A Autoridade de Jesus

O EVANGELHO DE DEUS

O Evangelho de Marcos começa com as palavras “princípio do evangelho de Jesus Cristo, Filho de Deus”. Uma vez que Marcos é o mais antigo dos sinóticos, ele mostra que a Igreja desde cedo creu que Cristo não era apenas um homem bom, um profeta ou mestre, mas o Filho de Deus, em um sentido absolutamente singular. A seguir ele cita Ml 3.1 e Is 40.3 para apresentar o ministério de João Batista, o mensageiro que viria adiante de Jesus para anunciar a sua chegada, chamando o povo ao arrependimento. Nessas profecias, o mensageiro vem para anunciar a vinda do próprio YHWH, O Deus Criador, o que mostra que Jesus Cristo é o Deus do Antigo Testamento.

Como resultado da pregação de João, “toda a província da Judéia e todos os habitantes de Jerusalém” (Mc 1.5) vinham até ele para confessarem seus pecados e serem batizados. Não basta apenas nos arrependermos, mas precisamos também confessar que somos pecadores. Contudo, apesar do aparente sucesso, João permanece humilde, usando roupas feitas de pêlos de camelo e se alimentando de gafanhotos e mel silvestre; só assim ele podia ser um arauto adequado ao Servo de Muitos. João reconhecia sua pequenez diante Daquele que anunciava, ensinando publicamente que não era digno de desatar-lhe as correias das sandálias.

No versículo 8, o Batista afirma que aquele que estava por vir batizaria os crentes com o Espírito Santo, e não apenas com água, como ele fazia. Nós podemos batizar o corpo, mas Cristo batiza o homem interior. A tradução que tenho usado, a Almeida Revista e Atualizada, verte de modo favorável à aspersão, dizendo que João batizava COM água e que Jesus batizaria COM o Espírito. John Gill[1], ao contrário, argumenta que a tradução “com” está errada, pois a preposição grega "en" não indica, nesse texto, um instrumento, mas um local. A favor disso vemos que a própria ARA traduz "en" no contexto como “NA profecia de Isaías” (v.2), “NO deserto” (v.3 e v.4) e “NO rio Jordão” (v.5). Por isso, segundo essa interpretação, João batizava na água (ou seja, imergindo) e Jesus batiza no Espírito.

Naqueles dias, veio Jesus de Nazaré e por João foi batizado. Logo ao sair da água, o Espírito desceu sobre ele em forma de pomba e foi ouvida uma voz dos céus: “Tu és o meu Filho amado, em ti me comprazo”(1.11). Isso marcou o início do ministério de Cristo. Jesus inaugurou aqui o caminho que todos os seus seguidores precisariam percorrer: o batismo para remissão de pecados, o derramamento do Espírito Santo e o chamado para trabalhar na proclamação do Reino de Deus.

Logo após o batismo, Jesus foi levado pelo Espírito ao deserto. Aprendemos disso que não podemos fazer nada de importante na vida sem uma comunhão profunda com o Senhor. O próprio Jesus precisou estar mais esse tempo a sós com Deus e com Satanás antes de começar Seu ministério. Se Jesus precisava estar em comunhão com o Pai para fazer alguma coisa, quanto mais nós? Perseveremos, portanto, na oração, especialmente quando formos executar alguma tarefa importante.

Depois de João ter sido preso, foi Jesus para a Galiléia, pregando o evangelho de Deus, que é resumido nas seguintes palavras: “O tempo está cumprido, e o reino de Deus está próximo; arrependei-vos e crede” (Mc 1.15). Segundo o Rev. Isaias Pereira Júnior[2], quando Cristo diz que “o tempo está cumprido”, Ele se refere à realização das promessas do Antigo Testamento em relação ao Reino de Deus, que o Rev. define como o “poder de Deus em ação entre os homens” por meio do Cristo. Em outras palavras, o evangelho é uma declaração da autoridade de Deus por meio de Jesus na terra. O arrependimento e a fé são o meio pelo qual você atravessa a porta de entrada do Reino, que é Cristo, e se submete voluntariamente a essa autoridade.

Caminhando junto ao mar da Galiléia, Jesus viu os irmãos Simão e André, que lançavam a rede ao mar, porque eram pescadores. Disse-lhes: “Vinde após mim, e eu vos farei pescadores de homens” (Mc 1.17). Eles abandonaram tudo e O seguiram. O mesmo fizeram Tiago e João e outros homens. Cristo colheu os frutos da pregação de João Batista, pois eles creram no Batista e, ao verem Jesus, seguiram-no imediatamente. De certa forma, todos os crentes em Jesus são chamados a exercer essa mesma função de arauto de Cristo, preparando as pessoas, por meio da pregação do Evangelho, para o momento que o próprio Espírito Santo entrará nos corações delas e os conduzirá a Cristo.

Jesus e seus primeiros discípulos entraram em Cafarnaum, e, logo no sábado, foi ensinar na sinagoga. As pessoas ficaram maravilhadas com o Seu ensino, porque falava “como quem tem autoridade (exousian) e não como os escribas” (1.22). Exousia significa um tipo de poder espiritual delegado por Deus a alguém para exercer a Sua vontade. A exousia de Jesus não se limita aos homens, mas inclui os próprios demônios, que obedeciam às suas ordens (Mc 1.24-27); nessa passagem vemos tanto a rebeldia do demônio, que falou aquilo que Cristo não queria que ele falasse, quanto a autoridade de Jesus, que não permitiu que ele falasse uma palavra sequer após ordenar-lhe silêncio. Essa autoridade era tal que até perdoar pecados e curar doenças incuráveis Jesus pode (2.10-12).

Tal autoridade também é delegável, de maneira que a seus discípulos Cristo também permitiu que expelissem demônios (3.14-15, 6.7). Com ela, porém, nós recebemos também uma grande responsabilidade, porque a vinda de Cristo é “como um homem que, ausentando-se do país, deixa a sua casa, dá autoridade aos seus servos, a cada um a sua obrigação, e ao porteiro ordena que vigie” (13.34). Não sabemos quando Cristo voltará, portanto, devemos estar alertas, exercendo a exousia que Ele nos deu para a expansão do Reino (13.35-37).

UMA CURA MAIS PROFUNDA

Aproximou-se de Jesus um leproso rogando-lhe, de joelhos, que o purificasse. Lepra aqui não é exatamente o que nós chamamos de hanseníase hoje, mas uma palavra que se referia a vários tipos de doenças de pele. Jesus, profundamente compadecido, estendeu a mão, tocou-o e disse-lhe: “Quero, fica limpo!” (1.41). No mesmo instante, lhe desapareceu a lepra.

Note que o homem reconheceu que não tinha nenhum direito àquela cura: “se quiseres...”. Jesus não o curou porque houvesse nele algo que o fizesse merecedor. Ele teve compaixão e decidiu aliviar o seu sofrimento. Isso precisa ficar bem claro na nossa mente quando oramos: nós não temos direito a nada. Jesus tem toda a autoridade para conceder o que nós pedimos ou não.

Cristo lhe fez uma “veemente advertência” (1.43) para que não contasse a ninguém o que aconteceu, mas cumprisse a Lei de Moisés, que exigia que aquele que fosse purificado de lepra se mostrasse ao sacerdote, que o declararia limpo. Isso seria todo o “testemunho ao povo” que Jesus queria. Contrariamente, o homem saiu divulgando o que aconteceu, e, como resultado, Cristo não pôde mais entrar publicamente em qualquer cidade. Como sempre, a nossa desobediência pode tornar-se um obstáculo para o agir de Deus. É claro que o Senhor é soberano, de modo que esse impedimento já estava previsto e orquestrado por Ele, mas, do nosso ponto de vista, quando não obedecemos às ordens de Deus, sempre podemos enfrentar consequências ruins.

Dias depois, entrou Jesus de novo em Cafarnaum, e logo correu a notícia de que Ele estava em casa. Muitos afluíram para ali, tantos que nem mesmo junto à porta eles achavam lugar; e Jesus lhes anunciava a palavra. Quatro homens tentaram levar um paralítico até Jesus, mas, não podendo aproximar-se dele por causa da multidão, abriram um buraco no telhado e baixaram o leito em que jazia o doente diante de Cristo. Vendo-lhes a fé, Jesus disse ao paralítico: “Filho, os teus pecados estão perdoados” (Mc 2.5).

Tanto o Evangelho de Lucas quanto o de Marcos colocam esses dois relatos de cura descritos acima juntos. Parece-me intencional, pois a comparação entre eles pode nos ensinar várias coisas importantes. Para começar, nossas orações nem sempre serão respondidas da maneira que nós queremos. O paralítico foi até Jesus para conseguir uma cura, mas Ele não lhe respondeu como o esperado; antes, declarou que seus pecados estavam perdoados. Jesus até chegou a curá-lo no fim, mas nem sempre Deus fará aquilo que nós pedimos. Contudo, Ele sempre fará o melhor.

Por que ao invés de curar o homem num primeiro momento, Jesus perdoou os pecados dele? Porque a libertação espiritual é mais importante do que a cura física. Tanto o leproso quanto o paralítico queriam uma cura física. Mas ao primeiro Jesus deu só a cura física, e aquele homem saiu desobedecendo. Mas ao paralítico Jesus curou sua alma ao perdoar seus pecados. Ele fez infinitamente mais do que aquele homem pensava.

Mas alguns dos escribas viram tudo e arrazoavam em seu coração, pois não admitam a autoridade de Jesus: “Por que fala ele deste modo? Isto é blasfêmia! Quem pode perdoar pecados, senão um, que é Deus?” (2.7). E Jesus, conhecendo-lhes o íntimo, disse-lhes: “Por que arrazoais sobre estas coisas em vosso coração? Qual é mais fácil? Dizer ao paralítico: Estão perdoados os teus pecados, ou dizer: Levanta-te, toma o teu leito e anda?” (2.8-9). Então, para que eles reconhecessem Sua autoridade, disse ao paralítico: “Levanta-te, toma o teu leito e vai para tua casa” (2.11). O paralítico se levantou e se foi, causando a admiração geral e glorificando a Deus.

Depois disso, saiu Jesus para junto do mar, uma multidão veio ao seu encontro, e Ele os ensinava. Quando ia passando, viu a Mateus, a quem Marcos chama de Levi, sentado na coletoria de imposto. Disse-lhe: “segue-me!” (2.14), e ele o seguiu. Mateus era um publicano, alguém a serviço dos romanos para cobrar impostos dos judeus, motivo pelo qual eram vistos como traidores pelo povo. Ainda assim Jesus o chamou para uma nova vida. Mais tarde Mateus promoveu um banquete na sua casa, chamando Jesus e seus discípulos, bem como muitos conhecidos como pecadores; Lucas 5.29 acrescenta que o banquete era em honra ao próprio Jesus. Mateus provavelmente viu nessa festa uma oportunidade de levar outras pessoas a conhecerem a Cristo, o que é normal: quando alguém verdadeiramente se converte, sua alma também anseia pela salvação de outros.

Os escribas dos fariseus, ao contrário, vendo Jesus comer com a ralé, perguntavam aos discípulos Dele: “Por que come [e bebe] ele com os publicanos e pecadores?” (Mc 2.16). Tendo Jesus ouvido isto, respondeu-lhes: “Os sãos não precisam de médico, e sim os doentes; não vim chamar justos, e sim pecadores”. Só será salvo aquele que reconhece que precisa ser salvo, pois não há um justo sequer. E uma vez que o salvo reconhece sua própria necessidade, não vai se achar melhor do que os outros, não se afastando dos pecadores como faziam os fariseus.

VINHO NOVO

Não satisfeitos, os escribas e fariseus tentaram desmoralizar Jesus, questionando o fato dos discípulos de João Batista e os dos fariseus jejuarem, mas os discípulos de Jesus não. A resposta de Cristo é que o jejum está associado a momentos de tristeza. Note que Jesus assume que o jejum é uma parte normal da vida de um servo de Deus, tão normal quanto é ter tempos de tristeza. Aqueles dias eram de alegria, porque Cristo estava com eles; quando Jesus lhes fosse tirado, ai sim os discípulos jejuariam.

Os fariseus sofriam de um tipo grave de alienação religiosa. Em nome das suas tradições, eles não eram capazes de se alegrar no tempo da alegria, querendo manchar a festa com sua murmuração inútil. E muitos são assim hoje. Há sim aqueles que estão tão envolvidos com o pecado que não conseguem se alegrar em Deus, mas o tipo mais triste é aquele que acha que está com Deus, mas que está envolvido com as coisas religiosas e não como o Senhor. Alguém que acha que Deus está apenas no templo ou nas coisas relacionadas ao templo apequena o Rei de toda a terra. Tenhamos, pois, cuidado para não termos os olhos fechados para a alegria divina que nos é oferecida de tempos em tempos no mundo; pois corremos o risco de não somente perdemos o trem da felicidade, mas de nos tornamos os algozes cruéis do Amor.

Jesus termina com uma parábola nos versículos 21-22: Ninguém costura remendo de pano novo em veste velha; porque o remendo novo tira parte da veste velha, e fica maior o buraco. E ninguém põe vinho novo em odres velhos; porque o vinho novo se expande quando fermenta, rompendo os odres velhos que já perderam toda a elasticidade. Mas põe-se vinho novo em odres novos. Existem diversas maneiras de interpretar essa passagem, mas a que me parece mais coerente é que o remendo novo e o vinho novo significam as tradições dos fariseus, em comparação com a Lei de Deus que é mais antiga que elas.

Muitos interpretam o novo como Jesus, e o velho como o Antigo Testamento ou as tradições dos anciões, mas em Lc 5.39 o Senhor deixa bem claro que “o velho é excelente”. O que traz o problema na parábola não é o velho, é o novo. Jesus se preocupava em obedecer aos mandamentos divinos, e não às coisas que os homens inventavam. Tentar acrescentar tradições humanas à palavra de Deus sempre pode conduzir à desobediência ao Senhor e à criação de uma religião falsa. Essa era a essência do problema dos fariseus, não que eles rejeitassem conscientemente as Escrituras, mas que acrescentavam suas próprias ideias a elas.

A implicação disso é que devemos tomar cuidado para não tentar adequar a Bíblia à nossa maneira de pensar, mas adequar a nossa maneira de pensar à Bíblia, sob o risco de falarmos e pregamos com o livro preto debaixo do braço, usar versículos bíblicos para defender nossas idéias, mas anunciar outro Deus, outro Cristo, outro Evangelho. De modo algum isso deve ser usado para negar qualquer tradição, estrutura ou formalização da religião, como fazem alguns; antes, é um chamado para submetermos nossas tradições, estruturas e formas à Palavra do Altíssimo.

O capítulo termina com um relato que ocorreu em dia de sábado. Jesus e seus discípulos passavam por searas e esses, famintos, colheram espigas. Os fariseus advertiram: “Vê! Por que fazem o que não é lícito aos sábados?” (2.24). Mas Cristo lhes respondeu citando 1Sm 21.1-6. Nesse texto, Davi estava sendo perseguido por Saul quando foi ao sacerdote Aimeleque. Mentindo para salvar a própria vida e a dos seus companheiros, Davi comeu o pão sagrado, os quais não é lícito comer, senão aos sacerdotes. Daí Jesus acrescentou: “O sábado foi estabelecido por causa do homem, e não o homem por causa do sábado; de sorte que o Filho do Homem é senhor também do sábado” (2.27-28).

O princípio que podemos inferir disso é que a vida humana é mais importante que as cerimônias. Jesus, como o Deus do Antigo Testamento que havia instituído os rituais (pois, se Jesus fosse qualquer outra coisa além disso, suas palavras seriam pura blasfêmia), tinha toda a autoridade para dar aos discípulos a liberdade de fazer o que, para os fariseus, não era próprio no dia de sábado; e, sendo um Rei amoroso, foi exatamente isso que Ele fez.

[1] GILL, John. Bible Commentary - Gospels and Acts. Disponível em: <http://biblehub.com/commentaries/gill/>

[2] PEREIRA JÚNIOR, I. O Reino de Deus no Evangelho de Marcos. Disponível em: <http://www.monergismo.com/textos/comentarios/reino_marcos_isaias.pdf>