VALORES AFETIVOS

Quando sugeri que alguns de seus brinquedos mais antigos deveriam ser postos em um canto qualquer menos frequentado, a Júlia entendeu que a sugestão não era bem aquela, e sim, de que deveria jogá-los fora. Reagiu prontamente, afirmando que os brinquedos eram velhos, mas ela gostava deles. Gostava muito, e não queria se livrar.

Quase caí na tentação inerente à maioria dos pais, de lhe dizer que aqueles eram apenas restos de brinquedos que já não tinham valor; tudo sucata, e deveriam mesmo ser descartados para darem lugar aos novos. Em tempo, engoli as palavras e refleti sobre os valores que seriam claramente menosprezados por mim, se disparasse mesmo aquele discurso. Logo eu, que vivo lutando pela preservação do patrimônio histórico e cultural de minha cidade! Que sou frequentador de museus! Que aprecio como ninguém de minhas relações, uma peça de antiquário! Dizer para minha filha de seis anos, que as coisas velhas devem ser todas substituídas por artigos novos e descartáveis, seria contestar a mim próprio. A todos os valores que ela me vê cultivar.

O folhetim MORDE E ASSOPRA, da Rede Globo de Televisão tem um personagem que classifica tão somente como ossos velhos, os ossos de dinossauros descobertos em escavações, pelos arqueólogos. É um homem simples, do campo, isso é bem compreensível. Só lhe falta o mínimo conhecimento científico para entender o valor daquelas peças. Mas nota-se que aquele homem tem um profundo apego pela família; pelos costumes que ele julga honrados; pelas suas raízes. Muita gente que se arroga letrada, culta, não consegue valorizar as mesmas coisas e vive tão somente pelas conquistas materiais; pelo consumo desenfreado; a correria pelo dinheiro e tudo quanto ele pode proporcionar, sem perceber as possibilidades humanas, afetivas, culturais e subjetivas que a cercam; dão um sentido especial ao mundo, à vida, e valorizam a passagem do tempo que, neste caso, não apenas passa.

Na vida real, todos os dias vejo pessoas menosprezarem essas relíquias que fazem do ser humano alguém melhor. Pessoas que não sabem valorizar suas raízes, não se interessam pela memória dos lugares onde moram ou nasceram. Não reciclam nada, não conhecem o valor das origens. Acho que essas pessoas cresceram sob o regime de pais que não souberam dar atenção à afetividade dos filhos em relação aos velhos brinquedos; às coleções pessoais; às amizades; aos animais; ao zelo insistente por tudo aquilo que os adultos não entendem nem valorizam.

Ainda bem que a Júlia não me dá moleza. Ela não me deixa esquecer, com o seu acervo de memórias infantis composto por velhas bonecas, bolas furadas, carrinhos sem rodas, recipientes vazios e outras tralhas, o quanto é importante preservarmos nossas memórias. Termos raízes. Histórias para contarmos aos que virão depois de nós.

Demétrio Sena
Enviado por Demétrio Sena em 11/08/2011
Código do texto: T3154107
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