A IGREJA PERMITE A CREMAÇÃO?

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Antes de responder a essa pergunta seria oportuno fazer um breve excurso histórico para analizar as tradições nas grandes áreas geográficas do mundo. Em boa parte do Oriente, principalmente na Índia, a cremação foi sempre tida como a forma melhor para tratar os cadáveres, pois o fogo era e é considerado elemento de purificação apto também a iluminar e facilitar a passagem da alma desse plano para outro superior. Mas já a partir do Neolítico foram registradas as primeiras cremações em todo o planeta, tanto na Europa (cultura de Hallstatt) como na Austrália. Mais tarde os Egípcios descartaram a cremação preferindo sepultar seus defuntos e, quem tinha condições, mandava que os corpos de seus familiares fossem embalsamados; o mesmo fizeram os Babilônios enquanto os Persas proibiram o uso do fogo. Na Grécia foram praticadas tanto a inumação como a incineração, sendo essa segunda opção reservada aos nobres.

Quanto aos Romanos, eles tinham grande respeito para com seus finados chegando a organizar cerimônias fúnebres solenes parecidas àquelas que, séculos depois, foram adotadas pelo Cristianismo. Embora em época republicana (509-27 a.C.), basicamente devido o custo menor, a inumação fosse preferida, com o passar do tempo, a cremação transformou-se num costume tão arraigado que os parentes dos mortos mandavam construir ou alugar pequenos lóculos dentro de columbários de alvenaria ou de mármore, projetados para conter as cinzas dos falecidos. Com a expansão do cristianismo, a prática de cremação no Império Romano declinou em favor do enterro. Embora a cremação nunca tenha sido formalmente proibida entre os cristãos, sempre foi vista com desconfiança pela autoridade religiosa que muitas vezes se opôs abertamente por causa de sua origem pagã e pela preocupação que pudesse interferir com a ressurreição da carne. Outro motivo, mais prosaico, do declínio das cremações no final do Império foi a crescente escassez de madeira, um material caro e obviamente indispensável para a queima de cadáveres, prática que sempre foi prerrogativa das classes mais abastadas. Os pobres tinham uma única possibilidade acessível: as catacumbas.

É interessante saber que, de regra, na Antiga Roma o Direito público não permitia a formação de clubes particulares; entretanto, a partir da época de Júlio César, foi estabelecido que podiam ser instituidas associações de cidadãos tendo elas o direito de juntar um capital social, convocar assembleias e reuniões, desde que essas associações fossem autorizadas pelo Senado e tivessem objetivos compatíveis com a ordem pública, a moralidade e a religião. Com base nessa autorização, entre as camadas mais humildes da população surgiu o habito de instituir sociedades “cooperativas” às quais, conforme à Lei, não podiam contar mais de cem membros. Os sócios, além de uma taxa de inscrição, pagavam uma pequena cota mensal com a finalidade de se assegurar uma sepultura com dignidade (sempre e unicamente fora dos muros da cidade), além do direito de participar de todas as reuniões periódicas durante as quais havia uma simples refeição comunitária na qual eram consumidos pão e vinho. Esses grêmios eram apelidados de “Collegia funeraticia”, mas existiam outros com finalidades culturais e/ou religiosas como, por exemplo, as sinagogas das várias comunidades hebraicas de Roma que, destarte, podiam exercer livremente o seu culto.

A partir do II século, os cristãos aproveitaram da mesma Lei que regulamentava os Collegia funeraticia para se reunirem em áreas cemiteriais e praticar seus cultos, além de dar digna sepultura a seus adeptos e aos corpos de pessoas que não tinham parentes, mesmo que não fossem cristãs. Destarte, com o passar dos séculos, as comunidades cristãs foram crescendo do ponto de vista financeiro chegando a acumular grandes fortunas que, parcialmente, eram usadas para socorrer os desafortunados e impulsionar ainda mais as atividades de proselitismo. Sob a direção do bispo Calisto (papa de 217 a 222 d.C.), a Igreja de Roma adquiriu um imenso poder econômico, movimentando capitais até superiores àqueles que se encontravam na disponibilidade da burocracia imperial. Nessa mesma época as comunidades cristãs conseguiram angariar o apoio de pessoas ricas e poderosas das quais receberam doações relevantes, conforme à tradição romana segundo a qual os ricos tinham o dever de devolver partes consideráveis de seus patrimônios para o bem da comunidade. Essa contínua expansão da Igreja foi à origem do embate entre o poder estadual e o poder religioso: de fato os imperadores encontraram concorrentes formidáveis em condição de competir com eles no que diz respeito às obras de assistência em prol da plebe urbana, cujo apoio era indispensável para manter o poder na capital do Império. Foi por isso que, ocasionalmente, houve perseguições contra os líderes da Igreja cristã, não por motivos ideológicos, mas de poder político. Portanto, a imagem, propalada pelos romances de ínfima qualidade, pelos filmes de Hollywood e as telenovelas, segundo a qual os pobres cristãos viviam escondidos debaixo da terra feito toupeiras, eternamente ameaçados, não passa duma mentira colossal.

Voltando ao enfoque principal observamos que, com a devida ressalva das grandes pestilências que assolaram a Europa na Idade Média e Moderna, durante as quais a Igreja Católica liberou a incineração dos cadáveres, de regra a prática da cremação foi vista como uma forma ímpia de tratar os corpos dos defuntos. Contemporaneamente, tanto as Igrejas Protestantes como as Evangélicas permitiram a cremação dos corpos enquanto os Ortodoxos a vetaram. Em 1856 iniciou na França um debate contra os preconceitos e as tradições funerárias que logo passou na Itália onde os médicos progressistas defenderam a cremação como forma de higiene pública, um ato, por sinal, absolutamente não em contraste com os princípios cristãos segundo os quais “Do suor do teu rosto comerás o teu pão, até que tornes à terra, porque dela foste tomado; porquanto és pó, e ao pó tornarás” (Gênesis 3:19). Mesmo assim, poucos anos depois, falando a respeito da cremação do grande filantropo Dr. Gaetano Pini, líder italiano da Maçonaria, o órgão oficial dos Jesuitas, o jornal Civiltà Cattolica, escrevia o seguinte: “o féretro do Doutor Pini foi levado ao templo crematório com viva satisfação da Maçonaria e com grande dor daqueles que nessa diabólica instituição da ímpia seita nada encontram se não uma forma para paganizar sobre as ruinas dos sepulcros cristãos e de fazer morrer as pessoas desbatizadas”.

Com o Codex Iuris Canonici de 1917, a Igreja Católica proibiu a cremação alegando que se tratava de uma expressão antireligiosa, de um ato que negava a imortalidade da alma e da ressurreição dos corpos. Mesmo assim o número de pessoas que optava pela cremação continuou crescendo ininterruptamente até o ano de 1929 quando o Tratado de Latrão, estipulado entre o Governo fascista de Benito Mussolini e a Santa Sé, teve como consequência o fechamento de todas as Lojas maçônicas e, portanto, a impossibilidade de divulgar e propagandear a cremação. Além disso, as autorizações para liberar a cremação deviam passar por um custoso e demorado processo administrativo que acabou desencorajando muitas famílias: aconteceu que a Igreja Católica voltou a ter o monopólio quase total sobre a morte. Apesar das crescentes dificuldades burocráticas, a prática da cremação conseguiu se difundir entre os operários das grandes fábricas do Norte da Itália, que a consideravam uma forma de resistência ao regime fascista. A situação não melhorou muito depois do fim da Segunda Guerra Mundial devido à forte oposição do Vaticano a tudo o que podia enfraquecer o seu poder sobre as consciências.

Finalmente, em 1963, após o Concílio Vaticano II, a Igreja Católica, com a instrução “Piam et constantem” da Suprema Congregação do Santo Ofício, novamente reiterou o convite aos bispos para aconselhar o enterro, considerado a prática tradicional da Igreja. Ao mesmo tempo, porém, ela ordenou que aos fiéis que escolhessem ser cremados podia ser permitido o enterro eclesiástico, desde que essa escolha não derivasse da negação dos dogmas cristãos ou da afiliação a seitas (leia-se Maçonaria).

Se, de um lado, a Igreja Católica oficial, mesmo com uma boa dose de repugnância, acabou aceitando a cremação, pelo outro ainda hoje existem setores bem mais conservadores que a condenam com toda a força como, por exemplo, o site católico reacionário https://gloria.tv/ que publica também páginas em português. Nele se encontra esse texto: “Ser cremado é uma blasfêmia para Nosso Senhor Jesus Cristo, quando Jesus morreu não decidiu de ser cremado! Nós veneramos e beijamos os corpos e as relíquias dos santos e, mesmo assim, muitos cristãos são cremados, aqui eu sei que há a mão de Satã, já pensou se alguns santo jamais foi cremado? Cremar ou incinerar os mortos é um ato que se desenvolve na medida em que alguém se afasta da fé. Por quê? Você queima detritos, lixo, o que não quer mais. Para ocultar a gravidade desse ato, os maçons, pais da ideia, colocam a palavra "cremação" em vez de "incineração". Ser cremado é um gesto diabólico, Adolf Hitler colocou os corpos mortais de judeus e cristãos nos crematórios. Por que Satanás gosta tanto? É ódio contra Deus, o Criador e o Dogma da Ressurreição da Carne, desprezo pelo corpo do templo do Espírito Santo. O propósito de Satanás é afastar os mortos dos vivos e nos fazer esquecer da realidade da Morte e da Eternidade. Assim se favorece a perda da fé: mediante atos perversos e usando palavras falsas, a pessoa se torna ímpia e falsa. Queimar os corpos, semeia lentamente a ideia que após a Morte não há nada, nem julgamento nem eternidade. Desaparecimento total do ente querido, nenhuma ressurreição da carne, nenhum pensamento saudável de julgamento.” Em outro site italiano lemos: “Contra os bandidos de Satanás - Os promotores da cremação são apenas os inimigos da Igreja: maçons, livres pensadores, pagãos..., escravos do diabo que ainda desejam realizar a condenação eterna do maior número de almas através dessa impiedade.”

Esses dois breves textos, escolhidos aleatoriamente entre uma pletora de ataques fanáticos e intolerantes contra a liberdade de escolha, mostram quanto ainda está enraizado o efeito de 1700 anos seguidos de propaganda católica influenciando profundamente a mentalidade das populações da Europa do Sul e da América Latina onde a cremação raramente é praticada. Atualmente no Brasil o processo de cremação somente pode ser realizado se houver o documento registrado no cartório com a declarada vontade do falecido de ser cremado, ou por um parente direto de primeiro grau disposto a assinar a ata de cremação. Caso não seja possível nenhuma das duas soluções anteriores, a família enlutada para o processo completo de cremação deverá considerar uma simples autorização judicial a ser pleiteada no primeiro dia útil após a data do óbito. O custo varia entre R$ 6.000,00 a R$ 10.000,00 que não é pouco. Já na Itália do Norte a cremação fica mais em conta que a inumação e, também por esse motivo, está se tornando a opção principal. Mesmo assim o obstáculo maior continua sendo de tipo cultural: não poucos familiares temem que o defunto sofra ou seja queimado vivo, como se a perspectiva de acordar dois metros debaixo da terra seja melhor que uma eventual morte quase instantânea. Muitos se iludem que, entregando o cadáver numa funerária que vai deixá-lo perfeitamente arrumado, possa ser evitada a ação da decomposição que, mesmo não sendo visível, avança de forma impressionante.

A esse respeito permita-me o leitor de narrar um fato realmente acontecido durante os últimos anos da Segunda Guerra Mundial, quando as cidades eram bombardeadas dia e noite. Naquela época minha mãe costumava, todos os domingos, ir ao cemitério municipal em companhia da mãe dela para visitar os entes falecidos. Aconteceu que na noite do sábado anterior, bombardeiros britânicos haviam, por engano, deixado cair parte de seus projéteis sobre uma área cemiterial com sepulturas recentes. O espetáculo que se apresentou diante dos olhos das duas mulheres foi terrífico, realmente digno de um filme do horror. Muitos corpos, arrancados de suas covas, estavam em avançado estado de decomposição, soltando um líquido preto e fedorento. Os traços dos rostos totalmente deformados, as carnes putrefeitas, os vermes saindo da boca, das orelhas e das órbitas oculares escuras e vazias. Nada havia de humano naquela visão infernal que era exatamente oposta àquela aura de paz e dignidade que tanto desejamos para os nossos entes queridos. Isso é o que acontece a qualquer corpo que seja inumado e minha mãe, ainda adolescente, sentiu tanta ojeriza que, desde então, optou definitivamente pela cremação como forma civilizada para honrar os nossos finados, com amor e respeito.

BIBLIOGRAFIA

-Mario Attilio Levi. L’impero romano. UTET, Turim, 1971.

-La Civiltà Cattolica. Vol. VIII, Roma, 1887.

-Wikipedia

NOTA: Esse texto foi adicionado ao meu E-book intitulado: "Artigos, Contos & Textos de Humor" que pode ser baixado grátis na seção E-livros da minha escrivaninha.

Richard Foxe
Enviado por Richard Foxe em 04/09/2019
Reeditado em 05/09/2019
Código do texto: T6737314
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