Bombeiros sem fogo e com fogo “amigo”

Lúcio Alves de Barros*

Vejo em tempo real o momento no qual terminou o movimento dos Bombeiros Militares no Estado do Rio de Janeiro. A história sempre se repete com corpos ou sem corpos, mas sempre com muita humilhação e sofrimento. O banal do episódio é a simplicidade da causa: o direito inquestionável de melhores condições de trabalho e com elas um tímido aumento de salário. Os bombeiros militares do Rio de Janeiro no começo da noite de sexta-feira saíram às ruas em mobilização e já no batalhão central resolveram tomar o órgão público iniciando o começo da repressão e das reuniões das autoridades para barrar o grande contingente mobilizado no interior e fora do quartel.

Os bombeiros teriam “invadido” - por volta das 19h30 da noite - o local no qual eles mesmos têm como templo e símbolo de pertencimento. Até o momento no qual escrevo estas linhas eles se encontravam presos e sob vigilância. Um bom número deles ainda se encontrava nas imediações do quartel aos gritos de desespero e resignação. Os “perigosos” manifestantes, que são de quartéis de todo o estado, usaram apitos e afixaram faixas no pátio e nas imediações próximas do batalhão. O cuidado aqui é com as palavras e as metáforas utilizadas pela mídia, como a “invasão militar”, a “guerra nas ruas”, os “confrontos” e “posicionamentos estratégicos”. Quem assiste as tristes imagens, se não acompanha a história de nosso estado repressor, pensará na existência de uma “nova guerra”, pois todos estão contra todos. Todos funcionários do Estado que recebem as mesmas ordens, seguem mais ou menos os mesmos códigos e regras e possuem - em grande medida - a mesma subcultura e, aos olhos da população, fazem parte da força ostensiva do Estado.

De todo modo a manifestação, como tudo na vida, não saiu do nada. Desde o mês de abril os bombeiros já haviam se mobilizado em ruas da cidade exigindo alguns direitos. Direitos elementares a meu ver que, de acordo com a mídia histriônica e claramente associada ao governo, tem por nome um conjunto de reivindicações cristalizadas no clichê “Dignidade já”. Estas, como de costume, são de aumento salarial tendo como piso R$ 2 mil líquido, haja vista que os bombeiros recebem R$ 950. Obviamente, os bombeiros pedem melhores condições de trabalho e por mais simples que possa parecer, o recebimento de vale-transporte.

Como é da política do governador Sérgio Cabral, logo foi acionado o famigerado BOPE, o qual tratou de resolver a questão da “melhor” maneira possível. Entraram na casa que possivelmente não lhes eram estranha, tocaram em bom som “a casa caiu”, lançaram bombas de gás lacrimogênio e efeito moral e alguns tiros de festim e de verdade foram jogados para cima, para baixo, para os lados e tudo mais. “O governador manda, o Bope faz”, é o lema que vimos no “Tropa de elite” ao vivo e a cores. As imagens e as informações são tristes, desoladoras, vergonhosas. Um conflito entre iguais, um conflito entre oprimidos e vítimas de um estado de arte que tem apostado na repressão e na violência como tática de segurança pública. Passou longe qualquer possibilidade de direitos humanos ou mesmo uma negociação séria e possível de acordo a priori. A tentativa, infelizmente muito tarde, resultou na invasão do batalhão, com portões quebrados e agressão a superiores. O fato tornou-se sério e o desequilíbrio de ambas as partes tornou-se norma.

É preciso perguntar a que ponto chegamos com forças coercitivas do estado se debatendo e se humilhando em rede nacional. Mais de 600 bombeiros militares foram presos, outros, inclusive mulheres e crianças ficaram como alvos no interior do quartel com as bombas e a possibilidade do uso da força física e letal do BOPE. Não é preciso muito para dizer que trata-se de uma ação de “segurança pública” contra o inimigo que, paradoxalmente, era amigo.

Essa é a “nova” e “velha” cara da política de segurança pública que tem como caixa de ressonância o Estado do Rio de Janeiro: a identificação e a busca do inimigo. Identificado o alvo, passa-se para uma negociação e identificação de inimigos políticos. Após a desculpa já formalizada - sempre no campo normativo da lei da justiça militar - chama-se a tropa de choque, o exército privado do governador denominado BOPE. Em seguida, ele vai em rede nacional e criminaliza os que antes eram cartão postal do Rio de Janeiro em tempos de chuva e calamidades públicas. A questão é simples: é possível reprimir brutalmente homens que fazem parte do próprio estado penal, sem falar do uso maquiavélico da mídia que corrobora e dá vida ao espetáculo tão necessário para culpabilizar as vítimas e fazer valer a legitimidade da ação que poderia ser evitada.

O movimento não deixa de lembrar as mobilizações por melhores condições de trabalho em Minas Gerais que resultou na lamentável morte do cabo Valério da polícia militar, após o confronto entre as forças do próprio estado. A história é mais ou menos a mesma, talvez o problema dos bombeiros militares foi o de acreditar que estariam em cuidado e em segurança no interior de um batalhão no qual literalmente foram encarcerados em uma quadra cercada por arames tal como um campo de concentração. Lembrou-me as imagens dos recalcitrantes no campo de futebol após o massacre do Carandiru.

A mobilização dos bombeiros militares ainda não chegou ao fim. Os mais ou menos 600 bombeiros presos foram levados para a corregedoria da polícia militar na cidade de São Gonçalo. Quatorze ônibus entupidos de bombeiros seguiram em comboio. Na saída do quartel, as câmeras - que serão utilizadas contra os próprios bombeiros - mostraram homens dependurados nas janelas, gritando aos companheiros, fortes na mobilização, mas impotentes diante da força repressora. Teimo em dizer que o desfecho não será dos melhores. O governador vai dar uma entrevista coletiva com base nos códigos militares, assessores vão procurar os inimigos produzidos nas últimas horas e as providências com base em processos de exclusão e punição vão encontrar alguns desavisados e acabou a história.

De tudo isso, é preciso entender a mensagem governamental em relação às mobilizações daqueles responsáveis pela segurança social no estado. Uma mensagem clara: contra o direito de mobilização o governo utilizará a lei e a ordem. Uma velha estratégia de segurança oriunda das práticas mais medievais que, guardadas as devidas proporções, temos repetido nas constantes políticas de segurança que teimam em unificar as polícias, criar programas revestidos de democracia e identificar inimigos potentes e passíveis de criminalização ao sabor da política do momento.

O que certamente não se esperava neste cenário é a abertura e a politização dos atores responsáveis pela força ostensiva e pelo monopólio da violência do estado. O SOS humano, seres humanos de joelhos, feito pelos bombeiros militares em pleno campo da corregedoria da polícia militar é um ato simbólico chocante deste movimento que marcará a história da corporação. Mais do que antes vamos ver tais episódios se repetirem. Há pouco tempo a polícia civil e militar em Minas Gerais encenaram uma greve. O mesmo foi visto no Rio Grande do Norte. Em tempos de unificação de polícias nas mesmas academias, vale pensar se é bom para nós e para eles juntarem no mesmo local e instituição corporações que antes se controlavam e agora podem, em futuro próximo, organizarem e se reunirem, inclusive, não somente para reivindicar melhores condições de trabalho, mas também para fundarem associações, sindicatos e até partidos políticos. A polícia e a política do futuro nos mostrarão muitos equívocos que estão sendo apregoadas como verdades e saídas para um estado que tem resumido as questões de segurança pública em casos de polícia deixando em segundo plano a educação, a saúde e o fortalecimento de instituições civis que fazem na realidade os alicerces do que se entende por democracia.

* Professor e sociólogo. Doutor em sociologia pela UFMG.