A distribuição desigual dos riscos pelo Covid-19

Com o alastramento exponencial do número de óbitos causados pela pandemia do coronavírus, tem circulado em diversos veículos de comunicação do Brasil a ideia de que os efeitos mortais da Covid-19 atinge todas as pessoas, grupos e classes sociais, sem distinção [1]. Soma-se a este quadro turbulento o aumento da desinformação, da carência de acesso a fontes confiáveis e a canais de transparência pública que consigam fazer eco ao perverso negacionismo no qual o Brasil está mergulhado. Muitos lembram da comitiva de viagem do presidente Jair Bolsonaro, que voltou dos Estados Unidos infectada, e pensam que nada é mais “democrático” do que uma pandemia como esta. Os cruzeiros internacionais também seriam outra evidência para os mais céticos; além das contaminações e mortes de celebridades e empresários. Vivemos, infelizmente, não apenas uma crise sanitária, mas também política, econômica, cognitiva, moral e ética, que rasga de forma vil e autoritária os princípios e os valores democráticos.

Como denunciou Ulrich Beck (2010), na sua célebre obra, Sociedade de Risco, os diversos tipos de riscos estão diretamente vinculados com a dinâmica global: eles afetam nações, grupos e classes sociais sem respeitar fronteiras. Na estrutura social, os perigos são distribuídos para todos os indivíduos, no interior do conjunto de espaço e tempo em que eles atuam. Portanto, a dinâmica do risco tem um lugar para além das posições sociais e de classe. Não tem como negar que muitas dessas ameaças afetam todas as pessoas, inclusive aqueles que a provocam. Logo, ameaças — como o coronavírus — não são especialmente limitadas em seus efeitos, mas podem atingir sociedades inteiras.

Por outro lado, Ulrich Beck também destaca que existe uma distribuição desigual dos riscos. No início da pandemia, por exemplo, em diversas localidades, as classes mais abastadas, de fato, foram as mais atingidas. Mas, em um outro momento, o coronavírus passou a atingir em maior escala aqueles que estão numa situação de vulnerabilidade social mais sensível e acentuada. É o caso das comunidades indígenas, quilombolas, populações prisionais, entre outras.

Nos grandes centros, orientações de prevenção “simples”, como lavar as mãos e evitar aglomerações, são uma realidade distante para milhares de famílias moradoras da favela. As péssimas condições de moradia — denunciadas há mais de um século por autores como Friedrich Engels (2008), que analisou as dificílimas condições de vida da classe trabalhadora na Inglaterra — contribuem para a maior transmissão do vírus.

Muitas dessas pessoas que vivem nesses tipos de lugares relataram o esforço hercúleo de tentar tomar todos os cuidados de higiene e prevenção[2]. Contudo, a divisão das moradias, o tipo de material utilizado nas construções e devido ao seu espaço reduzido, faz com que os moradores frequentemente entrem na casa um dos outros. Também é necessário frisar que uma parte dessa população tem que conviver com uma rotina diária de falta de água, sem contar em uma parcela significativa que está em situação de rua em várias cidades brasileiras.

Mesmo que não exista a chance de não estar minimamente sob ameaça, o vírus atinge de maneira desproporcional os indivíduos. Sem qualidade de vida e o direito à alimentação justa e adequada, parte da população mais vulnerável poderá ter a imunidade reduzida e outras comorbidades, aumentando o agravamento dos riscos (ZIEGLER, 2013).

A probabilidade de se contaminar ou receber tratamento e, consequentemente, sobreviver, infelizmente não são igualitárias. Como agravante, muitas pessoas estão na “linha de frente”, em diferentes situações. A maioria não pode se dar ao “luxo” de parar suas atividades. É o caso de médicos, enfermeiros e de vários trabalhadores, formais ou informais, que precisam de algum tipo de ganho financeiro imediato para o seu sustento e de sua família.

Em suma, a ideia de que o coronavírus pode ser democrático é equivocada. Na realidade, como afirma Boaventura de Sousa Santos (2020), essa “cruel pedagogia” da pandemia escancara os abismos sociais existentes em nosso país. E para piorar, as desigualdades estruturais que já são altíssimas devem se aprofundar ainda mais, pois irão impactar, direta ou indiretamente, nas condições de vida da população. Tendo em vista tal cenário é preciso pensar em modos de resistências, disputas de narrativas, articulações de políticas públicas e, mais do que isso, em tentativas de criar novas formas de vida que superem o modelo civilizacional, produtor e reprodutor de riscos incompatíveis com a vida no planeta.

Originally published at http://marginaliasocial.wordpress.com on May 17, 2020

[1] Escrito por: Inã Cândido e Rômulo Santos de Almeida

[2] Aproximadamente 13 milhões de pessoas vivem em favelas no país e muitas delas não têm acesso a saneamento básico. Segundo dados do Trata Brasil, 35 milhões de brasileiros não têm acesso à rede de água potável e 95 milhões não possuem acesso à coleta de esgoto em suas moradias.

Referências

BECK, Ulrich. Sociedade de risco rumo a uma outra modernidade. São Paulo: Editora 34, 2010.

ENGELS, Friedrich. A situação da classe trabalhadora na Inglaterra. Tradução B. A. Schumann. Editora Boitempo. São Paulo, 2008.

SANTOS, Boaventura de Sousa. A Cruel Pedagogia do Vírus. Coimbra: Editora Almedina, 2020.

ZIEGLER, Jean. Destruição em massa: Geopolítica da fome. São Paulo: Cortez Editora, 2013.