O CAOS

O CAOS

Resposta à carta de um padre de Belém do Pará que solicita alguns subsídios sobre a figura do caos que aparece no princípio das Sagradas Escrituras, em algumas traduções.

A Bíblia diz que, naquela fase que antecedeu à Criação, a terra estava deserta, sem forma, e que as trevas cobriam o abismo (ou o caos, em algumas versões). Embora o verbete caos não apa explicitamente em todas as traduções, é inegável que a situação era de fato caótica. Por caos, imagina-se algo que tivesse momentaneamente fugido ao controle da engenharia criadora de Deus, se é que isto é possível.

Alguns teólogos na tentativa de conciliar a narrativa bíblica da criação com as descobertas da ciência adotaram a teoria da restituição. Esta foi defendida pelo biblistas protestantes Chalmers, Buckland, Wisemann e Delitzch, e supõe que transcorreu um longo período entre a Criação primária, mencionada em Gn. 1:1, e a Criação secundária, descrita em Gn. 1,3-31. Esse longo período foi marcado por várias mudanças catastróficas, resultando na destruição supostamente descrita pelas palavras “sem forma e vazia”. Nesse estágio teria ocorrido o episódio da mitológica Lilith , a primeira e rebelde mulher de Adão, expulsa para o deserto onde se tornou mãe e mulher de muitos demônios (cf. Is 34,14). Lilith faz parte do caos primitivo.

Essa destruição foi seguida por uma restituição ou restauração da criação, quando Deus transformou o caos em Cosmos, um mundo habitável para o homem. Mas segundo essa teoria, o que causou a destruição da Criação primária descrita em Gn. 1,1? Segundo os que defendem essa teoria, a queda de Lúcifer e da terça parte dos anjos descritos em Apocalipse, gerou a completa destruição da criação de Deus. Após esse acontecimento a Terra se tornou sem forma e vazia. Deus então inicia a Criação secundária onde restaura a Terra que outrora havia sido destruída pela queda de Lúcifer.

Nessa conformidade, mesmo estando sem forma tōhu e vazia wabōhu, a terra já havia sido criada, e o abismo (ou o caos) estava instaurado nela. Completamente inabitável, inútil, sem nada, coberta pelas águas (o tehon, o oceano primitivo da mitologia caldéia), nas histórias da divindade Tiamat. As águas, cobertas de trevas (a luz ainda não existia), estavam concentradas num só oceano, que cobria toda a terra. Deus irá impor um limite ao caos, mais adiante (cf. Jó 38,8-11).

Teologicamente, não é possível conciliar o caos com a presença de Deus. Caos é algo contrário à economia (projeto) do Criador, que por conta dessa variável, instaura, logo após, uma (nova) Criação, o hexaemeron (seis dias) Em diversas tradições mitológicas, especialmente na cosmogonia grega de Hesíodo (séc. VIII a.C.), vazio primordial de caráter informe, era ilimitado e indefinido, que precedeu e propiciou o nascimento de todos os seres e realidades do universo. Este vazio é freqüentemente personificado como uma divindade, talvez a mais antiga da criação

Na filosofia, a tradição platônica, identifica-o como o estado geral desordenado e indiferenciado de elementos que antecedem a intervenção do demiurgo, por meio da qual é estabelecida a ordem universal *os seis dias), como veremos a seguir. Só criando o homem na pré-história, Deus poderá – na plenitude dos tempos – humanar-se. Quando a humanidade é contaminada pelo pecado, Deus estabelece – em Cristo – uma nova e definitiva Criação.

O caos, ou abismo (este termo é o mais empregado), é anterior à Criação. Suscita-se, a partir da falta de informações, toda uma teia de dúvidas e mistérios. O que seria esse caos? De que constaria o primitivo abismo? Na história bíblica há um ponderável hiato de tempo do qual não existe nenhuma referência. Trata-se daquele período entre a criação do mundo, a terra informe e os mares únicos, (alguns milhões de anos atrás) e a criação do homem (há cerca de 200 mil anos).

A verdade é que, quando a história dá conta, logo após a criação do homem, a Bíblia fala nos anjos, e nos querubins que ficaram de guarda à porta do paraíso, zelando pela “árvore da vida” (3,24). Há muita especulação exegética, sem comprovação, embora com bases mais ou menos lógicas – e a teoria é dos teólogos pentecostais modernos – que essa situação de caos (ou de abismo) seria aquele período, após uma “primeira criação” (das “coisas invisíveis”), em que uma parte dos anjos se revoltou e foi jogada à terra (Ap 12, 7ss). A Escritura diz que “a terça parte das estrelas” foi varrida pela cauda do Dragão, sendo jogada na terra (cf. Ap 12,4). A Bíblia nos diz que

A terra, porém, estava informe e vazia, e as trevas cobriam a face do abismo, e o Espírito de Deus movia-se sobre as águas (Gn 1,2).

Para as culturas judaicas, bem como de todo o Oriente Médio, a água era a morada dos espíritos maus. Por certo pelos perigos que representava às pessoas antigas, em que a maioria não devia saber nadar, onde as mortes por afogamento eram uma tônica. Jesus “caminha sobre a água” para mostrar sua superioridade sobre esse tipo de mal. O caso é que a água, em muitos casos (inclusive no “dilúvio”) era um sinônimo de morte.

Quando o autor fala no Espírito de Deus movendo-se (algumas traduções mencionam pairando) sobre o abismo (ou caos), surge de forma vigorosa a idéia de que Deus resolveu (re)criar o mundo, ou restabelecer uma dimensão nova, purificada, material). O ruah Elohim, o sopro de Deus, dá uma nova feição à Criação primeva, transformando o caos em um universo ordenado.

Para o homem do campo, o caos ou a desordem que ameaçam a sua vida são: seca, falta de irrigação e ausência de agricultores para trabalhar a terra. A terra ficaria reduzida a um deserto sem possibilidade de vida, É assim que o autor imagina o mundo antes da intervenção criadora de Deus: não havia chuva (v. 5); não havia homem para cultivar (v. 5); não havia ninguém para fazer a irrigação .

Na simbólica do Livro do Apocalipse, fiel à literatura judaica, estrelas e anjos são sinônimos, tanto assim que Lúcifer, por seu brilho e beleza é chamado de “estrela da manhã” e “filho da aurora” (cf. Is 14,12-15). Ali o inimigo (instaurador do caos) é chamado de Diabo, Demônio, Satã, a Antiga Serpente ou Dragão.

O certo é que quando homem e mulher foram criados e mandados habitar o Éden, o diabo já existia e vem em forma de serpente tentá-los e fazer perder a amizade com Deus. Embora o Paraíso fosse o santuário do Criador, ali o mal se instalou para semear o caos na criação.

Os exegetas, na verdade, não chegam a um acordo quando se trata de definir se o caos/abismo primitivo também é Criação de Deus. Há quem se refira a “dois momentos de Criação”. Um antes e outro depois do caos . Eu não acredito que Deus tenha criado o caos, Ele teria se originado pela desobediência dos anjos maus. Assim como não criou os anjos maus (que estabeleceram o caos), mas criou-os bons e eles, pelo mau uso da liberdade, se rebelaram.

Caos é uma palavra de origem grega, kaós, que em seu sentido fundamental quer dizer um abismo escuro. Em analogia com as cosmogonias fenícias, babilônicas, egípcias, assírias ou gregas, o caos surge como um estado inicial. Neste particular, sua menção testifica um estado de desordem, no oposto de cosmos, que é algo belo, apresentável, organizado. Quando foi criado o céu, a terra e o homem (as “coisas visíveis”) o caos primitivo já havia sido dissipado, e a queda de Satanás/Lúcifer e seus anjos rebeldes ocorrido.

A palavra caos aparece em diversas tradições mitológicas, especialmente na cosmogonia grega de Hesíodo († 700 a.C.). Revela aquele vazio primordial de caráter informe, ilimitado e indefinido, que precedeu e propiciou o nascimento de todos os seres e realidades do universo. O verbete caos não aparece no original hebraico, mas apenas abismo, que algumas (raras) traduções em língua portuguesa chamam de caos. No original hebraico, vê-se wa-bōhu (vazio), semelhante a bahiy (no árabe), que designa uma desolação extrema.

As águas primeiras estavam merahefet, agitadas, evidenciando a desordem. Embora algumas traduções falem em vento impetuoso, para São Jerônimo, na VG, o ruah é o Espírito de Deus, que com força vivificadora restaura, acalma e fertiliza as águas. Só depois, diante da perspectiva da criação do homem, Deus cria os alimentos, povoa as águas de peixes e os ares de aves.

Para alguns teólogos e exegetas – e esta teoria não goza de amplo trânsito – o abismo, a massa caótica, tōhu wabōhu, teria sido a matéria prima com a qual Deus criou o universo. É curioso que os LXX traduzem tōhu wabōhu como algo bruto, invisível e não diferenciado. Existe caos hoje? Vamos ao comparativo:

Antes

• seca

• falta de água potável

• ausência de mão-de-obra para trabalhar a terra

• abandono •

hOJE

falta de terra para plantar

• falta de incentivo

• desperdício da água

• camponeses sem terra para plantar

• egoísmo e abandono

O certo é que Deus desde o princípio vence a desordem e o caos, e hoje a maldade humana instaurou o novo caos. Deus vem em nosso socorro, criando – em Jesus Cristo, seu filho – uma nova humanidade capaz de organizar e ordenar a terra.

Antes de encerrar este assunto, fica a questão: o que seria mesmo um caos? Caos é sinônimo de “fim do mundo”? Alguns autores acham que sim. Para dissipar justificados temores, é salutar compulsar uma lúcida opinião convergente:

Fim-do-mundo é quando o pecado vence; caos é o fracasso de Deus, é o homem perdido, no inferno .