O que é preciso

Um livro que deveria ser lido por todas as mulheres é o famoso Complexo de Cinderela, de 1980, de Collette Dowling, autora americana que, motivada por problemas pessoais, resolveu analisar as vidas de mulheres que, como ela, encontravam-se infelizes, estagnadas e sentindo que algo as impedia de viver plenamente. O estudo levantou questões importantíssimas acerca de um fato crucial: o de que as mulheres é que impedem o próprio desenvolvimento. Isso levou à criação de um belo livro, que mostra como as mulheres ainda sonham em ser salvas e esperam que os homens as protejam e sejam os responsáveis por sua felicidade. O sucesso do livro deu origem a um termo muito importante: o Complexo de Cinderela, que se refere a mulheres que, consciente ou inconscientemente, fazem de tudo para se manter dependentes e numa posição que as impede de ser responsáveis por suas vidas.

Com a leitura deste livro, aprendemos a olhar com outros olhos uma situação ainda muito comum: a de mulheres que se mantêm presas a casamentos infelizes, alegando que fazem de tudo pelos filhos e que aguentam a pressão em nome da estabilidade familiar. Vemos muito isso no nosso dia-a-dia. São mulheres que, sejam como donas de casa, trabalhando fora ou até mesmo sustentando seus maridos ou companheiros, que aguentam casamentos ou relações abusivas ou que, simplesmente, não levam a nada. Quantas não suportam, com uma expressão resignada, maridos que as maltratam, bebem, batem nelas e por aí vai? É comum que as vejamos como santas, que fazem isso para que suas famílias não se esfacelem. Será que ficar ao lado de homens assim é tão heroico mesmo? Se as mulheres não trabalham, podem usar a desculpa de que, como não podem sustentar a si mesmas. E se elas trabalham, por que não deixam esses homens que não são capazes de construir com elas uma boa relação familiar? Será que elas não criaram uma zona de conforto que lhes permite ficar na posição de não ter que assumir responsabilidades ou na ilusão de que têm uma família? A desculpa de não ter qualificação para trabalhar não convence, afinal, muitas são as que, com pouco estudo, têm coragem de largar seus companheiros e, indo embora com seus filhos, refazer suas vidas, ainda que com todas as dificuldades, trabalhando.

Houve o caso de uma mulher que antes, quando era mais fácil arrumar emprego e não se necessitava tanto estudo e qualificação, dizia que não ia atrás de trabalhar porque não queria que os filhos ficassem sozinhos em casa. Estranho que essa mesma mulher foi criada por uma que trabalhara a vida inteira e tinha uma irmã com pouco estudo e cinco filhos que trabalhava em todo tipo de serviço. Ela também poderia ter feito algum curso profissionalizante e não o fez. Chegaram a lhe arrumar emprego e ela não quis, dizendo que o marido não iria gostar. Ela também dizia que não deixava o marido por não querer que os filhos crescessem sem pai, pois o pai a abandonara. Assim, o que ela fez? Aguentou um casamento infeliz, arrastando os filhos numa rotina doentia e se queixando de que era maltratada pelo marido, que não provia suas necessidades afetivas e materiais como ela almejava. Será que ela agiu assim pensando nos filhos ou preferiu aguentar um casamento infeliz para não ter que ir à luta? Ela poderia ter ido atrás de aprender a fazer unha, penteados, costura e não quis nada, No livro Complexo de Cinderela, Collette Dawling diz sem rodeios que a mulher que faz tudo para manter a família não é heroína, é uma covarde que, por medo e desejo de ser dependente, permanece numa posição confortável em vez de tentar romper o círculo vicioso. Ao mesmo tempo, ainda que o marido estivesse errado, ela não o contrariava para não sofrer represálias. Se ela foi infeliz, podemos dizer que o marido foi culpado por ter sido egoísta e castrador, mas ela contribuiu para isto não fazendo nada. E não fazer nada diante do que está errado é ser cúmplice.

Além dos inúmeros exemplos na vida real, podemos falar também de casos na ficção, como o filme neozelandês O amor e a fúria, em que uma família pobre, de origem maori, é um perfeito exemplo de violência doméstica. O marido Jake, desempregado, usa todo o dinheiro do seguro desemprego para beber com seus amigos e sua mulher, Betty, aparentemente, sustenta todo o peso de criar os cinco filhos e levar adiante a situação. Tudo muda quando sua filha mais velha, Grace, começa a se revoltar com o fato da mãe não fazer nada em relação aos problemas, que incluem um irmão delinquente. Betty só toma uma atitude após ocorrer uma tragédia: Grace, após ser abusada por um amigo do pai, comete suicídio e a mãe, ao ver que não pode continuar assim ou a família irá se destruir, resolve deixar Jake, levando seus outros quatro filhos. O que podemos ver? Que Betty deixara tudo ir longe demais e que não vale a pena ficar numa situação que não levará a nada.

Outros bons exemplos são o livro Tô pedindo trabalho, de Terezinha Alvarenga, no qual Tuca, menino de favela, vê a mãe ser espancada pelo companheiro Bené, a quem sustenta. Bené, alcóolatra, não trabalha e ainda quer abusar da irmã de Tuca, Divina. Tuca não consegue entender o porquê da mãe não deixar um homem que não passa de um parasita e é violento, mas ela diz que um dia ele entenderá.

Quem leu o livro O feijão e o sonho, de Orígenes Lessa, talvez lembre de Maria Rosa, esposa do poeta Campos Lara. Ela sempre se queixava de que o marido era um sonhador que não cuidava de prover as necessidades da família. Porém, há uma passagem no livro em que ela pensa em deixa-lo. Será que a infância miserável dos filhos foi culpa apenas dele? Ela foi tão heroica assim ficando com ele em vez de partir e tentar recomeçar a vida? Lugar para ir não faltava, já que ela tinha a casa dos pais. É muito fácil para uma mulher culpar o marido por tudo, fazendo-o de lixeira da história em vez de tentar analisar o papel que ela tem numa relação doentia. Lembremos que uma relação é constituída de duas partes. Culpar uma pessoa, o destino ou até a Deus por nossa infelicidade é bem mais fácil do que tomar uma atitude e tentar aprender a cuidar de nós, não?

Podemos dizer que isso é totalmente culpa dessas mulheres? Não, isso é uma herança de nossa cultura machista, que ainda valoriza muito a imagem de um homem como salvador e protetor que suprirá todas as nossas necessidades. Entretanto, não dá para evoluirmos se não rompermos com essa ideia, que se reflete em muitas fantasias femininas. Podemos ver mesmo como as mocinhas ainda suspiram por príncipes encantados ao comprovar o sucesso de obras como Crepúsculo, em que Bella, menina comum e sem graça, alcança sua realização ao cair nas graças de Edward. Aliás, em muitos filmes e seriados românticos, não é incomum vermos uma protagonista que se acha feia e só aprende seu verdadeiro valor quando um bonitão se apaixona por ela. Na vida real, apenas a pessoa pode descobrir seu potencial. Ninguém mais pode fazer isso por nós.

A maneira errada como as moças continuam a ser educadas faz com que muitas só se sintam realizadas se estiverem ao lado de alguém. A moça que não tem namorado é vista como esquisita e um fracasso. Se ela não consegue homem, então, não é boa o suficiente. Isso leva muitas a aguentar namorados que não as valorizam por pensarem que não são valiosas o bastante para conseguir alguém que as trate melhor ou então, elas têm tanto medo de ficar sozinhas que suportam isso para dizer que têm alguém.

O que é preciso? Que as mulheres entendam que não podem mais ficar com aquela ideia de que ter um relacionamento na vida delas é tudo. E que persistir em manter um casamento ruim em nome do amor pelos filhos não é altruísmo, é comodismo, como bem mostra o livro de Collette Dowling, que é um tapa na cara de muitas mulheres, revelando que elas, mais do que os homens, são as que fazem tudo para ficar na posição de dependentes subalternas porque isso é cômodo. É cômodo, mas acaba por fazer com que não apenas ela, mas também os filhos, sofram. Um dia, os filhos, analisando a situação que viveram com mais frieza verão que não foram somente seus pais que os fizeram sofrer, mas que suas mães, sendo passivas, obrigaram-nos a viver numa rotina abusiva.