A Vontade (II)
 
 
Autonomia.
Apesar dos séculos e séculos em que vivemos em sociedade, ainda está longe aquele momento no qual se possa ver o homem praticando sua capacidade de se autogovernar, exercitando sua autonomia em práticas de amplos benefícios ao social.
Nesse momento, toda a sociedade e os indivíduos são governados pela positividade da Lei. Os costumes, que foram sempre o espelho do ordenamento social, pouco representam na atualidade. A palavra, por sua vez, que sempre marcou a sensatez de nossas ações, perdeu sua força de confiança. A expressão “eu dou minha palavra” nada mais significa. Vale agora o contrato sustentado na universalidade da lei. A Constituição Brasileira de 1988 (Artigo 5º — § II) sintetiza essa ideia: “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”.
Foi desfeita a excelência do ato moral que num dado tempo representou a palavra dada e a promessa feita.
Esse modelo de convivência social mantém os indivíduos em intenso controle externo, com pouco espaço para sua autonomia, porque ainda não sabemos utilizá-la com a devida responsabilidade.
A vontade está aprisionada nessa condição de indivíduo que tem seus próprios desejos e na objetividade da sociedade, que precisa realizar seus projetos, em face de seus fundamentos de “soberania, cidadania, dignidade da pessoa humana e pluralismo político”, que no Brasil constaram dos dispositivos de nossa atual Constituição — Artigo 1º.
Foi o filósofo prussiano Immanuel Kant (1724-1804) que melhor relacionou essa questão da vontade e sua dependência à lei civil e aos costumes sociais:
 
A vontade é uma faculdade de não escolher nada a não ser o que a razão conhece como praticamente necessário, independentemente da inclinação (dos afetos e sentimentos) [...]
 
O conceito de vontade em Kant ganha duas feições, em face daquilo que a razão estabelece como necessário.
Numa feição, a vontade corresponde a esse modo simples de agir em busca de algo que atenda interesses materiais. Nesta vida prática, regras são estabelecidas para disciplinar a relação: comprar, vender, trocar, adquirir, permutar. Aqui nascem regras de ação, mas nenhuma lei moral. Estamos num plano em que a faculdade de desejar é colocada em nível inicial das relações.
Outro aspecto da vontade é aquele em que a faculdade de desejar coloca-se num grau superior. A vontade agora não pressupõe atendimento de interesses particulares, ela é a força que produz regras de ação moral que se firmam e valem eticamente, isto é, constituem princípios que motivam, disciplinam ou orientam o comportamento humano presente em qualquer realidade social. Exemplo: “Não matarás” — “Não furtarás” (Dt 5:17 e 19).
Essas duas feições do conceito de vontade, na teoria kantiana, falam de uma espécie de causalidade dos seres vivos, enquanto racionais. Isso significa que a vontade está afetada pela razão, por essa capacidade de avaliar com correção, com discernimento; bom senso, juízo.
Essa racionalidade humana expressa na vontade torna-se ação, sem o que a sobrevivência não aconteceria. É na ação que os elementos teóricos da vontade se realizam como prática.
Vale lembrar que ação é um agir comprometido com o social. Nessa consciência, agir é expressar um desejo de alcançar uma resposta, pois há sempre uma intencionalidade anterior originada de carências pessoais ou sociais.
O pressuposto agora é examinar como se deve agir. Essa é a questão central da moralidade em que a vontade deve se subordinar. Kant esclarece bem esse ponto ao afirmar que “[...] a vontade livre e vontade submetida a leis morais são uma e a mesma coisa”.
Não há outro mundo possível.
A vontade deverá reconhecer a validade da lei moral e subordinar-se a ela. Sem esse reconhecimento, contemplaremos a morte da ação, a sua insensatez, e criaremos sociedades desnorteadas.
Antonio Pereira Sousa
Enviado por Antonio Pereira Sousa em 16/08/2018
Reeditado em 17/08/2018
Código do texto: T6420711
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