargalo estava nas informações; hoje ele está na capacidade de agir com inteligência sobre elas.” (Edward De Bono)
Desconfiar do Sistema, antes de constituir-se embaraço e mera rebeldia, é gesto de cidadania a ser respeitado, premissa para que o ato de votar seja honrado na prática. Mesmo que possa ser tecnicamente inútil, dispensável, por que não acolher a camada adicional de controle? O direito à crença comporta, pressupõe e implica no respeito à dúvida.
“Tanto puxaram por ela, que a pobre rasgou-se ao meio, perdendo a estopa amarela, que lhe formava o recheio.” (Olavo Bilac – A Boneca)
Não haverá nem vencidos nem vencedores nem empate: ganharemos nós, de todas as crenças.
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(30/06/2021)
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Ex-Presidente da SUCESU-MG e da ASSESPRO-MG
Conselheiro da FUMSOFT
Vice-Presidente da Associação Comercial de Minas
Conselheiro Honorário da Fundação Dom Cabral
(Publicado originalmente na RNTI- Revista Nacional de Tecnologia da Informação, julho/2021)