É muita gente... sem sentido... em Brumadinho (MG)

É muita gente... sem sentido...

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Lúcio Alves de Barros*

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O velho chavão da “tragédia anunciada” deu fim aos sonhos, projetos e esperanças de muitas pessoas em Brumadinho. Em um instante, a “Barragem I do Córrego do Feijão” se rompeu e uma onda de lama com rejeitos de minério da empresa Vale destruiu uma comunidade inteira. O dia foi 25 de janeiro, às 12h28. “Gente de carne e osso”, de histórias incorporadas e com filhos (as) para criar foram sequestradas pela lama guardada há tempos. Muita gente inocente faleceu e muita gente perdeu tudo. Muita gente vai ficar marcada por anos. Muita gente foi resgatada, mas muitas ainda não foram encontradas. É gente, ponto e pronto. Não se trata de “colaboradores” ou “recursos humanos”. É gente que ainda vai sofrer muito. Gente que vai ainda esperar. E muitas que vão se cansar, endoidar e ficar à deriva. Não vou me alongar nos acontecimentos já conhecidos através dos meios de comunicação. Caminho no sentido do que perpassam as pessoas sofridas em cinco fases:

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A primeira fase pós-tragédia é a revolta. Um acontecimento como o de Brumadinho, no qual as pessoas foram ceifadas inocentemente como gado, produz rapidamente a raiva coletiva. Ela pode resultar em rebelião, mas pode ser calada e esvaziada com o sentimento de desamparo e medo do que pode vir a acontecer, dado que muitos não esperavam a magnitude do desastre, o número de mortos, pessoas encontradas e ainda desaparecidas. A revolta é irracional e joga muitos olhares contra a empresa que atua como se fosse um “ser impessoal” ou “somente uma instituição”, com a face já marcada e capaz de solucionar o problema na base do dinheiro. A revolta é produto dos acontecimentos, pois a impessoalidade do culpado leva os indivíduos a não tolerarem o que não podem ver. Visto de outra forma, sem as pessoas responsáveis o clima de revolta aumenta, mas aos poucos se desfaz devido a solidão, o medo, a incapacidade, e os limites cognitivos da comunidade. A revolta é uma ação coletiva que produz o desamparo e o luto.

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A fase de desamparo e luto são inerentes aos fatos grotescos, cruéis e inomináveis. A pessoa sente-se abandonada à própria sorte e momentaneamente desequilibrada, pois está despreparada para a situação na qual se encontra. É difícil estar em plenas condições objetivas para enfrentar a mortandade criada pela Vale. Ao contrário, o luto é uma relação solitária com o “outro”, especialmente relacionado àquele que não teve como se despedir. Me refiro às mortes por doença ou idade, nas quais acompanhamos o moribundo e vivemos o seu fim. No caso da Vale o luto também é coletivo, passível de criar reações inesperadas. Sem respostas, a coletividade se magoa, tem pânicos, calafrios, dores e sofrimento. A falta do “outro”, ser de amor e pertencimento, não tem fim. É inexplicável a dor de uma mãe, de um pai, de filhos e filhas. O luto pode durar anos e é preciso terapias coletivas em busca de cura e sentido. Penso que políticas públicas se fazem necessárias. Viktor E. Frankl criou a “Psicoterapia para todos” objetivando minimizar o sofrimento dos judeus destruídos nos campos de concentração do grande Reich Alemão. Está difícil para Brumadinho minimizar a dor. O luto coletivo é um obstáculo à busca de sentido. Daí o choro, o medo e o eterno sentimento de esperança. O acontecimento “está na cara”, “impossível viver com ele”, “impossível reparar os danos”, “difícil seguir a vida” diante da finitude. A fase é perpassada pela solidariedade.

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A fase de solidariedade é a relação de união entre os atingidos diretamente e os que observaram com terror. Ela aparece como óleo em um motor. Aos poucos vai lubrificando as relações que se tonam menos tensas, voltadas à cordialidade e auxílio ao próximo. Ela liberta da culpa e auxilia em ver com “bons olhos” a finitude. Contudo, ela relaxa os revoltados que, a despeito da desgraça, lutam por entender “porque Deus permitiu” ou “pelo menos temos algo a que se apegar”. Como tudo na vida, a solidariedade tem limites e, logo, grupos e pessoas vão abrindo mão de apoios. Certamente, outras relações são necessárias para que as pessoas permaneçam unidas. A dificuldade de união nos joga para o que disse a psicóloga norte-americana Elizabeth Kubler-Ross a respeito da fase de negociação.

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A fase de negociação diz respeito à busca de solução ou uma saída da situação. As pessoas tendem - após acusar, buscar Deus e jogar sobre Ele a solução de tudo – a busca do entendimento para “minorar o sofrimento da perda dos entes queridos”. A religião oferece respostas sobrenaturais que diminuem a sensação de desamparo. Na coletivamente, aparecem os padres e pastores, também aqueles que oferecem dinheiro, recompensas, indenizações etc. A ideia é essa: sossegar o desconforto da alma chamando para perto o transcendente. No entanto, as condições objetivas do acontecimento estão manifestas e latentes no vilarejo, na comunidade, ou na cidade. A negação coletiva dificulta ver e exigir direitos, ressarcimentos legais, amigos leais e falsas lideranças. A cidade que nega sua dor alimenta o luto e a revolta coletiva, dado que possui o poder de silenciar os apavorados. Paulatinamente, enganosamente, vemos o império do efêmero e o chavão “vida que segue” invisibilizando as vítimas e confortando os que foram atingidos indiretamente. A negação - como ação coletiva - afasta a revolta, dado que forja o conformismo e o “esquecimento”. Foi o que ocorreu no caso de Mariana (MG) após o rompimento de uma barragem (Fundão) da mineradora Samarco/Vale. Até os dias de hoje, as vítimas sofrem e lutam por dias melhores. A negação, portanto, é negativa ou positiva, dependendo da dimensão dos fatos em que os indivíduos foram expostos. O caso de Brumadinho não deve seguir o de Mariana, sob pena de chegar o momento da aceitação.

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A aceitação dos fatos, utilizando o conceito de Elizabeth Kubler-Ross, consiste na última fase coletiva e individual. As pessoas, tal como a coletividade, iniciam um duro processo de entendimento. Novamente optam por relações religiosas e caem no perdão. A ação social, entretanto, busca a compreensão, o consenso, uma opção democraticamente discutida. Em geral, ao contrário do que se pensa, tais ações são frágeis e muitos indivíduos se perdem no caminho, outros se cansam, outros morrem. Uma cidade, comunidade ou vilarejo fazem “acordos entre partes”, perseguem a ordem seguindo uma “autoridade” e, apesar da anomia, naturalizam os acontecimentos e calam os opositores. Mais que isso, tendem a unificar forças destruindo a individualidade e esquecem que “cada um produz e vive a própria história”. A esperança nasce em meio ao turbilhão e opera, em primeiro, no sentido de lembrar que o aceitar significa “terminar o sofrimento”, “colocar um fim às coisas”, “seguir em frente”, pois - novamente - “vida que segue”. Em segundo, a esperança pode significar uma a mudança de tudo, acabando com o que(m) produziu a tragédia, mudando os rumos da história, lembrando daqueles que se foram, dado que lhes arrancaram filhos, parentes e amigos. A esperança, no primeiro caso, produz traumas e lembranças reprimidas que serão incorporadas à sociedade por muito tempo... até virar história. No segundo caso, ela abre possibilidades, ergue a justiça e coloca os algozes em seu devido lugar. É um caminho tortuoso, mas virtuoso e de cura objetivando a produção do “sentido para a vida”, tal como desejou Viktor E. Frank, em sua obra, “Em busca do sentido”. Cumpre à sociedade de Brumadinho a escolha melhor a se fazer, uma vez que o acontecimento não é somente individual, mas também coletivo marcando a “consciência coletiva” com ferro e lama, relação na qual - como se sabe - é difícil encontrar o equilíbrio perfeito, somente a ordem imposta através do consentimento, do esquecimento, da negação e da violência.

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* Professor na FaE/UEMG/BH. Trabalhou na Faculdade ASA de Brumadinho por 10 anos. Professor da Faculdade de Educação da UEMG (Universidade do Estado de Minas Gerais) e Doutor em Sociologia pela UFMG.

*Artigo publicado no Jornal Gazeta de Brumadinho e Região. Ano 03, Edição 36, Fevereiro de 2019. p. 02.