REZAR OU ORAR?

REZAR OU ORAR?

Mestre, ensina-nos a orar! (Lc 11,1)

Nesta matéria procurei agrupar alguns assuntos que publiquei sobre os temas, adaptando-os para uma conferência ao pessoal da Renovação Carismática no MS.

Contrariando as evidências da secularização tão patentes em nossos dias e nos acontecimentos mundiais, alguém afirmou que o século XXI seria um tempo de mística e de interiorização. Se formos olhar bem a fundo, é impossível negar uma ponderável dose de verdade nessa assertiva. Se de um lado nos assusta a era da tecnologia, da informática e do pragmatismo, de outro podemos constatar um ressurgimento do homem moderno para o humanismo. E isso se vê a partir dos jovens, que parecem descobrir os valores da espiritualidade, da religião e da oração, cuja ternura e vigor parece lhes dar coragem de se confessarem pessoas de fé.

No entanto, se de um lado constata-se a crescente busca das coisas de Deus por parte da humanidade, de outro, a pressa e o materialismo de muitos revela que a oração deixou de ser um hábito em suas vidas. Creio que cabem algumas perguntas: por que oramos tão pouco hoje em dia? Nossos pais rezavam mais. Pesquisando vamos encontrar algumas respostas, a maioria delas ligadas ao modelo atual de vida, ao pragmatismo, à autossuficiência, à falta de fé, encoberta por horas diante do computador, da televisão e dos jornais. Há também uma questão ligada ao modelo de vida. Alguns segmentos da mídia e da sociedade dizem que as pessoas modernas, intelectuais ou técnicas não devem perder tempo com as coisas do espírito, pois a informática e as enciclopédias têm respostas mais bem elaboradas.

Com tudo isto, algumas pessoas vão abandonando o costume de orar, perdem referenciais de espiritualidade, esvaziam-se em uma aridez de sentimentos, embrutecendo-se, não-raro. Mesmo observando que em muitos casos o homem moderno volta-se para a mística e para as coisas da religião, ainda é possível notar que muitos parecem distantes dos valores da espiritualidade e da religião.

A oração, e isto poderemos ver no decorrer desta reflexão, se caracteriza como o estabelecimento de uma linha direta de comunicação com Deus. Trata-se daquele canal privilegiado para o ser humano falar com o Criador e – ao mesmo tempo, no silencio – escutá-lo. Trata-se da forma mais autêntica e disponível de comunhão com o Absoluto e com a interioridade. Orar nos coloca nas trilhas do mistério que, por sua vez, nos encaminham à alteridade. Quem ora se torna disponível ao outro.

A partir de nossa caminhada por esta reflexão veremos que a oração não é meta, mas simplesmente o caminho para se chegar a Deus. Não se pode transformar os meios em fim. Muitas vezes as pessoas chegam a confundir a oração com “Deus”. A oração se faz necessária para podermos dialogar com Ele e conhecê-lo melhor. É pelo caminho da oração que se vai chegando à nascente. A oração é o caminho; a meta é Deus. A Doutora da Igreja e Mestra da oração, Santa Teresa de Jesus († 1582), desde sua infância, e depois a partir do Carmelo de Ávila, estabeleceu formas distintas de se comunicar com Deus. Para tanto ela colocou um ideal diante de si: “Quero ver Deus!”. E será essa profunda convicção e desejo que vão orientar toda a sua vida. Ela a tudo renuncia, de tudo se despoja, tudo abandona. Nada que possa ser obstáculo ao seu encontro com Deus terá direito de estar presente em sua vida.

Historicamente podemos contemplar a oração do antigo povo de Israel, nossos antepassados na fé, um sistema de cunho religioso, histórico, mistagógico e antropológico. A essência da oração dos judeus sempre esteve na relação direta com os conhecimentos históricos, louvando Deus que os libertou do cativeiro do Egito. Eles oravam e fundamentavam sua espiritualidade a partir do que aconteceu, do que estava ocorrendo e para que acontecesse alguma coisa (libertação, salvação, bem-estar, proteção, prosperidade, etc.). O conteúdo da oração de Israel era calcado a partir de sua história.

Como gesto de comunhão, a oração tem uma linguagem especial, mística e encarnada, do espírito e da vida. Essa linguagem feita de imagens se adapta perfeitamente à comunicação do mistério. É a forma de comunicação preferida pelo hagiógrafo de Gn 1, o modo de expressão dos profetas e também de Jesus em suas parábolas. Essa linguagem des-vela a verdade, ao mesmo tempo em que re-vela por esse formidável dom de Deus, a fim de ser procurado e encontrado, sem esgotar nunca a riqueza que encerra.

Na teologia hebraica, o ato de dialogar com Yahweh (ouvir a sua voz e responder a ele) constituía o centro da fé. Falar, escutar e obedecer levavam a um conjunto de atitudes que denotavam mudanças interiores com consequências exteriores. Para os povos antigos, Deus sempre foi aquele que é capaz de falar com as pessoas (as revelações), dispondo-se a escutá-las (a oração) ensejando uma transformação (a conversão).

A profissão de fé diária dos filhos de Abraão era aberta com o shemá, um convite à meditação, para que o povo escutasse a voz do Senhor: “Ouve (shemá Israel, Elohim Adonai Echad) ó Israel O Senhor Deus é Único.” (Dt 6,4). Isto era para eles uma norma de vida. O judaísmo, desde suas raízes, é essencialmente uma religião de fé, oração e obediência à davar (a Palavra de Deus).

Como sabemos, um dia os discípulos pediram a Jesus que os ensinasse a orar. Por que pediram isto? As escolas rabínicas por acaso não ensinavam as orações ao povo? Simplesmente porque Jesus orava diferente. A oração cristã era impregnada de amor, um pouco diferente da judaica, que era baseada no preceito e na obrigação. Em um determinado momento da caminhada os discípulos sentiram que o modelo tradicional de oração era insuficiente. Eles queriam aumentar a comunhão com Deus, através de uma oração compacta, encarnada..

Na vida das pessoas que têm fé não é difícil encontrar vestígios da presença de Deus. Ele sempre se revela aos que nele creem e o buscam de todo o coração. O cristão que leva a sério as palavras de Jesus, adora-o e interage com ele, e o ato de conhecer a Deus levará sua vida inteira à experiência do Absoluto, uma reflexão mística que dá seus primeiros passos através da oração. Há os que procuram Deus na meditação, na liturgia ou na leitura orante das Sagradas Escrituras. Essa busca também se caracteriza por uma forma de oração, uma vez que Deus pode ser encontrado aí. Infelizmente, também se observa casos em que algumas pessoas, apesar de esforços e boa vontade, não conseguem se encontrar com Deus em nenhuma dessas atividades, só encontrando o Pai (Deus) distante ou a Mãe autoritária (a Igreja), mas não o Deus-amor, rico em misericórdia, ou a Igreja-comunidade. São os que não conseguem espiritualizar sua oração, apenas rezando por rezar, repetindo palavras sem interiorizar seu conteúdo.

Orar deve se converter em um hábito para o cristão, uma salutar ocasião para o encontro com Deus. Se orarmos cinco minutos por dia teremos feito, no fim de um ano, trinta horas de preces. É preciso revitalizar sempre essa sintonia. Sabendo que o mundo é uma correria desvairada e exige um ponderável comprometimento do nosso tempo, são necessários momentos de parada, de repouso, de retomada.

Dentro desse espírito, me vem à mente uma historinha que eu sempre uso para abrir os retiros espirituais que tenho pregado por esse Brasil afora. Um homem precisava abater um mato em sua propriedade. Para isto contratou dois lenhadores, indicando uma área de mato para cada um. Da casa ele podia escutar o ininterrupto cair do machado vindo do lado direito. Quando apurava o ouvido para o outro lado, notava que o segundo lenhador trabalhava um pouco e parava; outro pouco e estancava. No fim do dia, contrariando sua expectativa, viu que o lenhador que fazia paradas cortou o dobro de madeira que o outro. Indagado, o trabalhador disse que as pausas eram para descanso dele e para afiar o machado. Deste modo ele conseguia uma produtividade superior.

Assim deve ser a espiritualidade da nossa vida. São tantos os problemas e compromissos, decepções e contrariedades, que é preciso vez que outra dar uma parada para “afiar o machado” e repousar. A oração, a meditação e a contemplação são a melhor forma de entrarmos num descanso ativo, num repouso produtivo e na paz inquieta dos verdadeiros discípulos do Senhor.

Ciente das fraquezas e limitações do ser humano, e de certa incapacidade de comunhão, Jesus ensinou: “Peçam e receberão!” (cf. Lc 11,8). Nas páginas do Antigo Testamento vamos encontrar o rei Davi dizendo que “ninguém que esperou no Senhor foi confundido ou enganado” (Sl 2,1). Isso evidencia a confiança que devemos ter na eficácia da oração e na misericordiosa vontade que o Pai tem de nos atender.

Orei e foi-me dada a prudência. Supliquei e veio a mim o Espírito da Sabedoria (Sb 7,7).

A oração é inegavelmente a chave que abre as portas da espiritualidade. Se for verdade que espiritualidade não é só oração, igualmente é verdade que a relação com Deus tem nas preces e meditações uma ponderável pilastra. Por que se observa a existência de um chamado universal à oração? Porque primeiramente Deus, através da criação, chama do nada todos os seres e ainda porque, mesmo depois da queda, o homem continua a ser capaz de reconhecer o seu Criador, conservando o desejo daquele que o chamou à existência. Todas as religiões e, em especial, toda a história da salvação, testemunham este desejo de Deus por parte do homem, se bem que é sempre Deus que primeiro e incessantemente atrai cada uma das pessoas para o encontro misterioso da oração.

Certo dia os discípulos pediram ao Mestre que os ensinasse a orar. Não que o judaísmo não tivesse suas orações, mas pelo fato de Jesus os haver introduzido em uma outra esfera de espiritualidade, que estava a exigir um contato mais real e íntimo com Deus. Este pedido retrata um desejo, que também deve ser nosso, de cristãos interessados em fortalecer sua espiritualidade: desejo de crescimento, de aprofundamento, de comunicação com Deus. Orar é:

• conversar com Deus

• abrir o coração a ele, como se abre a um pai, à esposa, ao marido ou a um amigo do peito.

• entregar-se

• colocar-se na dependência e sob a vontade de Deus. “sem mim vocês nada podem fazer” (cf. Jo 15,5).

Com isto, podemos concluir que o fundamento da nossa oração é a relação amorosa que desenvolvemos com Deus. Oramos para

• agradecer,

• pedir

• louvar e glorificar

• colocar nas mãos de Deus a nossa angústia, dúvida ou dor

• Pedir (falo em seguida)

Na oração devemos falar, mas também calar e ouvir. É bom pedir:

bens materiais

• saúde,

• proteção

• bem-estar pessoal e familiar,

• harmonia

• capacidade de praticar a justiça

• segurança contra os perigos

• prosperidade justa

bens espirituais

• perdão dos pecados

• dons (fé, esperança, amor),

• senso de comunidade

• luzes (discernimento)

• salvação.

É salutar a gente não ser repetitivo: o próprio Jesus alertou: “Não pensem vocês que a eficácia da oração está na repetição e multiplicação de palavras”

Mestre, ensina-nos a orar!

Jesus ensinou seus discípulos a orar, não só com a oração do Pai nosso, mas também com a sua própria oração. Assim, para além do conteúdo, ensina-nos as disposições requeridas para uma verdadeira oração: a pureza do coração que procura o Reino e perdoa aos inimigos; a confiança audaz e filial que se estende para além do que sentimos e compreendemos; a vigilância que protege o discípulo da tentação; a oração no Nome de Jesus, nosso Mediador junto do Pai.

As fontes da oração cristã estão nas Palavras de Deus, que nos dão a “sublime ciência de Cristo” (Fl 3,8); a Liturgia da Igreja que anuncia, atualiza e comunica o mistério da salvação; as virtudes teologais; as situações quotidianas, porque nelas podemos encontrar Deus. A fé vem do que se ouve; ela nasce pelo que entra nos nossos ouvidos; ela nasce da escuta (cf. Rm 16,7). Ouvir é a nossa resposta à iniciativa de Deus que bate à porta: é escutar seu chamado, abrir a porta, estar em condições de abrir e conversar com ele...

A IMPORTÂNCVIA DA ORAÇÃO EM NOSSA VIDA CRISTÃ

Orar é tornar-se disponível. Dou abaixo a importância da oração em nossa vida cristã:

• VIDA

Saber viver é saber orar

(Santo Tomás de Aquino);

• SALVAÇÃO

Quem reza se salva; quem não reza facilmente se perde;

(Santo Afonso de Ligório);

• ALIMENTO

Somos pobres; a oração é o alimento de nossa alma (Santa Teresa);

• PROSPERIDADE

A oração é o caminho normal para se receber os dons de Deus

(São Gregório de Nazianzo);

• DESCANSO

Venham a mim vocês que estão sobrecarregados que eu os aliviarei (Mt 11)

• COMUNICAÇÃO

Sem a oração não existe comunicação com Deus

(São Bernardo)

• VITÓRIA

Sem oração não há vitória!

(São Boaventura);

• FORÇA

Ninguém é mais poderoso do que o homem que reza

(São João Crisóstomo);

• TEMPO

Quando tenho muita coisa para fazer, mais tempo eu consigo para a oração (M. Lutero).

O Catecismo da Igreja Católica (2643-44) discorrendo sobre a espiritualidade fala em “formas essenciais da oração cristã”, que são a bênção, a adoração, a oração de petição, a intercessão, a ação de graças e o louvor. A Eucaristia contém e exprime todas as formas de oração e de espiritualidade. A oração exige de nós

• Aproximação

• Entrega

• Humildade

• Comunhão

• Escuta

Ás vezes, em encontros, cursos e retiros, as pessoas têm me perguntado a diferença entre orantes e “rezadores”. A grande diferença está em querer trocar a qualidade pela quantidade. Quem são os “Orantes”?

• pessoas que fazem da oração sua própria identidade

• estilo de vida (espiritualidade)

• o caminho do bem-estar espiritual-físico,

• equilíbrio emocional.

Por que oramos?

• para não cairmos em tentação (Mt 26,41)

• não para que Deus conheça as nossas necessidades, mas para que nós fiquemos conhecendo a necessidade que temos de recorrer a ele, para receber, oportunamente, os recursos da salvação (Santo Tomás de Aquino).

Mestre, ensina-nos a orar!

Por que as famílias hoje oram menos? A que razões devemos atribuir essa retração? Os mesmos motivos que nos levam a orar menos são os mesmos que destroem as famílias

• MATERIALISMO

• CONSUMISMO

• PRESSA

• INDIFERENÇA

• AUTOSSUFICIÊNCIA

• TELEVISÃO

• FALTA DE SINTONIA ENTRE AS PESSOAS

Como orar?

• MENTALMENTE

• EM VOZ ALTA

• EM FAMÍLIA

• DE JOELHOS

• DE PÉ

• SENTADOS

• DEITADOS (PROSTRADOS)

Muitos, para motivar a espiritualidade falam em colocar-se em “espírito de oração”. O que significa esta chamada? Colocar-se em “espírito de oração” o crente precisa esvaziar-se de todas as ideias que o impedem de se concentrar no que vai ser orado. É preciso silêncio, concentração, atenção ao texto ou à meditação, esvaziamento, compatibilização do que é rezado com a nossa vida e, por último, um compromisso do temporal com o espiritual. E vice-versa.

Maria orava, guardando fatos e palavras em seu coração (Lc 2,51).

Nós, católicos, temos mais familiaridade com a oração do que com outras formas de contato com Deus. Estamos mais acostumados com a comunicação vocal e recitação das orações prontas (Pai-Nosso, Ave-Maria, Glória, etc.) do que com a meditação e a contemplação, por exemplo. A meditação é um passo a frente. Na relação com Deus ela é mais próxima, mais sublime, eficaz e profunda. Vimos no capítulo anterior que, meditar é conversar com Deus a partir do texto da Escritura, responder às interpelações, criando uma atitude de adoração, louvor, agradecimento, perdão. É refletir, “ruminar”, aprofundar, repetir as palavras significativas, e assim aplicar a mensagem hoje. O guardar palavras em seu coração, é a forma de meditação que Maria escolheu para ligar-se a seu Deus. Há tempos li em um antigo acatisto grego um texto sobre a virgem Maria:

Sozinha, colocando-se entre Deus e a raça humana inteira, Maria fez de Deus um filho do homem e transformou os homens em filhos de Deus.

Nossa oração situa-se mais numa comunicação vocal com Deus. Na meditação estabelecemos uma forma de relação mais transcendental, mais próxima, mais sublime, eficaz e profunda. Meditar é falar com Deus e escutá-lo. Dentro da oração, de repente começo a meditar, a falar com Deus: “Senhor, não tinha percebido isso, não compreendo bem...” Assim, começa o diálogo com Deus. Meditação é a oração mais profunda, pois brota do mais íntimo do nosso ser. É o que o texto me faz dizer a Deus. A palavra nos vai esvaziando de nós mesmos e nos enchendo de Deus.

A MEDITAÇÃO CRISTÃ

O que é meditar? Trata-se de entregar nossa vida nos braços de Deus. Ela exige uma disponibilidade sem reservas. Se estiver com pressa, com alguma preocupação ou o ambiente não for de absoluta calma, deixe para depois. O evangelho nos informa que muitas vezes Jesus se retirou para orar e meditar na interioridade com o Pai (cf. Mt 14,23; 26,36). No terreno conceitual, vamos encontrar algumas características da meditação cristã:

• é uma das formas de buscar a Deus (CIC 28);

• é uma reflexão espiritual profunda;

• é sobretudo uma busca. O Espírito trata de compreender o por quê e o como da vida cristã, para aderir e responder ao chamado do Senhor;

• a meditação não é uma outra forma de oração, mas o aprofundamento dela;

• meditar, então, é ir adiante: é procurar penetrar no mistério de Deus.

Existem alguns fatores a serem observados por quem deseja entregar-se a uma boa meditação:

• local adequado;

• silêncio;

• tempo (sem pressa e sem olhar no relógio);

• posição confortável do corpo

→ que ajude na concentração;

→ que não canse;

→ que não gere distrações.

Os orientais, mestres de meditação recomendam que se adote uma posição deitada, com os pés elevados, para que haja um maior fluxo de sangue para a cabeça, irrigando o cérebro e energizando as ideias. Como “objetivos da meditação”, temos:

• acalmar a mente, entrando em contato consigo mesmo;

• estabelecer uma sintonia com Deus;

• diminuir a ansiedade, aumentando a sintonia;

• provocar um reabastecimento espiritual;

• esvaziar a mente, dando lugar a Deus.

Na oração do “Terço Bizantino”, por exemplo, clama-se o nome de Jesus por dez vezes, enriquecendo-se o louvor e a petição com intenções particulares, doxologias e ação-de-graças. A meditação serve para organizar nossa mente e nosso espírito. Através dela podemos encontrar nosso eu-interior. A partir dessa consciência maior de nós mesmos é possível mudar o rumo muitas vezes inadequado de nossas vidas, aprendendo a viver em paz e superando os sofrimentos naturais da existência humana.

Já disse Santa Teresa de Ávila, uma das maiores místicas católicas, que a mente humana é como uma carruagem puxada por inúmeros e fogosos corcéis. Cada um correndo para um lado. A meditação procura ordenar esses corcéis, levando-os a galopar harmoniosamente, em uma só direção. Nossa mente é povoada de pensamentos que em geral nos levam para o passado ou para o futuro. Dificilmente ficam abertas ao presente.

Às vezes, quando se fala sobre meditação a alguns auditórios, surge logo a questão: como meditar? Tem pessoas que entendem que rezar muito é fazer meditação. Outras julgam que ler a Bíblia resume o ato de meditar. Como estamos vendo neste tópico, refletir e meditar é bem mais que isto. Refletir é uma evolução do ato de pensar. Se essa reflexão tem um cunho místico, como um aprofundamento da oração, então ela se torna uma meditação. Nesse particular, a meditação pode ser feita de diversos modos:

• através da reflexão das Sagradas Escrituras (textos escolhidos, evangelhos, salmos, epístolas);

• diante do sacrário, em atitude de adoração;

• pela leitura ou oitiva de textos, homilias ou reflexões espirituais de Santos, Doutores, Mestres e Autores cristãos.

A meditação também pode ser feita pela contemplação dos “sinais dos tempos”, que nada mais são que a leitura do livro da vida: a natureza e os fatos do cotidiano. Em tudo há sinais capazes de inspirar a nossa meditação. A fruição dos valores do Reino exige constância, disponibilidade de espírito, vigilância e atitude cristã (essência da espiritualidade). Esse conjunto de bens espirituais traz alegria interior, confiança e ternura de coração. A maior parte (ou a totalidade) de nossos bens e alegrias não são nossos, mas vêm de Deus. Em São João da Cruz († 1591), o grande místico espanhol encontramos uma preciosidade espiritual sobre a comunhão com Deus que resulta da oração e da meditação de quem crê:

Oh! Quão ditosa é a alma que sente sempre Deus descansando e repousando em seu seio! Deus está ali habitualmente, como se descansasse num abraço com a esposa, na substância de sua alma, e ela o sente muito bem e o goza constantemente. Ele a absorve profundamente no Espírito Santo, enamorando-se dela com perfeição e delicadeza divina (In: Chama de amor viva. Canção 4.15).

Em muitas oportunidades, sem saber a quem nem como recorrer, algumas pessoas vivem em fuga, uma verdadeira alienação, que as leva a pensar que suas devoções se tratam de uma sã espiritualidade. Nessa fuga (de Deus, de si mesmo e da alteridade) perdem a consciência de sua real identidade cristã, esquecendo-se do sentido e da finalidade de suas existências. Perdem-se em funções sociais, burocráticas e vazias (às vezes até dentro da Igreja) e deixam de ter consciência de si mesmas e de seu verdadeiro compromisso. Tais pessoas se deixam anestesiar, pelo fazer-por-fazer da liturgia, do “movimento eclesial”, do ministério, do “grupo de oração”. Essa aridez de quem não ora e não medita a Palavra, é responsável, muitas vezes, pelo esvaziamento da fé.

Por isso, se a alma deseja avançar na perfeição, deve considerar bem em que mãos se entrega, pois, conforme o mestre, assim será o discípulo; conforme o pai assim será o filho. Se o mestre espiritual não tem experiência de vida espiritual, é incapaz de nela conduzir as almas que Deus chama, e nem sequer as compreenderá (Santo Afonso de Ligório).

Para corrigir estas distorções, o Espírito Santo dá a certos fiéis graças atuais, dons como sabedoria, fé, discernimento, fortaleza e entendimento, todos ordenados ao bem-comum. Aqueles que recebem e frutificam esses dons colocam em prática os preceitos da oração cristã. Ao contrário, alguns “líderes religiosos” que ensinam quase tudo sobre a atividade orante e esquecem de unir a mística à prática, a ad-oração à solidariedade, prestam um serviço incompleto, pois lhes falta compatibilizar as luzes do céu com as dores da terra. E isto, não-raro, produz certa alienação, uma falsa sensação de dever-cumprido, uma ilusão de céu-na-terra. Aos interessados informa-se que existem vários modos de se meditar, a saber:

• a oração – se aprofundada – pode se transformar em meditação;

• a meditação bíblica;

• o Rosário: a meditação sobre os mistérios da salvação;

• a meditação contemplativa (diante do sacrário);

• a meditação estática (a contemplação).

Meditar o que se lê (Escrituras e escritos espirituais) conduz a uma vigorosa comparação: “Minha vida está de acordo com os textos que li? O que falta? Antes de meditar, o homem, como o cego da parábola, pede: “Senhor, eu quero enxergar!” Depois, iluminado pelo Espírito ele pergunta: “Senhor, que devo fazer para obter o Reino?” ou “Que queres que eu faça?”.

Nós, ocidentais somos pouco afeitos à meditação. Muitos ignoram que meditar, além do contato com o Absoluto, traz uma ponderável paz de espírito e produz um esvaziamento das coisas ruins, exerce uma abertura diante de Deus, faz-nos refletir a vida e assumir novos propósitos. Hoje, as grandes empresas do Primeiro Mundo executam sessões de meditação com seus executivos, para organizar os pensamentos, estabelecer objetivos, rever os fracassos e consolidar processos de vida. Nesse esforço, os grandes místicos, especialistas em meditação comparam esta forma avançada de ler a Palavra em gesto de oração com o ato da alimentação:

1. Leve à boca

Comece a ler invocando as luzes do Espírito Santo; sinta seu perfume;

2. Mastigue

Tire um pensamento do texto e destaque um modelo (moral, de consolo, lição de vida, esperança);

3. Rumine

Torne a mastigar; repita várias vezes o mastigue do item anterior; com a fé aclare o texto que você leu;

4. Engula

Ao concluir a oração, esteja certo (dons da fé e da esperança) que Deus o ouviu e que você o escutou também;

5. Assimile

Adquira a certeza de que seu coração está em sintonia com Deus.

Para completar esse roteiro de meditação, use um canto adequado e finalize com uma grande ação-de-graças.

Por fim, no terreno prático, este autor toma a liberdade de colocar um modesto esquema, dividido em três estágios, na esperança de que o mesmo ajude os leitores a desenvolverem o exercício piedoso da meditação:

1º. Estágio

• oferecer-se, tornar-se disponível;

• colocar-se na presença de Deus;

• fazer uma “leitura espiritual” de algum trecho bíblico ou de algum teólogo ou autor cristão credenciado;

• agradecer a Deus por sua presença constante.

2º. Estágio

• orar ao Espírito pedindo os dons que propiciam o contato com o coração de Deus;

• refletir a “leitura espiritual”;

• meditar sobre a leitura: falar com Deus e escutá-lo.

3º. Estágio

• completar a reflexão;

• pedir (primeiro pelos outros e depois por nós mesmos);

• meditar sobre a generosidade, louvando-o;

• agradecer o atendimento de nossas preces.

Contemplarão Sua Face,

e o Nome do Altíssimo estará sobre suas frontes.

Apocalipse 22,4

Contemplação é o ato de mergulhar no mistério de Deus, ver a realidade com os olhos de Deus, saborear Deus. Observar e avaliar a vida, os fatos, os pobres, a situação do povo, com um novo olhar. As luzes do Espírito Santo ajudam o crente a contemplar as obras de Deus e a adorá-lo. A oração que parte do texto tende a tornar-se contemplação. Na contemplação não tem perguntas, nem respostas, mas um “ficar olhando para Deus”. É estar, tranquilamente, na presença de Deus. Na eternidade será assim, por isso é bom começar já.

A CONTEMPLAÇÃO

O verbete contemplação pode ser decomposto em com-templ-ação, o que nos dá uma idéia de estarmos em um templo (a presença do Senhor), prontos para nos colocar em atividade em prol de sua causa. No latim, o verbo contemplare indicava a ação de “olhar para um templo”, ou “admirar uma coisa sagrada”. Nesse aspecto, os gregos usam a expressão theoria (o verbo é theorêo, ) para caracterizar a contemplação, como o ato puro de “ver a Deus” No ato de contemplar, nosso coração volta-se integralmente para Deus, enviando a ele nossos clamores. É sabido que Deus se move pelo clamor de seus servos. Ele enxerga a angústia, mas quer que o fiel peça (na fé) a graça desejada. Quando se apresenta a Moisés, no episódio da “sarça ardente”, o Senhor diz:

Eu vi o sofrimento do meu povo, escutei seus clamores e resolvi descer para libertá-lo (cf. Ex 3,7-10)

Na complexidade da oração que se transforma em contemplação, o clamor se torna uma atitude inerente àquele que tem fé e deposita no Senhor todas as suas esperanças. Não é possível compreender a contemplação sem o clamor ao Deus da vida. No passado, diante dos perigos da morte e das tentações, o salmista pediu que Deus o ouvisse, e que seus clamores chegassem a ele:

Et clamor meus ad te veniat (Sl 17,1).

A contemplação ajuda a compreender os critérios de Deus, seus desígnios amorosos no trato com os homens. Na contemplação a gente vai pensar como Deus pensa; vai interpretar tudo segundo o seu pensamento. A contemplação produz frutos: paz, alegria, serenidade, consolação, alegria interior, gosto pelas coisas de Deus; gosto de Deus por ele ser nosso Pai, discernimento, capacidade interior de perceber onde age o Espírito de Deus e onde atua o espírito do mal.

O ato de contemplar a face de Deus é visto como a mais alta expressão da espiritualidade humana. Ela surge como a própria vida do espírito, plenamente despertada, ativa e consciente. Trata-se daquele temor espontâneo, reverencial e respeitoso diante do Sagrado. É um ato de gratidão a Deus por tantos dons, a partir da vida. Agradecemos pelo universo e pelo convívio com as outras pessoas, enaltecendo a vida, o amor e a esperança.

Existe a história daquele camponês francês que ficava horas e horas sentado na igreja. Quando o cura d’Ars perguntou-lhe o que fazia, ele respondeu que olhava para Deus e Deus olhava para ele, e isto era o bastante. Este camponês entendeu que o verdadeiro encontro com Deus está no olhar, no contemplar. Quando duas pessoas se amam, este amor se manifesta essencialmente através do olhar. O ato de contemplar também há de constituir a perfeição e o acabamento da nossa vida. A teologia nos diz que a vida eterna não é mais um ouvir a palavra, mas um contemplar. Na contemplação o crente esvazia-se de seus pensamentos fúteis, preocupações e paixões, tornando-se um-com-Deus. Quem adquire essa característica da mística não vai ver Deus como algo intangível, mas como o Absoluto, pois verá Deus em tudo.

Nosso contemplar aqui é uma antecipação da perfeição, um pré-sentir a eterna contemplação de Deus. Só na eternidade haveremos de contemplar a Deus como ele verdadeiramente é. O ato de contemplar a face de Deus está ligado à visão de uma luz interior. Deus brilha na alma humana como um espelho. Nesta atitude de oração o ser humano reconhece “como sua atitude é semelhante a uma safira que brilha clara e luminosa, no céu”. Contemplar a face de Deus, seja em uma atitude mística ou em uma visão de adoração real diante de Jesus Sacramentado, nos leva a mergulhar no mistério divino infinito.

No decorrer da história o conceito de vida contemplativa foi frequentemente associado, e com certa razão, ao de vida de oração. Embora, até por uma questão de carisma, a contemplação seja uma característica mais dos religiosos, monges e recoletos, ela também é desenvolvida, em muitos casos, por leigos, pais e mães de família, e também jovens. É indispensável que se adote a contemplação como um plus à nossa oração.

Nos santos e nos grandes místicos da Igreja temos as lições para a nossa espiritualidade. Orar, para Santo Antônio de Pádua († 1231), por exemplo, era contemplar a Deus, penetrando no mistério do Verbo encarnado e revelado, até onde fosse possível. Para os mestres franciscanos (e capuchinhos) não cessa de orar e contemplar quem não cessa de se colocar a serviço do outro, de sua própria salvação e de Deus. Agir bem, como sinal de comunhão com Deus, é a forma mais vigorosa de orar. A melhor oração é amar. Enfim, contemplação

• É uma intuição que, em seu nível inferior, transcende os sentidos. No nível superior transcende o próprio intelecto;

• Caracteriza-se por uma espécie de luz-nas-trevas, de conhecimento no desconhecimento;

• É uma obra de amor, e o contemplativo prova que ama, deixando todas as coisas, para mergulhar no vazio, no desprendimento e na noite. O fator decisivo da contemplação é a compreensão da imprevisível ação de Deus;

Esse conhecimento de Deus, no desconhecimento, não é intelectual, nem mesmo no sentido estrito, afetivo. Trata-se de um trabalho de união interior e de uma absoluta adesão ao amor divino. Nesse incrível contato com Deus, que se processa na obscuridade apenas iluminada pela fé e pelo amor, ocorre uma afinidade amorosa de ambas as partes. Do lado humano, ocorre o desapego das coisas materiais e sensíveis. Trata-se de um esforço generoso de renúncia ascética de si mesmo. É Jesus e o Espírito que dão ternura e vigor para a vida contemplativa.

Para desenvolver uma “leitura orante” da Bíblia é preciso ler a Escritura em espírito de oração, pois a Palavra de Deus é luz para meu caminho (Sl 118,105) A leitura orante da Bíblia, portanto, torna-se um meio, um instrumento para aprofundar o que Deus quer da minha vida dia após dia, é um exercício que me ajuda, aos poucos, a interiorizar as mesmas atitudes e comportamentos que foram do próprio Jesus, que obedeceu ao Pai até o último momento da sua existência.

O texto a se refletir ou meditar pode ser o Evangelho ou a leitura do dia, ou qualquer leitura da Bíblia que relate uma vocação, um chamado a partir de Abraão, os profetas, até chegar ao Novo Testamento, com a vocação de Maria, os apóstolos etc.

Em encontros, retiros e “oficinas de oração” já me perguntaram como é possível, sendo nós tão pecadores, nos aproximarmos do Pai, orando a ele? Podemos ousar somente porque Jesus, nosso Redentor, nos apresenta diante do Rosto do Pai, e o seu Espírito faz de nós filhos adotivos dele. O Espírito intercede por nós... Podemos assim orar o Pai Nosso com uma confiança simples e filial, com uma alegre segurança e uma audácia humilde, com a certeza de sermos amados e atendidos.

Uma vez que o Espírito Santo é o Mestre interior da oração cristã e “nós não sabemos o que devemos pedir” (cf. Rm 8,26), a Igreja exorta-nos a invocá-lo e a implorar sua presença em todas as ocasiões: “Vinde Espírito Santo!”. Para completar, temos algumas dicas finais:

• Orem sem cessar (1Ts 5,17)

• Se alguém dentre vocês sofre um contratempo, recorra à oração (Tg 5,13)

• Como são preciosas as vossas orações diante dos olhos de Deus (Santo Afonso)

• Quem não pede não recebe (Santa Teresa de Jesus)

• Peçam e receberão (Jesus Cristo)

Sobre oração, como sintonia perfeita com Deus, há um pedido de São João Maria Vianney, patrono dos presbíteros e de todos orantes que sintetiza o desejo de comunhão da alma humana:

Eu vos amo Senhor, e a única graça que vos peço é a de vos amar eternamente. Meu Deus, se a minha língua não pode repetir, a todo o momento, que vos amo, quero que o meu coração o repita tantas vezes quantas eu respiro.

A finalidade desta reflexão é ajudar os ouvintes e leitores cristãos a se colocarem em marcha na direção do Reino, da casa do Pai, animados pelos sacramentos, confortados pela Igreja, iluminados pelo Espírito Santo e ajudados pela oração que, como veremos, tem ternura e também muito vigor. O passo seguinte será desenvolver uma forma adequada para uma “leitura orante” da Bíblia.

ORAÇÃO E AÇÃO

Ora et labora

(reza e trabalha)

São Bento

O grande desafio da espiritualidade cristã é compatibilizar uma vida voltada para os apelos do Espírito na ambiguidade da vida material a que todos estão sujeitos. Não é escusado a ninguém, alienar-se em sua vida material, social, profissional, familiar, política, etc. É justamente nessas circunstâncias de nossa existência que devemos nos encontrar com Deus, sem fugir do mundo, mas relacionando-nos com o Infinito conforme nosso estado de vida.

Reside aí o desafio: viver uma vida cristã, espiritualizada e voltada para o alto, sem furtar-se à vida material e à dimensão sócio fraterna inerente a esse tipo de vida. A palavra espiritualidade é compreendida como a ação do Espírito Santo no cristão; age nele e através dele. O que Jesus disse aos discípulos se aplica a todos, leigos, padres e religiosos:

Vocês são a luz do mundo... Não pode ficar escondida uma cidade construída sobre um monte. Ninguém acende uma lâmpada para colocá-la debaixo de uma vasilha,

e sim para colocá-la no candeeiro, onde ela brilha para todos os que estão em casa. Assim também que a luz de vocês brilhe diante dos homens para que eles vejam as boas obras que vocês fazem, e louvem o Pai que está no céu (Mt 5,14s).

É fundamental que se insista na necessidade que os cristãos têm, independente de seu estado de vida, de descobrirem cada vez mais, eles próprios os caminhos de sua espiritualidade, de acordo com o estado de vida abraçado por cada um, sem que um queira viver em sua vida o tipo de espiritualidade do outro, conforme veremos no decorrer desta reflexão.

Não é difícil constatar que a nossa Igreja em geral não costuma valorizar adequadamente o potencial teológico-pastoral-missionário dos fiéis leigos. Embora haja uma ponderável plêiade de leigos e leigas bem preparados, poucos são chamados a exercer atividades que passem além da catequese básica, ministérios “extraordinários” ou serviços de “sacristão sênior”.

Certas paróquias, por exemplo, em seus tríduos, novenas e romarias, preferem as pregações de alguns padres, muitas vezes vazias e mais inconsistentes do que a oratória sacra e o testemunho de determinados leigos. Há certas pregações que se escuta por aí, que são um verdadeiro desastre! O que se observa é que, em termos de espiritualidade, aos leigos é atribuída uma capacidade muito superficial, subalterna, de segundo plano, como se espiritualidade só fizesse parte da mística de ordenados e monges. Hoje é pedida aos leigos uma postura missionária. Pena que a própria Igreja limite demais o desenvolvimento dessa missão e desses carismas. E aquela história conhecida: “não fazem e não deixam fazer...”.

Há tempos, depois de alguns confrontos e incompreensões, um conhecido teólogo brasileiro, franciscano, pediu dispensa de seu ministério. Logo depois a Igreja anunciou que, em atendimento ao seu pedido, ele havia sido reduzido ao estado laico. Reduzido? A idéia de redução, se não estou enganado, se aplica a algo como um rebaixamento, o que não é o caso. Mesmo porque, como não eram sacerdotes nem integrantes de quaisquer hierarquias, Jesus e seus apóstolos eram leigos. Eu entendo que nossa Igreja experimentará aquela expressiva atualização, uma renovação, de dentro para fora, preconizada desde João XXIII, quando aprender a aproveitar melhor o potencial profético de seus leigos, homens e mulheres. Para muitos, a espiritualidade dos leigos deve se restringir a três estágios:

a) ir à missa;

b) pagar o dízimo e ajudar a Igreja em suas necessidades;

c) assistir novenas, tríduos e procissões.

O fato é que o laicato arregimenta o maior percentual de pessoas, e não pode, qual uma massa meio informe, ser ignorado ou subutilizado como costuma acontecer. É fundamental que se insista na necessidade que os cristãos têm, cada vez mais, de descobrirem eles próprios os caminhos de sua espiritualidade, de acordo com a forma de vida abraçada por cada um, sem que um queira viver em sua vida o tipo de espiritualidade do outro, ou simplesmente se omitindo.

Deus quer que eu me envolva com ele, sem, no entanto, fechar os olhos à injustiça que sofre o irmão, o vizinho, o companheiro de caminhada. Essa opressão é uma tônica gritante na maioria dos países da América Latina. Em tudo ocorrem conflitos e desacertos. Na psicologia, vemos o conflito, segundo as teorias behavioristas, como um “estado provocado pela coexistência de dois estímulos que disparam reações mutuamente opostas e excludentes”.

Simplificando, há quem defina, igualmente, o conflito como “profunda falta de entendimento entre duas ou mais partes”. A vida humana e a existência dos cristãos não estão imunes, ocorrem em meio a muitos conflitos. O conflito possui diversos estágios, desde não-percebido, potencial, latente e manifesto. Na antítese do conflito surgem a misericórdia e a temperança como forma de organizar a vida cristã, mesmo sob o fogo do confronto.

A atitude cristã, como ensina São Paulo é a resposta à misericórdia de Deus. Ela abrange toda a existência concreta do homem. As propostas do mundo são variadas. Algumas delas são boas e outras conduzem ao conflito. Nessa conjuntura cabe a cada cristão oferecer a si mesmo como sacrifício vivo à vida e à justiça, sem se deixar contaminar pelo mal.

Não se amoldem às estruturas deste mundo, mas transformem-se pela renovação da mente, a fim de distinguir qual é a vontade de Deus: o que é bom, o que é agradável a ele, o que é perfeito (Rm 12, 2).

Eu notei desde que cheguei aqui, que muitos de vocês pertencem a “grupos de oração”. Vi todos falando e cantando, de forma entusiasmada no “fogo do Espírito Santo”, na Palavra e na prática aos sacramentos, etc. São atitudes louváveis, salutares e piedosas, sem dúvidas, mas todas apontar para uma espiritualidade “para dentro”. E o que é feito em termos de evangelização, testemunho e atitude missionária “para fora”? Ouvi falar muito em “A Palavra”, mas cabe perguntar sobre o que diz a Palavra? Fé e obras, oração e ação, escutar e colocar em prática. Não é assim?

A palavra de Deus é dinâmica; não pode permanecer presa em um templo, uma sala, um grupo ou uma ideologia. O pássaro só se mantém vivo porque voa. Com a Palavra de Deus acontece a mesma coisa. Se ficar restrita a simples reflexões, ela perde seu vigor. O verdadeiro cristianismo, exemplificado na construção de uma casa sobre a rocha (cf. Mt 7, 24) é “ouvir e colocar em prática”. São Tiago nos alerta que devemos ser executores da Palavra de Deus e não meros ouvintes (cf. 1,22).

A oração – ensinam os mestres beneditinos – é a procura da íntima união com Deus que se faz num diálogo pessoal e silencioso (oração particular) ou de maneira vocal e comunitária. O centro da vida de oração é a Celebração Eucarística, de que o cristão deve participar assiduamente. Nesse contexto a Missa alimentará cada vez mais os pensamentos, os afetos e os atos do seguidor de Jesus Cristo.

Essa dedicação à oração, no entanto, pode dar a alguns a sensação de uma espiritualidade completa, coisa acabada, salvação antecipada, onde apenas o ato de orar enfeixa toda a responsabilidade do ser-cristão. É o caso de alguns “grupos de oração”, onde... às vezes as pessoas usam e frequentam como instrumento de fuga: “Nosso grupo está afinado, chegamos a rezar 1000 Ave-Marias numa só noite”. No entanto, se formos olhar bem, a casa, o lar de algumas pessoas está uma bagunça, em todos os sentidos. Orar é salutar, mas precisa acontecer junto com a ação missionária, com a conversão e com o discernimento participativo. Ora et labora!

Mesmo assim, é significativo o número de pessoas leigas, que se dedicam aos trabalhos eclesiais, como catequese, organização, eventos sociais e religiosos, administração paroquial, serviços e movimentos, assessoramento de cursos e encontros, além dos ministérios extraordinários, bem como serviços mais simples, porém relevantes e indispensáveis. Aos leigos ainda deveria ser oferecido mais espaço decisório na Igreja.

Os leigos atuam na Igreja não por vocação, mas por con-vocação, uma vez que sua vocação específica e intransferível é a família, o mundo, as profissões, os direitos humanos e a comunicação. Aí eles devem perseverar e testemunhar de forma consciente e ativa seu ser-cristão. A vocação específica na Igreja é dos padres, dos monges e dos religiosos. A convocação é posterior à vocação, e deve ser exercida sem prejuízo da primeira. Ou seja, não é lícito você trabalhar na Igreja se isso prejudicar sua atividade familiar ou profissional. A ajuda na Igreja não deve ser apenas eclesial “As sacristias estão cheias de gente!”, dizia Dom Helder Câmara.

Deve haver mais cristãos trabalhando no mundo, nas escolas, nas favelas, nos meios de comunicação, nas profissões, na política, etc. A carga do “Deus-empregador” é mais leve. Enquanto os chefes e patrões deste mundo oprimem aqueles que para eles trabalham, pagando – na maioria das vezes – salários injustos, exigindo um número exagerado de horas trabalhadas, o Deus da Vida, mesmo sem pagar nada (pelo menos formalmente) alegra seus operários, pois os faz saber que trabalham para uma causa divina, para o próximo e para a amorização (um neologismo de Teilhard de Chardin) do mundo.

Os leigos imbuídos de missões proféticas e pastorais precisam se colocar ao serviço do Reino em favor da causa dos pobres, dos oprimidos, dos que sofrem e dos que carecem do conforto da Palavra de Deus. A promoção social se insere privilegiadamente no terreno da ação evangelizadora. Quando a pessoa está cansada, nas diversas circunstâncias da vida, Jesus acolhe e alivia. Sua carga nunca é pesada demais.

O nosso “Deus-patrão” conhece nossas limitações e potencialidades, por isto jamais dá tarefas além de nossa capacidade. Do mesmo modo, ele nunca vai fazer alguma coisa que nós poderíamos ter feito e não fizemos. O milagre existe, sim, mas jamais para suplementar nossa preguiça ou omissão. Ao contrário de tantos patrões que há por aí, Deus é justo, bondoso e reconhece nosso esforço.

Se todos esses “operários de Deus”, pelo mundo afora, cumprissem fielmente suas missões, se unissem e pensassem mais no outro do que em si próprios, não teríamos um mundo melhor, uma sociedade mais justa e famílias mais bem estruturadas? O que nos falta, então? Uma “atitude” de evangelização, transformadora, baseada na solidariedade...

O agir é uma consequência natural e necessária da própria condição humana; agimos porque vivemos. O cristão, membro do povo de Deus, existe e é destinado a produzir muitos frutos, a tornar os irmãos participantes da redenção, libertadora e salvadora, comprometendo o mundo com Cristo, a fim de modificar suas estruturas, ordenando este mundo, ajudando a recriá-lo, segundo o plano de Deus.

A vocação cristã é, por sua natureza, também vocação para o apostolado. E não é possível admitir um apostolado estático. Todo o apostolado, para se assemelhar a às práticas de Paulo, Pedro, João, Tiago e os demais amigos de Jesus, deve ser algo revestido daquele dinamismo que o Espírito Santo suscita nos que acolhem ao chamado do Mestre.

Como no organismo de um corpo vivo, nenhum membro se comporta de maneira meramente passiva, mas, unido à vida do corpo, também compartilha a sua operosidade, da mesma forma no Corpo de Cristo... “Tão grande é neste corpo a conexão e a coesão dos membros” (cf. Ef. 4,16). O membro que não trabalha para o aumento do corpo segundo sua medida, deve considerar-se inútil para a Igreja e para si mesmo. (Vaticano II – AA 2).

É o lema "Ora et labora" que dá estrutura a toda a vida cristã funciona como mola propulsora, a partir dos ensinamentos de São Bento. A oração significa a atitude definitiva do cristão, principalmente sob a forma de adoração, louvor e gratidão ao Senhor. É ela que alimenta e aprofunda a união da criatura com o Criador, e leva o cristão a participar, cada vez mais, da vida trinitária. É por isto que a oração ocupa um lugar de destaque em nossa vida cristã.

O trabalho é forma de disciplina e ascese, como também de transformação do mundo segundo o plano e os desígnios do Criador. O cristão se santifica não apesar do trabalho, mas mediante o trabalho. Este há de ser assumido não apenas como meio de subsistência, mas no intuito de servir a Deus e ao próximo.

Quem ora devidamente, se habilita a trabalhar em espírito de louvor e adoração a Deus, como o fez o Divino Mestre quando se dignou trabalhar com mãos humanas, pensar com inteligência humana, agir com vontade humana, amar com coração humano (Vaticano II – GS 22)

Em termos de atividade, a nossa Igreja, infelizmente, em muitos lugares, é mais litúrgica (sentada) do que missionária (dinâmica). Quando a gente fala em desenvolver um “projeto missionário”, ir à rua a procura das “ovelhas desgarradas”, de levar o evangelho àqueles que ainda não conhecem a boa-notícia, todos acham maravilhosa a idéia, mas tudo fica na mesma. Fica “tudo combinado e nada resolvido”. O grande problema é que se fazem reuniões demais, às vezes todas as noites da semana, para tratar assuntos ocos, sem a mínima ressonância prática, de onde nada ou pouca coisa resulta.

Os movimentos leigos tendem a fazer seus participantes cair naquela anestesia de gueto. Há dias escutei um padre falar que tais encontros não convertem e não evangelizam. De que adianta fazer um encontro, onde 140 casais “trabalham” e 50 fazem, se nas semanas posteriores não se tem noticia da vida cristã deles? Há como que uma retração ao serviço. Muitos só vão aparecer no próximo ano (se não antes, em festas e jantares) para “trabalhar” em novos encontros. Isto não é evangelização!

Os que vêm diuturnamente aos templos não precisam tanto ser evangelizados quanto os que estão lá fora, e que são a maioria. Isto nem sempre é tratado com o devido cuidado. É difícil desinstalar as pessoas e provocar uma ruptura na inércia das estruturas. Ficamos sentados, esperando que eles venham à missa, à novena e pagar o dízimo e não saímos de porta-em-porta a anunciar a novidade do Reino. Em matéria de espiritualidade gostamos mais de receber do que dar; ouvir do que falar; ser ajudado do que ajudar. Enquanto isto as seitas (eu assisti nesta semana na tevê) festejam a presença de 50 mil pessoas numa jornada de avivamento. Sabem de onde saíram essas pessoas? De nossos templos! E por que saíram? Talvez porque a nossa mensagem (se é que houve) não os seduziu.

Sem a ação do leigo, cristã e evangelizadora, a Igreja deixa de executar sua missão essencial: evangelizar. Um padre sozinho não evangeliza ninguém... A tarefa de evangelização não pode ficar restrita apenas aos padres e aos religiosos. Todos têm o dever e a obrigação “botar a mão na massa”. Um membro da Igreja, portanto, não pode ficar parado, em autocontemplação, no estudo ou na oração. Incorporado ao Ressuscitado e à Igreja, ele dá a todos os atos de sua vida e a todas as estruturas onde atua, uma ponderável dimensão cristã. Mas há obstáculos! Claro que há! Dentro de nós habita um homem velho, preguiçoso e tendente ao “deixa para depois”. Estes são os principais obstáculos.

Conta uma fábula, extraída do sonho de um místico contemporâneo, que uma enorme pedra caiu sobre numa estrada bloqueando-a completamente, impedindo as pessoas de passarem. As reações foram diversas; uns sentaram e começaram a choramingar. Outros, apenas cruzaram os braços; alguns se mostraram indiferentes ao problema e deram volta. Um rapaz tentou ajudar; pegou um galho que estava ali perto e tentou fazer uma alavanca para mexer a pedra. A pedra pesava demais e o galho não aguentou e quebrou. Um homem, no entanto, foi buscar ferramentas adequadas, convocou outras pessoas, e todos começaram a atacar a enorme pedra. Aos poucos a pedra foi sendo quebrada. Dos pedaços grandes fizeram alicerces; os pedaços menores serviram para muros. Os cascalhos foram empregados em pavimentar a estrada. Após a realização de todo o trabalho notaram, que debaixo da pedra havia uma boa quantidade de pedras preciosas, que foi repartida entre os que tiveram a coragem de derrubar o obstáculo. Cada um tire suas conclusões.

A ação cristã no mundo deve ser prioritária e ter a mística como embasamento. A mística, porém, deve ser um meio e não um fim. Todas as exortações teóricas da Igreja apontam para um desdobramento necessário dos cristãos no sentido de uma relação vertical com Deus e horizontal com os irmãos. É o ora et labora dos filhos de São Bento. Isto é evangelizar! E evangelizar, nunca é demais enfatizar, é levar, dentro de uma situação concreta, a boa notícia do Reino de Deus, comunicada aos homens por Jesus Cristo, na força do Espírito Santo, ao homem todo e a todos os homens, para transformá-los a partir de dentro, de modo que essa boa notícia tenha eficácia aqui e agora.

A missão de evangelizar é a mais profunda identidade do povo de Deus. São Paulo chega a afirmar “ai de mim se eu não evangelizar!”. Evangelizar é absorver as lições de espiritualidade e anunciar a novidade de Jesus, dizendo que a salvação está à nossa disposição: “vocês serão meus amigos se fizerem o que eu mando”... se produzirem frutos (cf. Jo 15).

A espiritualidade requer de todos a visão de fé prática, mística e crítica, em mesmas proporções. Nesse particular a fé vê o invisível, espera o impossível e recebe o inacreditável. Vivemos na carne com olhos no Infinito; movimentamo-nos na matéria, com o desejo das realidades sobrenaturais; caminhamos na esperança, expectando a certeza. Espiritualidade é uma atitude humana, prática, com consequências espirituais. Nessa firme convicção, Jesus deve ser para nós o Senhor que salva e liberta.

Você não precisa ser um brilhante orador para levar o evangelho aos outros. Basta dar um testemunho de amor, partilha, participação. Sua atitude será sempre um argumento eloquente; não são necessárias palavras; basta o gesto fraterno. Como agir, então, para praticar uma efetiva atitude cristã, que vá além das palavras?

• ser competente, responsável e comprometido com as suas atividades;

• fazer desabrochar o germe do cristianismo presente em todas as realidades, tantas vezes escondido e asfixiado pelo egoísmo, explorações, corrupções e interesses escusos;

• ser bom pai/mãe/amigo/amiga/esposo(a)/chefe, pessoa coerente, justa e correta em todas as circunstâncias da vida;

• estar sempre disposto a servir desinteressadamente ao próximo, sem esperar recompensa, jamais se omitindo, não se acomodando nem se deixando levar pela preguiça ou pela “instalação”.

Agindo desta forma, em paralelo com a oração, com a frequência aos sacramentos e pela meditação da Palavra, o cristão contribui:

• para que os costumes sejam mais sadios e puros;

• para que as leis se tornem mais justas e igualitárias, fontes da autêntica inspiração cristã, e voltadas para o bem comum;

• para que a sociedade humana seja mais impregnada do verdadeiro amor cristão, mais moralizada e mais fraterna;

• para que o trabalho e as profissões, as estruturas políticas, sociais, econômicas sejam mais fraternas, verdadeiros meios de promoção da dignidade humana.

A Igreja de Cristo – e todos devemos batalhar nesse sentido – deve ser uma instituição que transforma e se transforma. É a nossa ação cristã que deve transformar o mundo. Se ele não é o que desejamos é porque ainda não conseguimos implantar nele os frutos da verdadeira atitude cristã. Nesse particular, ou nossa ação cristã é transformadora ou deixa de ser cristã.

Não se pode, de forma alguma, confundir ação cristã com assistencialismo, paternalismo, sacramentalismo ou esmola. É preciso sentir na ação o mistério da graça de Deus agindo através de nossa atitude. Devemos orar, sim, pedindo a Deus que nos inspire ao apostolado e às atividades missionárias. A oração é o primeiro passo, é a instância que nos vai dar o apoio para algo maior que é a atitude missionária, a evangelização e o serviço à sociedade. A ação praticada pelos cristãos deve ser profunda, e como profunda, crescente, autêntica e participativa. E por isso transformadora. A transformação deve ser a “pedra de toque” que identifica a nossa ação. Se conseguiu transformar, é ação cristã. Caso contrário, ainda há alguma coisa a ajustar.

Jesus Cristo, certamente lamenta pelos que viram as costas à pregação de seu evangelho e às palavras de sua Igreja e de seus profetas e pastores. Ele não nos quer forçados, mas disponíveis, alegres e por inteiro. Ao verdadeiro cristão cabe compatibilizar fé e ação, oração e atitude missionária; tudo com equilíbrio e sem exageros. Se um irmão precisa de algo vital para sua sobrevivência, e nós, cegos à realidade, dizemos “vá em paz, vou orar por você”, será que estamos justificados perante Deus?

Esta é uma situação comum de acontecer. Quantas vezes notamos irmãos em condições dramáticas e, em vez de assumirmos sua causa, prometemos apenas incluí-los em nossas rezas? Claro que a oração, como carro-chefe da nossa espiritualidade tem uma força imensa quando praticada com fé. Mas, em algumas ocasiões, orar é tentar o Espírito Santo, quando a solução depende de nós, de nos mexermos, assumindo nosso papel, de acordo com o que a situação se nos impõe (A. M. Galvão - As obras da fé. Ed. Ave-Maria, 1993).

O compromisso cristão não se reduz à simples prática de atos de religiosidade, de assistencialismo social e atitudes de bom comportamento, às vezes vazios de conteúdo evangélico. Atitude cristã é, antes de tudo, uma vida capaz de provocar um despertar de consciência, na luta contra o mal, contra as estruturas escravizantes, para o soerguimento do homem e consequente instauração do Reino de Deus.

A LEITURA ORANTE DA BÍBLIA

Orem sem cessar (1Ts 5,16)

A chamada “leitura orante” da Bíblia foi uma prática, como uma “febre que perpassou algumas comunidades/paróquias até o final do ano passado, e que hoje caiu um pouco ou, como se diz por aí, “saiu da moda”.

Depois de refletirmos sobre o vigor e a ternura da oração, podemos aprofundar mais nosso estudo, buscando alguns subsídios a respeito daquilo que os místicos chamam de “leitura orante da Bíblia”, também conhecida como lectio divina, que nada mais é que um aprofundamento a partir da espiritualidade que provém da leitura e da meditação das Sagradas Escrituras.

Muitos traduzem Lectio Divina por leitura divina, outros por leitura orante. O que nos importa é o valor que esse método tem para nossa vida espiritual. A Lectio Divina é resultado da prática da leitura que os cristãos faziam e fazem da Bíblia. Essa prática usada pelos cristãos, é um resquício da tradição das comunidades do Antigo Testamento. As comunidades liam os textos sagrados, cuja essência era passada de geração em geração.

Trata-se de uma leitura atenta e sem pressa. Cada dia é meditado e contemplado um texto escolhido e preparado de antemão. Tal leitura não tem apenas a finalidade de satisfazer a curiosidade intelectual do leitor. Ela tem como objetivo alimentar a vida de fé do cristão, fortalecer a união com Deus e animar o apostolado. O Vaticano II, na Constituição Dogmática “Dei Verbum”, sobre a Revelação Divina diz que: “A Lectio Divina é a escuta religiosa e piedosa da leitura sagrada da Escritura” (DV 10). Pressupõe sempre uma atitude de fé orante e abertura de coração. Leitura orante é espiritualidade.

O Concílio Vaticano II já dizia que “só pela luz da fé e meditação da Palavra de Deus, pode alguém, sempre e por toda a parte, reconhecer Deus, em quem vivemos e nos movemos e somos (At 17,28), procurar em todo o acontecimento a Sua vontade, ver Cristo em todos os homens” (AA 4). A partir deste trecho, podemos deduzir que a leitura e a meditação da Palavra de Deus se tornam fundamentais para quem está em busca da própria vocação e do próprio chamado. É a Palavra que forma e dá vida ao Cristo em nós, que aos poucos irá nos revelar o plano e o projeto de Deus em nossa vida.

Tratando-se de um chamado divino, a vocação é algo de sobrenatural, que não pertence ao humano. É Deus quem chama, Foi ele que pensou em nós desde a fundação do mundo para colaborarmos com o seu Reino. Quando Jesus diz “não foram vocês que me escolheram, mas fui eu que os escolhi” (Jo 15,16), queria justamente sublinhar isso.

A leitura orante da Bíblia, portanto, torna-se um meio, um instrumento para aprofundar o que Deus quer da minha vida dia após dia. Trata-se de um exercício que me ajuda, aos poucos, a interiorizar as mesmas atitudes e comportamentos que foram do próprio Jesus, que obedeceu ao Pai até o último momento da sua existência.

A coisa mais importante será encontrar um tempo durante o dia, para dedicar-se à leitura e à meditação da Palavra de Deus. O lugar pode ser a igreja ou até mesmo um quarto da casa ou um lugar sossegado, como nos sugere o próprio Jesus quando nos diz: “...quando orares, entra no teu quarto e, fechando a tua porta, ora ao teu Pai que está lá, no segredo...”. (Mt 6,6)

O texto a se refletir ou meditar pode ser o Evangelho ou a leitura do dia, ou qualquer leitura da Bíblia que relate uma vocação, um chamado a partir de Abraão, os profetas... até chegar ao Novo Testamento, com a vocação de Maria, os apóstolos etc.

INICIANDO

Antes de começar a “lectio divina”, fazer um momento de silêncio pensando que vou encontrar o Senhor. Peço a Deus perdão pelas minhas ofensas porque a pureza do coração e a humildade são características fundamentais para entrar na leitura do texto bíblico. É imprescindível orar ao Espírito Santo pedindo (“Veni creator Spiritus...”) suas luzes.

Num segundo momento, coloco-me na presença de Deus, rezo um Pai Nosso tentando olhar-me como Deus me olha. No fim, peço ao Pai o dom do Espírito Santo porque a Bíblia é um livro inspirado por Deus e, portanto, deve ser lido e interpretado com a ajuda do Espírito Santo.

PRIMEIRO PASSO

A leitura do texto

A leitura consiste em alimentar-se da Palavra. Ela deve ser feita com atenção, com serenidade, sem subestimar o que pode parecer secundário, interpretando corretamente o sentido histórico. É importante ler e reler o texto, tentando compreender o que se acabou de ler, procurando questionar-se sobre o sentido das palavras e prestando atenção sobre o que elas querem nos dizer. É preciso tomar a Bíblia e ler com convicção de que Deus nos fala. Em atitude de interiorização, silenciar para ouvir Deus.

Faça-se em mim segundo a tua Palavra.

Ao iniciar a Leitura Orante da Bíblia, você não vai estudar; não vai ler a Bíblia para aumentar conhecimentos nem preparar algum trabalho apostólico; não vai ler para ter experiências extraordinárias. Vai ler a Palavra de Deus para escutar o que Deus lhe tem a dizer, para conhecer a vontade dele e viver melhor o Evangelho de Jesus Cristo. Em você devem estar a pobreza e a disposição que o velho Eli recomendou a Samuel: “Fala, Senhor, que teu servo escuta!” (1Sm3,10). Deve estar a mesma atitude obediente de Maria: "Faça-se em mim segundo a tua Palavra"(Lc 1,38).

Poder escutar Deus não depende de você nem do esforço que fará, mas só e unicamente de Deus, da sua decisão gratuita e soberana de entrar em contato com você e de fazer com que possa ouvir a sua voz. O ponto de partida da Leitura Orante deve ser a humildade. Saber recolher-se à sua própria insignificância e dignidade.

Abrindo a Bíblia, você deve estar bem consciente de que está abrindo um livro que não é seu, mas da comunidade. Fazendo a Leitura Orante, você está entrando no grande rio da Tradição da Igreja, que atravessa os séculos. A Leitura Orante é o barquinho que o carrega pelas curvas deste rio até o mar. O clarão luminoso que nos vem do mar já clareou a “noite escura” de muita gente. Mesmo fazendo sozinho a Leitura Orante da Bíblia, você não está só, mas unido aos irmãos que, antes de você, procuraram “meditar dia e noite na lei do Senhor” ( Sl 1,3). São muitos! Por isso “permaneça firme naquilo que aprendeu e aceitou como certo. Você sabe de quem o aprendeu!” (2Tm 3,14).

SEGUNDO PASSO

A meditação

Através da meditação se examina a Palavra, se guarda no coração como fez Maria, que “conservava cuidadosamente todos os acontecimentos e os meditava no seu coração” (Lc 2,19). O objetivo deste passo é chegar ao conhecimento da verdade que está contida na Palavra. O termo usado por muitos autores aqui é “mastigar e ruminar” o texto bíblico para aprofundar e penetrar nas palavras e mensagens. Atrás de cada palavra está o Senhor que me fala. Meditar é ter uma correta atitude interpretativa diante da Bíblia. A leitura atenta e proveitosa da Bíblia deve estar marcada, do começo ao fim, por uma atitude interpretativa que tem alguns passos básicos: a) Leitura, b) Meditação, c) Oração, d) Contemplação. Estes quatro aspectos sempre formaram a espinha dorsal da verdadeira espiritualidade.

O passo ou atitude fundamental aqui é conhecer, respeitar, situar. Antes de tudo, você deve ter a preocupação de investigar: “O que texto diz em si?” Isto exige silêncio. Dentro de você, tudo deve silenciar, para que nada o impeça de escutar o que o texto tem a dizer, e para que não aconteça que você leve o texto a dizer só aquilo que gosta de escutar.

Orem sem cessar (1Ts 5,16)

Passo ou Atitude: Meditação: ruminar, dialogar, atualizar. Você também deve ter sempre a preocupação de se perguntar: “O que o texto diz para mim, para nós?” Neste segundo passo, você entra em diálogo com o texto, para que o sentido se atualize e penetre a sua vida. Como Maria, rumine o que escutou (Lc 2,19.51), e assim descobrirá que “a Palavra de Deus está muito perto de ti: está na tua boca e no teu coração, para que a ponhas em prática” (Dt 30,14).

O passo ou atitude que cabe aqui é: orar, suplicar, louvar, recitar. Além disso, você deve estar sempre preocupado em descobrir: “O que o texto me faz dizer a Deus?” É a hora da prece, o momento de vigiar em orações. Até agora, Deus falou para você; chegou a hora de você responder a ele. Aqui é importante recordar outros passos bíblicos paralelos, a compreender e confrontar o texto com a minha vida ou com experiências do passado, estimular o desejo de saber o que Deus quer de mim...

TERCEIRO PASSO

A oração

Vou ofertar na oração o que a leitura e a meditação do texto me fizeram conhecer e desejar. Neste momento falo com o Senhor de amigo para amigo sobre aquilo que o Espírito me inspirou. A oração, portanto, se torna uma entre as possíveis respostas ao apelo do Senhor, é uma reação que segue ao toque que Deus operou no meu coração através da sua Palavra.

E assim a Palavra de Deus se torna uma Luz para o meu caminho, é algo que orienta os meus passos, o meu viver. Conforme estou vivendo a minha vida, posso pedir neste diálogo com Deus que ele me oriente, posso pedir-lhe perdão pelas minhas ofensas, louvá-lo e agradecer por todos os auspiciosos benefícios recebidos.

Se estiver pensando no meu futuro, posso aproveitar este momento para pedir ao Senhor a luz necessária para fazer a sua vontade e encontrar o caminho que ele desde sempre traçou para mim. É a hora de nos colocarmos em suas mãos amorosas. Às vezes nos perguntam qual a diferença entre orantes e “rezadores”. Eu costumo dizer que está em trocar a qualidade pela quantidade. Quem são os “orantes”?

• pessoas que fazem da oração sua própria identidade

• estilo de vida (espiritualidade)

• o caminho do bem-estar espiritual-físico,

• equilíbrio emocional.

Os “rezadores” são aqueles que, por conta da repetição de orações decoradas e proferidas sem muita consistência, acham que vão ser ouvidos ou atendidos.

QUARTO PASSO

A contemplação

Colocar-se sob o julgamento da Palavra é o meio eficaz para chegarmos à contemplação. O resultado, o 4º passo, o ponto de chegada da Leitura Orante é a contemplação: enxergar, saborear, agir. Contemplação é,

• ter nos olhos algo da “sabedoria que leva à salvação” (2Ts 3,15);

• começar a ver o mundo e a vida com os olhos dos pobres, com os olhos de Deus;

• assumir a própria pobreza e eliminar do seu modo de pensar aquilo que vem dos poderosos;

• tomar consciência de que muita coisa da qual você pensava que fosse fidelidade ao Evangelho e à Tradição da Igreja, na realidade nada mais era do que fidelidade a você mesmo e aos seus próprios interesses e ideias;

• saborear, desde já, algo do amor de Deus que supera todas as coisas;

• mostrar pela vida que o amor de Deus se revela no amor ao próximo;

Não se esqueça de dizer sempre: “faça-se em mim segundo a tua Palavra” (Lc 1,38). Esta é uma “atitude-chave” que ilumina os grandes orantes.

Resumindo:

• A leitura responde a pergunta: O que diz o texto?

• A meditação responde: O que diz o texto para mim, para nós?

• A oração responde: O que o texto me faz dizer a Deus?

• A contemplação ajuda a responder: Estou pronto para a missão?

• O que o estudo do texto me leva a fazer?

Para que a sua Leitura Orante não fique entregue só às conclusões dos seus próprios sentimentos, pensamentos ou caprichos, mas tenha firmeza maior e seja realmente fiel, é importante você levar em conta três exigências fundamentais:

1ª. Exigência: confrontar com a fé da Igreja. Confronte sempre o resultado da sua Leitura com a comunidade a que você pertence, com a fé da Igreja viva. Do contrário, pode acontecer que o seu esforço não o leve a lugar algum (cf. Gl 2,2).

2ª. Exigência: confrontar com a realidade. Confronte sempre aquilo que você lê na Bíblia com a realidade que vivemos. Quando a Leitura Orante não alcança o seu objetivo na nossa vida, a causa nem sempre é falta de oração, falta de atenção à fé da Igreja ou falta de estudo crítico do texto. Muitas vezes, é simplesmente falta de atenção à realidade que vivemos. Quem vive na superficialidade, sem aprofundar sua vida, não pode atingir as verdadeiras fontes da espiritualidade.

3ª. Exigência: confrontar com o resultado da exegese. Confronte sempre as conclusões da sua leitura com os resultados da exegese bíblica que investiga o sentido do texto. A Leitura Orante – é verdade – não pode ficar parada na Letra; deve procurar o sentido do Espírito (2Cor 3,6) . Mas querer estabelecer o sentido do Espírito sem fundamentá-lo na Palavra é o mesmo que construir um castelo no ar. É cair no engano do fundamentalismo. Hoje em dia, quando tantas ideias novas se propagam, é muito importante ter bom senso. O bom senso se alimenta do estudo crítico da Palavra.

Essa forma de leitura orante da Bíblia nos qualifica, obviamente, de modo muito vivo para anunciar esta Palavra aos outros e cria em nós o elã missionário, o impulso de levar outros a se encontrarem com Jesus Cristo vivo, no Espírito Santo. E Jesus nos conduzirá ao Pai.

Orem sem cessar (1Ts 5,16)

O autor é Pregador de retiros de espiritualidade, Biblista e Doutor em Teologia Moral. Este texto faz parte de um conjunto de meditações em um retiro realizado numa comunidade carismática em Três Lagoas, MS, em 2002.